O atraso com que, de certa forma, começo a ler Hélia Correia nada tem a ver com a promessa de qualidade ou com os seus conteúdos. Já uma vez a citei neste bog, em tempos idos, num seu momento que me pareceu pouco feliz. Sinceramente que um autor diga que deixou de escrever poesia porque acha que não tem nada de novo a dizer acho normal, saudável até; que um autor diga que deixou de escrever poesia porque leu Herberto Helder acho, além de uma diminuição para quem o diz, uma ideia seriamente mortificante. Como sou extremamente sensível a cultos e semi-deuses, fiquei apreensivo quando, descontextualizadamente, me falaram de uma entrevista em que Hélia falava de Maria Gabriela Llansol como "inatingível": entretanto fui ler a entrevista, e, afinal, não há motivo para alarme.
Mas à medida que o tempo passa e a memória destas questões extra-literárias de entrevistas e outras intervenções começa a desfocar-se, decido finalmente procurar os livros da autora.
Não começo exactamente pelo princípio (Que seria a novela de 1981, “O Separar das Águas”), mas quase.
E devo dizer, porque não sou casmurro e sou livre de me contradizer, que é revigorante ver como a escrita de Hélia Correia é mutíssimo superior a essas intervenções públicas. Do pouco que li, ainda, parece-me já tratar-se de um caso de séria originalidade na nossa prosa, uma originalidade bem sustentada, segura.
A terceira novela de Hélia Correia abre com uma citação do “Hamlet” de William Shakespeare”: “Há mais coisas no céu e na terra,/ Horácio, do que a tua filosofia/ pode conceber”.
Esta ideia ocorrer-nos-á, certamente, numa leitura de “Montedemo” (1ª edição, 1983, ed. Ulmeiro). “Montedemo” é, por assim dizer, uma novela estranha, etérea, diria mesmo, em que todos os acontecimentos nos são narrados de uma forma que exalta, definitivamente, essa estranheza. Hélia Correia não recorre nem a processos surrealistas, sequer a contaminações llansolianas (Creio que não será necessário explicar porque refiro este, e não outro, nome.). Nada disso. Esta é uma história, bizarra logo desde o início, e cuja bizarria é acentuada pela forma como, na terceira pessoa, ela nos é narrada. Logo por aqui, esta novela poderia descarrilar e deitar por terra as potencialidades que a história denota logo nas primeiras páginas. No entanto, Hélia Correia demonstra-se extremamente competente para se esquivar dessa armadilha que ela própria coloca. Pelo contrário, escreve perfeitamente consciente da trama complexa que escreve, e acompanha-a de todas as formas possíveis, desde a linguagem utilizada, até à nitidez com que cada personagem assume o seu papel.
A história parte das celebrações da Festa de S. Jorge, uma festa de excessos de álcool e divertimento, que roçam também a orgia. No entanto, este ano, a festa e os excessos foram absolutamente mais longe do que o esperado, e do que o aceitável para uma sociedade fechada. Alguns fenómenos quase sobrenaturais parecem, até, acontecer no céu, que subitamente fica roxo, mas a origem desse fenómeno, ou da sua percepção, fica sempre um tanto por averiguar.
O que é certo é que, nesta festa de S. Jorge em particular, foi definitivamente um excesso, algo que mudaria a vida das pessoas nela envolvidas para sempre, apesar de, ao mesmo tempo, se ter tornado assunto tabu, de que absolutamente ninguém falava, com excepção de Irene, a louca. Neste aspecto, Hélia Correia lança imediatamente a premissa essencial do assunto deste livrinho: que não é uma festa que correu mal, mas sim as reacções de quem esteve presente. É, por assim dizer, um ponto de vista social, como é que esta massa social reagirá face à vergonha em que estiveram envolvidos.
Neste aspecto, ganham particular relevância as figuras de Ercília e da sua sobrinha Milena. Elas representam, como muitas vezes encontramos nos livros desta temática, dois polos de um tempo: de um lado a velhice, os valores da velha guarda, e do outro a juventude que se rege pela renegação desses valores, por uma leveza de espírito que em muito potencia as reações negativas por parte dos “mais velhos”. Ercília ultrapassou largamente aquilo que são os seus valores, as suas condutas habituais, tendo beijado o cauteleiro; tanto que decide fechar-se em casa até que ele morra. “O que até hoje não aconteceu” (pag.22). Milena, a sobrinha, no entanto, voltou grávida da festa de S. Jorge. Quando Ercília descobre, planeia expulsá-la de casa, mas a sobrinha antecipa-se e, quando Ercília vai ao seu quarto para lhe comunicar que a quer expulsar de casa, já esta saíra.
É precisamente esta uma das melhores formas de tornar nítido o contraponto que acima referi, e de desfazer sobre ele alguns equívocos mais fáceis. É que a liberdade dos mais jovens não os faz levianos nem desligados da sua realidade social. Pelo contrário, eles sabem o lugar que ocupam e quando devem mudar esse lugar, por força das circunstâncias. E assim desfaz Hélia Correia o lugar comum da leviana escurraçada e, consequentemente, “coitadinha”. Pelo contrário, Milena sai de casa quando sente que disso é tempo, e sabe exactamente onde ir e como se comportar. Por outro lado, quem se vê completamente sem saber o que fazer face às suas próprias “vergonhas” é precisamente a personagem aparentemente correcta, respeitadora dos seus valores e dos valores sociais, infuenciados obviamente pelo catolicismo, em que está inserida.
Por um beijo, Ercíia enclausura-se em casa, o que não representa solução de género algum. Grávida, Milena sai de casa, mostra-se à luz, assume-se, como assume a sua gravidez e arca com as consequências sociais de um mundo que está de acordo com os valores de Ercília.
Irene, a louca, a única que se atrevia a falar da festa de S. Jorge, mesmo velha, é precisamente quem dá abrigo a Milena, na sua pequena casa junto ao mar.
E aqui entra outra das linhas de força de “Montedemo”: o facto dessa sociedade que está mais de acordo com as ideias retrógradas de Ercília, não se limita a estar de acordo com ela, faz questão de perseguir qualquer um que tenha escolhas diferentes. E assim, Milena, passa de marginal a perseguida, e com ela, Irene, que a isso estava já há muito habituada. Nestes capítulos, Hélia Correia demonstra um conhecimento muito profundo e pragmático da dita “psicologia das massas”: o outsider não é apenas um renegado da sociedade: ele é também um elemento continuamente sob um microscópio, fonte de toda a variedade de rumores, análises distorcidas, teorias mirabolantes, até ao ponto de criar na “massa” que o rejeita uma espécie de mitomania.
Entre todas as complicações que Milena e Irene atravessam para levar avante a gravidez da jovem, têm ainda ajuda de uma mulher solteira e de um farmacêutico que tomam como missão pessoal garantir de Milena tem uma gravidez saudável, e lhe preparam todo o tipo de detalhes para depois de Milena parir a criança. Mais uma vez, podemos daqui traçar uma espécie de perfil psicológico: o dos que estão inseridos na sociedade formatada, mas que face a um valor mais alto, a humanidade, são capazes de mover os seus princípios, evidentemente os formatados, e, efectivamente mudar.
É a partir destas duas premissas essenciais, a diferença de ética, e a não aceitação dessa diferença, que “Montedemo” encontra a sua linha de acção: a perseguição a Milena por parte da massa social em que, anteriormente ela estava incluída. É essa massa, que participou também nos excessos desta Festa de S. Jorge, que vai perseguir Milena, perseguição que culmina num final aparentemente triste mas que é, de certa forma, um final aberto. Outro, útimo, perfil psicológico podemos traçar aqui: a expressão “pecado comum” acaba por perder a sua primeira palavra, o “pecado”. Passa a ser apenas “comum”: por mais que todos tenham participado dos excessos da Festa de S. Jorge, há uma benevolência entre todos, porque, afinal, todos cometeram os mesmos pecados e, a haver castigo, todos haveriam de ser castigados. No entanto, procura-se aquela que trouxe vestígios desse pecado, aquela que há-de fazer persistir a memória dos pecados de cada um, do pecado colectivo.
Hélia Correia tem, em “Montedemo” uma novela original e contada com mestria. Publicado em 1983, não deixa, nos dias de hoje, de fazer todo o sentido.
“Villa Celeste” (1ª ed, Ulmeiro, 1985) leva o subtítulo de “novela ingénua”, e foi publicado após “Montedemo”. O subtítulo poderá ou não ser apropriado.
A leitura dos dois romances é uma prova evidente do estilo, bem demarcado, de Hélia Correia, que parece algo dividido. Por um lado, as descrições, feitas de forma absolutamente secas, sem perdas de tempo, mas, ao mesmo tempo, num contínuo trabalho de linguagem, uma construção de vocabulário que é, definitivamente, uma excelentíssima forma de situar o romance no seu contexto temporal. Neste caso, vemos que se trata dos últimos tempos da ditadura e do rebentar da revolução dos cravos. E, apesar da novela “Villa Celeste” só ter vindo a público em 1985, onze anos depois da Revolução, lemos nesta novela uma reconstituição muito precisa quer das situações narradas, quer na construção da linguagem, um trabalho notório.
É a história de uma empregada de família, Teresinha Rosa, uma daquelas empregadas que já são “parte da mobília”. Com a morte de cada um dos membros da famíia, quando resta já o único filho, um pós-adolescente mimado e órfão, que tem aversão a sentir-se dominado nem que seja pelos cuidados de uma criada quando está doente, alivia a sua obcessão por não depender de ninguém para nada, enviando Teresinha Rosa, o elemento na realidade mais parecido com uma mãe que conheceu, para uma casa, longe do lugar rural onde viviam, para tomar conta dela. A “Villa Celeste”, assim se chamava a casa, às portas de Lisboa, estava abandonada mas, sendo de uma absoluta mestria no que toca a assuntos práticos, Teresinha não se demora não só a reconstruir a casa, como a dar-lhe vida.
Inicialmente, essa “vida” começa com a reconstrução e restauro da casa, há muito abandonada, desde nova pintura nas paredes a estofos renovados nas cadeiras e um jardim beíssimo: tudo pelas próprias mãos da velha Teresinha Rosa. Depois, essa “vida” da casa evolui para deixar pernoitar na ‘Celeste’ vagabundos, prostitutas a tentar sair “da vida”, doentes, etc. Sem que isso nos seja dito, a casa funciona como uma espécie de hotel para os desavidos, cujo único pagamento é precisamente insuflar a ‘Celeste’ com vida.E não demora até que a antiga e decadente casa ganhe uma imprevisível vida. Com o tempo, os próprios vizinhos, pessoas “de estatuto”, casais de reformados, antigos juízes, etc, passam a frequentar a ‘Celeste’ que, cada vez mais viva, era uma espécie de imprescindível lugar de passagem para quaquer um que andasse nas redondezas, fosse de que classe fosse. No entanto, o afecto de Teresinha Rosa pela ‘Villa Celeste” é extremo, e, sob aquele tecto, ninguém se atreveria a desobedecer à organização firmemente imposta pela dona da casa.
Mas a dado momento, muitos dos vizinhos começam a mudar-se e, nos lugares das casas deles começam a crescer grandes prédios de vinte apartamentos. A ‘Celeste’ vai perdendo, lentamente, a sua vida. Na altura das obras ao lado, ainda voltou a haver alguma vida na ‘Celeste”, porque os trolhas muitas vezes a visitavam e a Teresinha Rosa. Porque ela e a casa eram já só uma, “a ‘Celeste” e a Teresinha eram a mesma coisa, duas faces de uma vida, como um filho ainda dentro da mãe” (pag.36). Daí o escândalo, quando recebeu Teresinha uma proposta de compra da ‘Celeste’ que recusou, evidentemente, apesar das já várias querelas com os novos vizinhos.
Apesar de todas estas confusões, a ‘Celeste’ prossegue, como um organismo vivo que condiciona a vida de quem quer que lá esteja.
Este poderia ser um conto vulgar de antagonismo entre tradição e progresso, criando-se, assim, uma espécie de batalha, “para ver quem ganha” e depois, se fosse um conto de fadas, a tradição falaria mais alto, se fosse um conto didáctico para jovens prontos a entrar no mercado de trabalho, o progresso acabaria por convencer Teresinha Rosa. Hélia Correia nem passa sequer por um rumor destes clichés. “Villa Celeste” coloca o antagonismo, mas evade-se de lhe dar uma resposta, nem progressista nem moralista, optando por um final inesperado que, evidentemente, não irei aqui revelar.
Com a idade, Teresinha Rosa encontra-se cada vez mais solitária sem que, no entanto, ceda nem que um pouco, às tentações monetárias e luxuosas que lhe propõe pela venda da ‘Villa Celeste’.
O 25 de Abril passa por esta novela, brevemente: no primeiro capítulo a este respeito, encontramos as celebrações, a fraternidade proliferada, a euforia, a quase-histeria (Que encontramos também noutros romances, e em documentos históricos, de que escolho, de memória, “Não Percas a Rosa (Diário e Algo Mais) de Natália Correia, 1ª. Ed, 1978, Dom Quixote.). No segundo capítulo após a Revolução, é Teresinha Rosa quem pensa “Descera sobre a terra a bem-aventurança” (pag.39). Dois capítulos depois é pela voz da narradora que lemos agumas considerações: “Tudo o que é bom se acaba, ora aí está. Era coisa tão viva, tão parecida aos trigais- como flores e alimento- esta revolução que, vejam lá, murchou, fez o seu tempo.” (pag.43). Mas sendo esta uma novela, que, por definição é um texto curto e, portanto, sem dispersões, o impacto do 25 de Abril que verdadeiramente se sente é o impacto que ele tem na ‘Celeste’, que acaba por ser uma espécie de tertúlia, não necessariamente cultural, mas no sentido em que nela acabam por se reunir vários tipos de indivíduos, cada um deles numa situação transitória mas que, invariavelmente, ao sair dela, mais do que prometem, sabem que nunca esquecerão a ‘Celeste’. E isto é possível, precisamente porque a ‘Celeste’, mesmo sendo tratada como uma casa, é um ser vivo, uma irmã de Teresinha Rosa. Até porque, repare-se, raramente ao longo do texto de Hélia Correia a casa é referida como ‘Villa Celeste’, sendo na maioria das vezes chamada ‘Celeste’, numa espécie de personificação.
Por fim, quando Teresinha sente que a ‘Celeste’ está ameaçada, foca todas as suas atenções em encontrar uma forma para garantir que a ‘Celeste’ viva para sempre, um processo afinal masterminded por uma camponesa.
Retomando a segunda frase deste segundo texto, resta tentar entender se o subtítulo de “novela ingénua” é ou não apropriado, e como. De certa forma, penso, é, de facto, uma novela ingénua, no sentido em que muitas das situações descritas por Hélia Correia seriam dificilmente transponíveis para o real. Será, talvez, ingénuo, assumir tanta bondade por parte de uma pessoa. No entanto, há que ter em conta a relação visceral que Teresinha Rosa criara com a casa. Uma relação de afecto, porque ela sente quando a casa tem frio, quando a casa está amuada, quando a casa teve saudades dela. E, nesse aspecto, talvez não seja tão ingénua esta novela, uma vez que Teresinha Rosa apenas tentou preservar aquele ser vivo, garantir que nada lhe aconteceria após a morte da própria Teresinha Rosa. E talvez não haja nada de ingénuo nisso.
“Villa Celeste” é, por isso, um romance a ler. E, para os mais coleccionistas, sempre se pode ler na graficamente maravilhosa edição do Contraponto, que Luiz Pacheco editou muitos anos mais tarde, em 1998.