quinta-feira, 29 de julho de 2010

Estou Vivo e Escrevo Sol



Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde






António Ramos Rosa
Estou Vivo e Escrevo Sol
1966, ed. Ulisseia
imagem de Salvador Dalí

Michelle Branch: Everything Comes and Goes

VIAGEM NO TEMPO
Michelle Branch tem uma coisa que ninguém lhe tira: tem um punhado de muito boas canções. Destaquem-se do primeiro álbum, "The Spirit Room" (2001), algumas como "I´d Reather Be In Love", "All You Wanted", " Here With Me" e "Drop In The Ocean" (Esta será provavelmente a melhor, até agora.), e do segundo, "Hotel Paper" (2003), outras como "Find Your Way Back", "Empty Handed", "Breathe" ou "Till I Get Over You".

Após um silêncio de sete anos, Michelle Branch regressa aos discos com um EP de seis canções, "Everything Comes and Goes". E aquilo que parece mais evidente ao ouvi-lo é que efectivamente, alguma coisa partiu e alguma coisa voltou.
Relembre-se que Michelle Branch tinha dezoito anos quando lançou "The Spirit Room" (Que considera o seu primeiro álbum, tendo excluído o EP "Broken Bracelet" de 2000.) e vinte e um quando lançou "Hotel Paper". E o que se pode dizer é que um e outro eram álbuns maduros para a idade da sua autora/cantora, tinham algo de supreendentemente expedito.



Aos vinte e sete anos Michelle lança este EP e, de repente, parece não conseguir ultrapassar "Hotel Paper". Será esse o grande problema de "Everything Comes and Goes": desapareceu a pontaria que os primeiros dois álbuns representavam, e parece ter regressado um pouco da angústia adolescente, mais a de "Hotel Paper" que se manifestava de uma forma mais "agressiva" do que a de "The Spirit Room" que era mais suave.
No caso específico de Michelle Branch, o retorno do passado não a favorece.
Em "I Want Tears" ouvimo-la cantar "Nothing´s wrong but nothing´s right", e essa frase pode perfeitamente adequar-se ao novo álbum. Dentro do estilo rock-country de que Sheryl Crow será ainda a maior referência, este álbum não tem nada de errado, mas quando o comparamos com os álbuns passados, percebemos que pouco mudou.
Não quer isso dizer que não haja aqui boas canções. O EP abre com "Ready To Let You Go", que parece ser uma boa abertura, porque nela se nota algo de diferente, mas infelizmente, ao seguir para "Sooner Or Later" essa "novidade" é deitada por terra. "I Want Tears" recupera um pouco a sonoridade polida do segundo álbum, mas não consegue ultrapassá-lo, excepto talvez ao nível da letra- esta canção terá uma das melhores letras de Michelle Branch. "Crazy Ride" e "Summertime" pecam pelo seu som demasiado delicodoce, que se por um lado os torna algo radio-friendly, por outro resulta demasiado óbvio, não há aqui qualquer tipo de surpresa. Por fim, "Everything Comes and Goes" tem a particularidade de ser uma boa canção para fechar o álbum, nela se nota um tanto da melancolia que conhecíamos de canções passadas.
Estranhamente, "This Way", que foi o single de avanço do EP não foi incluído no alinhamento final. A meu ver, essa escolha foi pouco acertada: "This Way" era uma canção promissora, nela sim, notava-se algo de novo, de mais melódico e mais polido do que a maioria das canções que foram incluídas.
Como disse acima, há algumas boas canções neste EP, que seriam "Ready To Let You Go" e "I Want Tears": a questão é que mesmo sendo boas, não parecem representar nada de especial em comparação com as canções que referi no início.
Esperemos que o próximo LP, "A Different Kind Of Country", anunciado para este ano também, seja largamente diferente do seu antecessor.






This Way

You Are Welcome to Elsinore



Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar






Mário Cesariny de Vasconcelos
Pena Capital
1957, ed. Contraponto
pintura do autor

Lou Rhodes: One Good Thing

VÁRIAS COISAS (MUITO) BOAS

Em 2004, os Lamb lançavam "Best Kept Secrets (1996-2002)", uma colectânea que reunia algumas das canções mais marcantes dos quatro álbuns da banda. Dois anos depois, Lou Rhodes apresenta-se em nome próprio com "Beloved One".
A primeira sensação natural seria a estranheza. O que nos Lamb era complexidade e quase excesso, dava lugar a uma simplicidade intimista nas canções de Lou. O seu primeiro álbum a solo era uma colecção de canções melódicas e depuradas, numa sonoridade folk, que contavam com pouco mais que uma guitarra acústica, uma bateria e um baixo, praticamente o inverso do som fervilhante dos Lamb.
O que "Beloved One" afirmava, "Bloom", em 2007, confirmava. Lou apresentava-se agora com uma banda onde ocasionalmente ouviamos alguma electricidade. Mas era um facto: os conceitos do primeiro álbum continuavam ali, ainda que numa roupagem distinta.




Em 2010, Lou presenteia-nos com "One Good Thing". Este terceiro trabalho deveria ser o suficiente para começarmos a ouvir Lou Rhodes e deixarmos de ouvir a ex-vocalista dos Lamb.
"One Good Thing" representa mais um passo na maturidade musical de Lou. Ouvimo-la agora num registo que está um pouco ancorado no meio-termo entre os seus primeiros dois álbuns. Não é o quase minimalismo do primeiro mas também não é o som mais polido do segundo.
Estas canções são tocadas pela habitual guitarra de Lou, com acrescentos de percussão e cordas. A luminosidade que ouvíamos frequentemente nos primeiros álbuns dá agora lugar a uma densidade que tem algo de mais "negro". Não raro encontramos neste álbum letras que nos colocam frente-a-frente com o mundo, o nosso mundo. Não são já as canções simples de amor, há nestas algo de mais semelhante ao percurso do indivíduo que procura o seu lugar no mundo: o amor é só mais um dos caminhos que se pode tomar para isso.
O álbum abre com "One Good Thing", que reflecte um pouco a situação política actual. É talvez a canção mais próxima de "Bloom", assim como "Magic Day" estará mais ancorado em "Beloved One". Outras como "It All" ou "Circles" parecem-me mais representativas da fase actual de Lou: são canções pesadas, de melodias violentas, que contrariam a tendência para se pensar que o que é simples é suave. Muito pelo contrário, Lou não vacila no esquema de construção das suas canções o que não a impede de criar canções tristes.
Outros dos pontos que interessa sempre assinalar quando se fala de Lou Rhodes é a questão da voz; talvez porque esse será ainda o interesse maior da sua música. Estamos perante uma das vozes mais invulgares e belas da música actual, e "One Good Thing" é, até agora, o álbum que melhor explora a potencialidade da voz: ouvimos Lou perfeitamente desenvolta nos vários registos que compõe (Lembremos que o material que canta é exclusivamente da sua responsabilidade.), e notamos ao longo do álbum várias nuances. Ainda que pareça contraditório com o que afirmei no início deste comentário, a verdade é que este é o álbum vocalmente mais se aproxima dos Lamb. Note-se que não pretendo insinuar qualquer demérito à banda de Lou e de Andy Barlow, que mesmo depois do seu fim continua a ser uma das minhas favoritas: o caso é que, apesar de notarmos um registo diferente com Lou a solo, aos Lamb deve ela um género de música que sempre lhe permitiu movimentar-se nas mais variadas tonalidades, desde o choro lento que é "Goreki" à agressividade de "Little Things" ou à brutal explosão de "Till The Clouds Clear". E se em "Beloved One" ou "Bloom" aquilo que mais ouvíamos era a suavidade e a melancolia, neste álbum ouvimos já sentimentos mais violentos, como acima referi, e que não se limitam às composições: são transpostos para a voz, e é essa a novidade, em termos vocais, de "One Good Thing". Neste álbum, ouvindo por exemplo "It All", quase não parece a mesma voz que depois ouvimos em "Melancholy Me".



Também importa fazer um contraponto entre o registo em álbum e o som ao vivo. Não ao acaso, "One Good Thing" parece-me ser o que mais aproxima os dois; e este é um álbum justamente gravado em directo, em live takes, o que me parece uma decisão muito acertada: note-se que no tempo de "Beloved One" Lou tocava em estúdio com poucos músicos e essa sonoridade tornava-se diferente ao vivo, onde tocava com uma banda inteira; já em "Bloom" Lou tocava com uma banda inteira e várias vezes se apresentou em palco sozinha com a sua guitarra. Se por um lado se notava uma diferença abissal entre os álbuns e os concertos, por outros não deixava de ser inteligente essa forma de pôr as canções à prova mudando-lhes o esquema instrumental. Mesmo assim, "One Good Thing" parece distanciar-se dessa ideia e dar em estúdio um som muito aproximado ao que se ouviria em palco.
Este é, acima de tudo, um álbum de grandes canções. A destacar algumas, eu destacaria "It All", "Circles", "There For The Taking" ou "Melancholy Me": parecem-me as canções mais desenvoltas, mais realmente novas, ainda que seja difícil encontrar neste álbum canções que não tenham algo de insólito a merecer referência, pelo que o que recomendaria mesmo seria que se ouvisse o álbum na íntegra.



One Good Thing

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Um Poema



Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.

Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.

Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.

Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:

“Agora és livre, se ainda recordas"





Cecília Meireles
Solombra
1963
pintura de René Magritte

Morrer de Amor



Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso.


Maria Teresa Horta
Destino
1997, ed. Quetzal
pintura de Dante Gabriel Rossetti

Irene Lisboa: Começa Uma Vida

UMA HISTÓRIA SIMPLES


"Começa Uma Vida" (ed. Seara Nova, 1940, reed. Presença, 1991) é, de certa forma, uma espécie de primeiro romance de Irene Lisboa. Fora os "13 Contarelos" (ed. autora, 1936), Irene publicara antes "Um Dia e Outro Dia- Diário de Uma Mulher" (ed Seara Nova, 1937) e "Outono Havias de Vir- Latente e Triste" (ed Seara Nova, 1938)- ambos reeditados em 1990 pela Presença no volume "Poesia I"- livros de poemas em verso e ainda a famosa "Solidão" (ed. Seara Nova, 1939, reed. Presença, 1991) que, ainda que leve de subtítulo "Notas do Punho de Uma Mulher" e tendo várias vezes em bibliografias elaboradas pela autora sido descrito como "notas e críticas", me parece ainda dentro de um registo muito poético. É discutível se "Solidão" pode ou não ser considerado um conjunto de poemas em prosa, e se o argumento contra pudesse ser o facto de nele encontrarmos frequentemente um registo diarístico, relembre-se o subtítulo do primeiro livro de poemas para percebermos que, dentro do estilo de Irene Lisboa, esse argumento se torna um tanto inválido.




"Começa Uma Vida" inicia com uma pequena introdução com a definição de "novela" em epígrafe. É de concluir que em definitivo Irene Lisboa pretendia que este livro fosse uma novela. Se com o tempo a distinção entre romance e novela foi desaparecendo, a verdade é que, considerando este livro à luz do ano em que foi lançado, ele representa mesmo uma novela, uma narrativa.
"Solidão" seguia mais o sabor do pensamento, da recordação, ao passo que "Começa Uma Vida" segue uma estrutura definida em termos cronológicos. E repare-se ainda que, reforçando a ideia de estrutura, "Começa Uma Vida" inicia com um texto sobre a madrinha da narradora, que será a própria Irene Lisboa, e termina com um texto sobre a morte da madrinha, ou seja, de certa forma, em termos estruturais, a madrinha é a personagem que mais define este livro.
Esta comparação entre "Solidão" e "Começa Uma Vida" poderá, de certa forma, ser inútil, mas faço-a com o propósito de justificar a minha ideia de que o segundo constituirá uma "novela" no sentido específico do termo, ao passo que o primeiro tem mais a ver com o registo do poema em prosa, evidentemente diferente do poema em verso por questões outras que a forma.




Centrando-me agora em "Começa Uma Vida", nele não encontramos a novela que é habitual encontrarmos (Salvo em questões de estrutura que acima expus.). Sem qualquer tipo de demérito, "Começa Uma Vida" não é uma história, no sentido em que não estamos perante um enredo que contém uma intriga e a sua resolução como "clímax" final. De facto, é raro encontrarmos em Irene Lisboa uma escrita que esteja dentro das convenções. Como já noutros textos advoguei, será esse o motivo por que a escrita de Irene se mantém tão extremamente actual. Este livro compreende a evocação de uma série de memórias, organizadas cronologicamente, que nos dão uma visão privilegiada da biografia da autora. É de notar a vontade explícita desta escrita obedecer à realidade, sem acrescentar nada.
Seria injusto, no entanto, dizer que "Começa Uma Vida" se esgota na descrição de memórias: note-se que existe a designação do livro de memórias, mas essa designação não se aplica, de todo, a este livro. Irene assume a distância que a separa das pessoas e dos acontecimentos que narra, e aí reside a sua inteligência: na capacidade de analisar, de chegar a uma interpretação de tudo. E essa interpretação começa no lado pessoal, mas passa também para o lado social. No fundo, aquilo que Irene Lisboa tem de interessante, e ainda mais para a sua época em que tanta prosa hoje nos soa frouxa ou pelo menos desactualizada, é a sua capacidade de cruamente falar do real. Não encontramos aqui artifícios nem dissimulação, mas precisamente um olhar livre sobre as pessoas e os acontecimentos: livre, no sentido em que não há qualquer tipo de preconceito ou de pré-categorização: Irene observa primeiro e analisa depois, ao passo que frequentemente encontramos na literatura a atitude contrária, que é a vontade de fazer coincidir determinada pessoa a uma categoria. Por isso em "Começa Uma Vida" não existem personagens-tipo, mas personagens que, justificadamente, têm determinado lugar.
Outra característica que gostava de apontar é a dualidade de visão que se nota no discurso da narradora: ele divide-se entre a visão cueva, a visão que a narradora teria de tudo na sua infância, e depois a visão presente, da idade adulta, que se umas vezes confirma a primeira, outras naturalmente a desmente ou, pelo menos, reformula.
Não sou também um apologista da separação ente literatura feminina e masculina, porque penso que tal distinção é obsoleta- senão completamente irreal- no entanto, penso ser de referir o facto de Irene Lisboa ser uma mulher. Não por querer fazer comparações, mas para apontar uma série de limitações que autora sofreria à altura: "Começa Uma Vida" é assinado como João Falco, pseudónimo que a autora manteve até este livro, um pseudónimo masculino. De certa maneira, seria impossível no início dos anos 40 uma mulher assinar textos desta natureza, porque não raras vezes se movimenta no sentido dos "assuntos dos homens": a análise muitas vezes se prende com a parte social, como acima referi, e essa leitura das coisas é essencialmente política; além disso a autora expõe de forma clara o universo do comportamento sexual masculino, na pessoa do pai, referindo os vários casos paralelos ao matrimónio e todos os problemas aí originados- questões de paternidade ilegítima, de heranças, etc. Num tempo em que o que se queria de uma mulher escritora era o louvor do macho- sina a que tão poucas escaparam- falar disto não era, de todo, conveniente. Não esqueçamos também que os motivos por que Irene Lisboa foi reformada pelo Estado do ensino não são, ainda hoje, claros.
E por estas e outras razões é absolutamente correcto afirmar que Irene Lisboa estava a anos-luz do seu tempo. A força essencial deste romance é realmente a verdade com que ele é escrito, a sua profundíssima humanidade; mas não se pode deixar de parte o facto de ele poder ter sido escrito nos nossos dias.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Os Anéis do Meu Cabelo

Se passares pelo adro
No dia do meu enterro
Diz à terra que não coma
Os anéis do meu cabelo.

Já nem digo que viesses
Cobrir de rosas o meu rosto
Ou que num choro dissesses
A qualquer do teu desgosto.

Nem te lembro que beijasses
Meu corpo delgado e belo
Mas que sempre me guardasses
Os anéis do meu cabelo.

António Botto

1959, Janeiro, Porto



No salão de cima (era todo envidraçado e a rua penetrava-o) havia sempre muita gente. Mas na cave, que os espelhos tornavam de uma solidão maior, as mais das vezes um dos criados encostava-se ao balcão, enquanto o outro servia, sem pressa, os poucos frequentadores. Só ali vinham alguns estudantes decorar, entre fumaças, estafada sebenta, bichanando teoremas e fórmulas, sorvendo golpes, curtos, de líquido fumegante, os que tinham encontros, mais ou menos clandestinos, e dali partiam para uma aventura de amor à hora, em quarto alugado, ou pequenos burgueses sem requintes que discutiam a bola e o avançado centro- "bestial!"- para provarem que estavam vivos e neste mundo. A gerência podia permitir-se aquela tolerância de o deixar dormitar diante da mesa vazia, naquele ambiente aquecido a bafo humano e vapores de café, ao abrigo do nevoeiro que lá fora engolia tudo ou da geada que embaciava as montras e arrefecia os relfexos nos paralelepípedos da rua. Cosido com um canto do café "reservado a senhoras e suas famílias", segundo rezava o letreiro suspenso, parecia um trapo enrodilhado. A gabardina de uma cor indecisa e asfiapada pingava-lhe sobre os sapatos, demasiado grandes, acharlotados. O chapéu cobria-lhe o rosto até ao bigode, murcho, caído, quase a tapar a ranhura dos lábios, fechados, sem desejos. De perto viam-se-lhe à volta dos olhos trémulos, vivos, das veias, vermes saindo do ninho das órbitas e passeando-lhe a cor funérea, onde a barba grisalha, de véspera, punha uma poeira de cinza, que parecia alastrar naquele meio silêncio, raro, cortado.

_Um carioca de limão.
_Café e bagaço.
_Um maço de Porto.
E era tudo. As ondas de sossego, escorraçado, voltavam e espraiavam-se pelas cadeiras vazias. Recomeçavam a conversa entre o criado e o homem do bar, sobre aquele atraso de vida da doença da mulher que tinha de ser operada, do desarranjo do filho mais novo ter de ir para a casa dos avós e ser preciso ir levá-lo, pois não se podia meter uma criança daquela idade sozinha num comboio. O outro ouvia-o distraído, já sonolento, a pensar na vida dele, nos problemas dele, nos pés dele, enganando o cansaço, despertando-se com aquele passeio enjaulado e maquinal, que o gesto da limpeza do balcão acompanhava. Os ruídos do andar de cima chegavam distantes, amortecidos, e era já menor o ruído, tinido, de louça e talheres. O relógio marcava onze e vinte. O homem cosido com o canto do sofá tinha adormecido e o cachecol de lã preta e ensebada guilhotinava-lhe a cabeça que as cordas dos tendões quase não sustinham. Os espelhos multiplicavam a satisfação, estomacal, dos poucos que tomavam café. O colorido dos painéis, o brilho, o mel e o conforto, das luzes. O dourado, sereno, da estatueta. O homem. O homem. O homem. O homem. Como eco. Ou nódoa que tivesse alastrado.

Luísa Dacosta
Na Água do Tempo, diário
1992, ed. Quimera
imagem de Toulouse-Lautrec

domingo, 25 de julho de 2010

Hélia Correia: Lillias Fraser

A IMPORTÂNCIA DA TERCEIRA VISÃO




"Lillias Fraser" é um dos romances mais viciantes que tenho lido nos últimos tempos, tanto que o li em dois dias, completamente incapaz de parar.
Hélia Correia começou o seu percurso no campo da novela, com narrativas curtas e imaginosas como "O Separar das Águas" (1981), "Montedemo" (1984) ou "Villa Celeste- Novela Ingénua" (1985). "Lillias Fraser", de 2001 marca já como definitivo o terreno do romance como o mais favorável à escrita poética e desenvolta de Hélia Correia, que, já que estamos no assunto, lançou recentemente "Adoecer" (2010), recriação da biografia de Elishabeth Siddal.
"Lillias Fraser" funciona dentro de uma dinâmica que já rendeu bons frutos em Portugal, que é a recriação de personagens, umas vezes mais outras vezes menos célebres da História, mas que são muito ricas no que toca ao recriar de um tempo e dos seus espaços e das suas situações política, social, cultural, etc. A título de exemplos, relembro alguns romances de Agustina Bessa-Luís, como "O Mistério da Légua da Póvoa" (Sobre Maria Adelaide Coelho da Cunha.) ou "Fanny Owen" (Onde encontramos Camilo Castelo Branco.); "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ou "Memorial do Convento" (Onde encontramos D. João V.); "O Mal" de Paulo José Miranda (Sobre Camilo Pessanha.) ou o romance já anunciado que Maria Teresa Horta lançará em breve, "As Luzes de Leonor" (Sobre a Marquesa de Alorna.).
No caso de "Lillias Fraser", a protagonista que dá nome ao romance não é uma figura histórica, no entanto elas não faltam no romance. Não se trata de um romance histórico, ou pelo menos de um romance histórico comum: Lillias não representa uma ponte para o tempo em que a acção se desenrola (entre a Escócia em 1746 e Portugal em 1762.), o tempo, o século XVIII, é que é uma ponte para perceber Lillias. E uma ponte bem construída: na descrição deste tempo encontramos uma série de factos históricos, como a Batalha de Culloden, ou o Terramoto de Lisboa, que Hélia Correia sabe explorar sem excessos, encontramos personagens da nobreza e, e é isso o mais interessante, toda uma análise que não se coíbe de se assumir nos nossos dias: é um facto que lemos sobre o século XVIII mas lemos sobre ele na actualidade. Hélia Correia não procura a análise objectiva, escolhe por vezes pontos de vista pouco usuais, de certa forma intimamente liagdos com as mentalidades populares, com ocultismos, explicações que de alguma forma se prendem com toda uma mitologia popular e nada científica; e é também de notar que a autora sabe como não ser excessivamente historicista, escolhendo muitas vezes um caminho de ironia nas análises e assumindo, em algumas partes, haver factos, histórias, que é impossível serem sabidas. Daí que diga que este não é o comum romance histórico, porque tem muito de uma visão pessoal, de muito interpretativo, em detrimento de um relato mais austero.



Outro aspecto que já tinha realçado quando aqui falei de livros de Hélia Correia é a questão da linguagem que, nos seus livros, é toda uma construção que é tão importante na percepção da história como aquilo que essa linguagem narra. É uma linguagem pouco dada a barroquismos, mas cheia de pequenas subtilezas, que por norma compreendem uma adaptação da linguagem mais arcaica, aquela que, à primeira vista, poderia ser confundida com uma linguagem antiquada ou vernácula.
"Lillias Fraser" é a história de Lillias Fraser, menina escocesa, filha e irmã de rebeldes de guerra que se insurgiram contra os ingleses, que tinha o poder de antever a morte das pessoas quando esta se aproximava delas, de ver o futuro, a chamada "terceira visão". A este poder devemos o arranque do livro, um arranque fortíssimo, em que Lillias prevê a violenta morte de Tom Fraser, o seu pai. Guiada pelo espírito da mãe, Lillias encontra refúgio junto de Anna MacIntosh, e andará sempre entre casas diferentes até que, a pedido de um padre, é levada para fora do Reino Unido. A Portugal chega de barco em 1751. Acaba por ser entregue ao Convento de Santa Brígida, onde habitavam as freiras católicas inglesas (Minoria de um povo protestante anglicano, relembre-se.) de onde acaba por fugir, por não suportar as visões que lhe mostram o convento em ruínas. A meio da sua fuga pela floresta, dá-se o terramoto. Nessas circunstâncias conhece Cilícia que a adoptará mesmo depois do frenesi que o terramoto origina. Um pouco como as várias mulheres que vão estando à volta de Lillias, Cilícia acaba por perceber os poderes de Lillias e pede-lhe que os use para trazer o seu filho para casa. Jayme acaba por aparecer, ainda que seja um tanto indefinido o papel que Lillias teve nesse regresso. Paixões, partidas, uma gravidez da menina, deserção e uma nova guerra são os assuntos que tomam parte no destino de Lillias e de Portugal.
Mas Lillias é a personagem que se quer seguir, muito mais do que propriamente os destinos do país. É que Lillias Fraser questiona todo o tipo de conceitos e coloca toda a sorte de questões. A primeira e eventualmente a mais interessante é a da relação da identidade de um indivíduo com o seu passado: Lillias é obrigada, ainda na Escócia a ocultar o seu aplido verdadeiro e ao longo da história é chamada Lillias MacLean e mais tarde Lília Peres; quando por fim revela o seu verdadeiro aplido, já em Portugal, toda a sua vida é virada do avesso, pois o nome Fraser, banido, é lembrado ainda entre os soldados ingleses. Outra questão é a da possibilidade de prever a morte: ainda que primeiramente essa capacidade seja uma benesse para Lillias pois, depois de prever a morte de Tom Fraser consegue ela mesma salvar-se da morte; a verdade é que no desenrolar do romance, Lillias começa a ser prejudicada por esse dom, porque as mulheres, dadas a estranhas intuições, o entendem e acabam por se sentir ameaçadas por ele, achando, como seria de esperar, que é um poder conferido pelos demónios, e uma heresia, etc, etc, etc; e a própria Lillias, quando se apaixona por Jayme evita olhá-lo para não lhe prever a morte.
Aqui mesmo, onde muitos poderiam encontrar uma justificada semelhança com o "Memorial do Convento" de José Saramago, Hélia Correia cruza subtilmente Blimunda Sete-Sóis com Lillias Fraser, quando a primeira decide cuidar da gravidez de Lillias. E, quando comparam os seus dons, Blimunda conclui "Então sou mais feliz do que tu és" (pag. 280).
O final do romance é ele mesmo uma tremeda ironia que confirma a ideia de que o narrador, que podemos assumir, pelo segundo capítulo da primeira parte ser a própria Hélia Correia, é uma "figura" que sabe umas coisas e outras não, o que lhe permite conduzir desta forma mirabolante a história e até questionar ou rebater a História: "Foi por um triz que o Carniceiro da Escócia não se sentou no trono português" lemos, ao mesmo tempo que sabemos que apesar de não ter entrado pelo trono, não quer dizer que não tenha entrado em Portugal...
A "Lillias Fraser" seguiu-se um silêncio de nove anos, que "Adoecer" veio quebrar em Fevereiro deste ano. Se o novo romance tiver pelo menos uma parte da força do de 2001, estou certo de que será já um grande romance.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Agustina Bessa-Luís: A Sibila

A EXPERIÊNCIA PESSOAL DA DUALIDADE


"A Sibila" foi o romance que, em 1954, lançou para a ribalta o nome de Agustina Bessa-Luís. Recorde-se que, anteriormente, Agustina havia já publicado "Mundo Fechado" (novela, 1948), "Os Super-Homens" (romance, 1950) o os "Contos Impopulares" (contos, 1953).



Contextualizando a sua prosa, percebemos que ela se inicia num tempo em que a prosa neo-relista, umas vezes como convicção profunda, outras vezes por militância partidária, era o "regime vigente".
Agustina, no entanto, não envereda por esse caminho. Em "A Sibila" nota-se já a romancista genial que viria a autora viria a ser.
"A Sibila" é, como todos os romances da sua autora, uma saga de família e da sua casa, a Casa da Vessada. A questão das casas é essencial na obra de Agustina: elas são o verdadeiro "narrador", a personagem omnisciente, que testemunha as várias gerações que a habitam. A história da Casa da Vessada remonta a Francisco, o patriarca da família, e das suas várias reacções "promíscuas", antes e depois do seu casamento com Maria. A primeira relação realmente importante que denotamos é a dele com a filha, Joaquina, chamada de Quina, mais profunda e complexa do que a que tem com qualquer outro dos filhos, Estina, João e Abel.
Após a morte do patriarca, os filhos vão gradualmente abandonado a Casa da Vessada, até restarem apenas Maria e Quina. Após a morte da primeira, Quina torna-se a senhora da Vessada, e vai alargando os seus negócios e as suas terras e as suas boas relações com a comunidade envolvente. E se inicialmente essas relações compreendem os empregados da Casa, depois de estar bem na vida, Quina acaba por se relacionar com a camada "alta". E essas relações com pessoas da nobreza constrói-se menos pelas suas qualidades como latifundiária, e mais pelas suas ligações com o "oculto". Depois do desaparecimento de uma sobrinha, filha de Estina, filha provavelmente psicótica, Quina "prevê" que ela não voltará. Di-lo com tal convicção que todos ficam a acreditar que ela terá algum tipo de visão, uma vez que esse tipo de previsões lhe ocorriam desde que, mais nova, estivera gravemente doente. De facto, a sobrinha é encontrada morta.
É quando essa história se espalha que Quina passa a ser recebida nos meios restritos como "sibila".



A maior dualidade, pois é sempre de dualidades que Agustina discorre, deste romance é precisamente essa: por que haveria de uma mulher bem sucedida de interessar-se por esse tipo de experiências "alternativas"?
"A Sibila" é por isso um romance altamente filosófico, e igualmente humano: como Germa, herdeira de Quina, acabará por concluir, a matriarca aspirava áquilo que todos os seres humanos aspiram: a uma experiência sobre-natural. A grande questão deste livro é essa: que por mais que uma pessoa conquiste tudo aquilo que quer "neste mundo" há-de sempre ter aspiração a algo fora do comum, algo de insólito. E isso toca tanto ao pobre diabo como à mulher rica e bem instalada. E toca também aos corações mais frios, que são frios mas não são invioláveis. Para esse efeito, Agustina convoca mais um personagem: um acidental afilhado de Quina, que acaba por ser para ela como um filho, ainda que a relação entre os dois seja aparentemente cordial, quase distante.
Como a própria Agustina, e como qualquer ser humano no fundo, Quina é incongruente: é a mulher pragmática que no entanto tem o seu vínculo com o divino, é uma gestora mas acaba por depositar o seu afecto num rapaz que nem era do seu sangue. E por essas mesmas incongruências, Quina é um fascínio para todos os que a rodeiam e para Germa, que a odiava e amava ao mesmo tempo. E por isso se constroi esta história. Porque somos obrigados a seguir atentamente cada capítulo: Quina é imprevisível, apesar de parecer que não. No fundo, ela não é fiel a qualquer categoria habitual, a uma estrutura definida: ela é fiel por vezes aos afectos, outras às obrigações. No fundo, é fiel apenas a si mesma, como toda a gente. Assim foi até à morte, e mesmo na morte, como vemos nos últimos capítulos.
Essa contemplação dos mecanismos íntimos que regem a vida de cada um e influenciam os outros tem sido o assunto interminável de Agustina Bessa-Luís, porque tudo o que é humano é interminável. Como viria a afirmar em "O Susto", "o eu é inimigo do conhecimento". É na verdade simples: a pessoalidade é distante ao conhecimento imparcial, dito científico, e é essa a força principal de "A Sibila". E também a sua principal fonte de modernidade e de intemporalidade: Agustina escreve fora da sua época (Poderemos talvez citar Coco Chanel: "estar na moda é estar fora dela".), porque os seus romances não se gastam na análise de estruturas sociais. Agustina prefere o pessoal ao social, prefere os mecanismos íntimos aos mecanismos que definem as massas: sabe que ninguém por dentro é igual a ninguém e que qualquer categorização sempre deixa algo esquecido. Os seus romances desenvolvem-se precisamente na tentativa de deixar esquecido o menos possível. É provavelmente isso que faz de Agustina um nome actual em qualquer época, porque da mesma maneira que o que é humano não tem fim, também não tem um tempo.
Importante é também reforçar a pessoalidade daquilo que escrevo: não penso que seja conclusivo fazerem-se estudos técnicos da prosa de Agustina Bessa-Luís, sendo a meu ver muito mais importante exporem-se leituras dela, interpretações, que façam jus à dimensão muito mais humana do que literária da sua obra. Relembro algumas palavras de Inês Pedrosa sobre Agustina:

"Agustina não dá respostas. Agustina amplia as perguntas".

Isso definirá o bom escritor. É interessar contrapor os romances de Agustina com a sua imagem pública: dela dizem ser de direita, conservadora, até salazarista (Ainda que Sophia tenha várias vezes dito que Agustina não era nem de direita nem salazarista, apenas não gostava de falar mal do governo português no estrangeiro.). No entanto, ao ler os seus romances não há nem rasto dessas características, bem pelo contrário: Agustina cria uma espécie de fotografia interior dos seus personagens, mas deixa para o leitor a interpretação dessa fotografia, "não dá respostas". Talvez por isso se possa dizer com toda a justiça que Agustina não é uma prosadora fácil, apesar da linearidade da sua prosa. "A Sibila" representa um culminar destas características que poderiam estar menos desenvoltas nos seus textos inicias.

Canção Para o Dia de Hoje

Jewel: Foolish Games (1994)

Sade: Soldier of Love

OS ELEMENTOS DO DESEJO

Sade (Pronuncia-se "sha-day".) revelou-se em 1984: o álbum chamava-se "Diamond Life" e foi difícil a partir daí não se conhecer esse maravilhoso hino que era "Smooth Operator". Sade, originária da Somália, é uma cantora de canções onde a suavidade e a sensualidade andam continuamente de mãos dadas, numa celebração do amor. Ao contrário do que acontece em muitos álbuns de estreia, "Diamond Life" não era promissor, era já a confirmação. O percurso da cantora prosseguiu com "Promise" (1985), "Stronger Than Pride" (1988), "Love Deluxe" (1992) e "Lovers Rock" (2000), além das colectâneas "Best Of" (1994) e "Lovers Live" (2002) constituido inteiramente por canções ao vivo.
Sade não é o tipo de cantora que grava muito, nem o tipo de cantora que depende tanto ou mais do que dela se diz nos jornais de música ou outros do que da própria música. Bem pelo contrário: os seus álbuns são recolhas de canções certeiras, e que falam por si só. Será uma das cantoras com um percurso mais individual e genuíno da música actual, e por isso mesmo com ela acontece algo que muitas vezes não acontece: a sua música permanece intemporal ou anacrónica, porque as suas canções fazem o mesmo sentido em 2010 que faziam em nos anos 80.



"Soldier Of Love", lançado este ano, vem pôr termo a dez anos sem originais. Perante isto, é evidente perguntar-se de Sade precisou de um tempo para assimilar o seu percurso 1984-2000, de que "Lovers Live" vem dar um perfeitíssimo testemunho. Poderá ter sido esse o caso.
O álbum abre com "To The Moon and the Sky", que será talvez a canção mais ancorada no passado. No entanto, não há motivo para alarme, porque se segue a canção "Soldier of Love", que nos vem mostrar exactamente em que consiste o som do álbum a que dá título: por um lado nota-se ainda a atmosfera que representa a identidade musical de Sade, mas algo mudou: há nestas canções algo de selvagem, de animal, porque nunca como agora a sua música soou a algo exótico, mas muito interiorizado, muito humano, muito sincero. Há na maioria das canções beats com ritmos muito demarcados, mas não o tipo de beats a que estamos habituados que chamam pela dança: estes ritmos vão mais longe, chamam pelo próprio corpo, pelo movimento, como se traduzissem essa linguagem corporal: daí que diga que estas canções têm algo de profundamente humano. São canções que parecem tornar claros os elementos do desejo. Outros exemplos perfeitos do que acabo de escrever serão canções como "Bring Me Home" ou "Long Hard Road". Nesta última, é de notar como essa "animalidade" pode inclusivamente fazer-se ouvir nas canções mais melancólicas, e "Long Hard Road" será eventualmente a mais melancólica de "Soldier of Love". E se já no passado ouvimos Sade em canções tristes, não ouvimos agora os belíssimos lamentos, como por exemplo "Jezebel": é já outra coisa, mais natural, numa postura precisamente de "guerreiro", e não esqueçamos que na canção que dá título ao disco Sade se assume como um soldado do amor. Outro exemplo de uma pungente melancolia é a canção que termina o álbum, "The Safest Place": uma história do amor que põe fim ao deserto, construida com pouco mais que uma guitarra, um contrabaixo e arranjos de cordas.
Canções como "Babyfather" ou "Be That Easy" podem, a uma primeira audição, parecer gerar uma espécie de desequilíbrio na dinâmica do disco: não por serem más canções, mas por nos soarem familiares. No entanto, desengane-se quem pensa ouvir aqui novas versões de músicas como "By Your Side": estas canções instauram uma espécie de "modernidade" da música de Sade: trata-se de pensar um pouco "outside the box": com pequenos arranjos electrónicos, de onde transpira uma espécie de alegria. Serão no entanto as canções menos interessantes do disco.


De notar são ainda os arranjos, complexos, e no entanto construidos com base em pouco mais que guitarra-bateria-baixo-saxofone-cordas. Ouçam-se "In Another Time" ou "Skin" para o confirmar: são canções em que os arranjos constituem uma parte indispensável da melodia, e no entanto, Sade não se moveu do esquema habitual das suas canções. Mas penso que é isso que acontece quando realmente se conquistou o poder de escolher o que se quer: trabalha-se da forma mais confortável sem que as canções resultem menos criativas por isso: o minimalismo não é uma limitação aqui.
"Soldier Of Love" também não contribui para que se possa fazer aquilo que até agora ainda não foi possível fazer: catalogar a música de Sade. De facto, um pouco como acontece com todos os álbuns passados, se quisermos classificar "Soldier Of Love" seremos obrigados a uma série de palavras separadas por barras. Algo assim: jazz/soul/ r&b/ sexy-hip-hop/blues/smooth jazz/classic pop/new-age (...) etc, etc, etc. No fundo, isso só favorece a cantora. É um facto: Sade está definitivamente dentro do seu estilo, daí não a podermos incluir num género ou numa tendência.
As letras mantém-se dentro das que Sade sempre escreveu, falam-nos maioritariamente do amor e da relação com o outro, com poucas palavras, só as essenciais, muitas vezes dentro do estilo story-telling que já ouvíramos em álbuns anteriores. Algum vocabulário, no entanto, ajuda a reforçar a ideia central do disco, de que o título é resumo, portanto Sade soube sintetizar bem as suas palavras numa ideia só.
Por último, penso que é importante perceber que o facto de, em 26 anos, Sade ter apenas seis álbuns de originais só a favorece: isto porque cada vez mais se percebe que o que Sade grava é apenas o essencial, de maneira que no seu percurso não há "palha". Talvez por isso mesmo "Soldier of Love" é mais um triunfo para o percurso de Sade, mais um álbum certeiro que convém ouvir repetidamente.


Le Temps Qui Reste de François Ozon

O CARÁCTER PERFEITO DA MORTE
Então, numa manhã a Morte mostrou-me o seu carácter perfeito
Isabel de Sá


Foi-me inevitável pensar em poesia ao ver, finalmente, “Le Temps Qui Reste” (2005) de François Ozon. Vejo-o anos já depois da estreia e do fecho da editora responsável pelos filmes de Ozon em Portugal: sim é isso mesmo, actualmente é impossível encontrar as versões legendadas em português dos filmes do realizador de “Sous Le Sand” e “8 Femmes”, que aliás formam com este filme uma espécie de trilogia sobre a morte, analisada de distintos pontos de vista.
Dado que não tinha nenhuma forma de ver o filme por meios legais, tive que fazê-lo através de outros menos ortodoxos. Já toda a gente percebeu que fiz, ou melhor, me fizeram o download do filme.
Mas, e era por aí que este texto ia iniciar-se com o paralelismo entre a poesia e esta brutalíssima obra de Fraçois Ozon. Ao vê-lo são inegáveis as imagens que descobrem a verdadeira poesia nas imagens desta história tão triste.





Romain (Melvil Poupaud), fotógrafo profissional aos 30 anos recebe, depois de um desmaio durante uma sessão fotográfica, o diagnóstico de um cancro, em estado avançado e com muitíssimas possibilidades do tratamento não resultar, uma vez que grande parte dos órgãos estão já afectados. Tem três meses de vida.
“Le Temps Qui Reste” é portanto o atravessar dessa condenação. Inicialmente, observamo-lo numa espécie de auto-isolamento penoso: insulta a irmã grávida, agride o namorado, sai de casa.


Parte depois para visitar a avó Laura (Jeanne Moreau), a única a quem contará a verdade. Pelo caminho conhece Jany (Valeria Bruni Tedeschi), empregada de café, que será a maior reviravolta na história, quando lhe conta que o marido é estéril, perguntado a Romain se ele estaria disposto a ser pai do filho do casal. A resposta fica em suspenso.
Quando Romain regressa a casa, Sasha (Christian Sengewald), o namorado já a deixara. Cada vez mais sozinho, Romain procura espaços comuns, ligados à infância e ao passado.
Um dos elementos que mais me leva a ver este filme como um poema filmado é precisamente a força da tristeza e do desespero- e Melvil Poupaud mostra-se nisso muito competente: não precisa de falar muito nem de se movimentar-se particularmente: as suas expressões faciais, o realismo extremo dos seus choros constantes são suficientes para dar “o murro no estômago” que, a meu ver, demarca o filme da obra de arte que “Le Temps Qui Reste” sem sombra de dúvida é. Vemos um ser humano efectivamente a confrontar-se com a sua morte e com a forma como decidiu encará-la: o silêncio.
Vê-mo-lo caminhar pela cidade, chorando desesperadamente, e mais desesperadamente ainda fotografando pequenos detalhes, como se recolhesse imagens que levasse para a morte, ainda que sabendo que tal será impossível.
A questão do choro parece-me também digna de grande referência: vemos Melvil Poupaud chorar em inúmeras cenas, sem que no entanto seja excessivo. O curioso é ver como esse choro se vai alterando, e através dele, vamos recebendo sinais de que a sua relação agora tão estreita com a morte, assunto afinal fulcral neste filme, se vai alterando. Esse é um dos aspectos que considero mais importantes em “Le Temps Qui Reste”: a sua densíssima poética, o seu tom profundamente elegíaco e desesperante. E repare-se que no filme não há grandes diálogos, e dos que há, poucos têm realmente um substrato importante para o que vemos: é um filme construído a partir do poder ilimitado da imagem, de um conteúdo que dispensa palavras. Ainda que tenha falado em poesia a propósito deste filme, e mantenho que me parece um poema filmado, da poesia refiro-me ao que possa ter de pungente e marcante, e menos das palavras que a escrever. “Le Temps Qui Reste”, poema ou não, não poderia ser um livro: necessita destas imagens, só com elas pode fazer sentido. É um dos casos em que uma imagem definitivamente vale mais do que mil palavras, porque nem toda a mestria de escrita deste mundo poderia produzir um efeito tão forte como estes planos de Ozon.
Ao reencontrar o ex-namorado, Romain pede-lhe que lhe pouse a mão no peito e diz-lhe

“Tu sens mon coeur… il bat encore”

e esse será provavelmente o diálogo mais decisivo de todo o filme: é o momento em que Roman decide aceder ao pedido de Jany. Poderá parecer um cliché a ideia do moribundo que deixa um filho, mas a verdade é que a forma como acontece consegue mesmo ser surpreendente e surpreendentemente triste, quando o vemos preso entre um sorriso e uma dor atroz, sabendo que e mulher deitada entre o seu marido e ele irão ser os pais do seu filho que ele nem irá conhecer.
Não se pode dizer que não é um filme angustiante, porque o é, profundamente. Mas é também de uma naturalidade que torna quase impossível ao espectador não se contagiar daquela angústia, e é aí que Ozon é verdadeiramente genial: é na sua capacidade de nos contaminar com o drama que nos coloca à frente: só há obra de arte onde há uma íntima agressão.
Somos nós que também nos confrontamos com a nossa morte que também está pronta a acontecer.
E o mais interessante é que, se acompanharmos o filme atentamente, vamos percebendo que Romain aceitou a sua morte, por perceber-lhe o “carácter perfeito, isento de mesquinhez” de que Isabel de Sá fala no seu poema inaugural.
Depois de uma visão mais parodística da morte com “8 Femmes”, François Ozon enveredou pelo lado mais realista da morte. E o resultado nunca poderia ter sido melhor, nem mais pungente, nem mais humano.
Um filme brutal e violento nos vários sentidos das palavras. Às pessoas mais susceptíveis à angústia só recomendo que sejam um pouco fortes, porque “Le Temps Qui Reste” merece o esforço. Definitivamente.
I´m a soldier of love
All the days of my life

I´ve been torn up inside
I´ve been left behind
So I ride
I have the will to survive.

SADE ADU
Soldier Of Love, 2010

Agustina tem destas coisas... (15)

Num povo pessimista, não o bastante para ser neurótico, nem exasperado para ser sobre-humano, depara-se-nos às vezes certo fenómeno de combustão interior e que é pouco menos que uma nova ética.
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de O Susto

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Filme para todos os dias


Le Temps Qui Reste de François Ozon

Canção Para o Dia de Hoje

The Legendary Tigerman feat. Asia Argento: "Life Ain´t Enough For You"

Des Pieds et Des Mains


Eu conheço as coisas de tu não estares
as voltas que o mundo não dá
assim tu estejas e pares.

Encostado a uma parede
despido e vegetal
encostado a uma parede, a cantar
cheio de ramos tenros e novos
incalculável.

Regina Guimarães
Tutta
1994, ed. Felício e Cabral
desenho de Ana Hatherly

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Outubro, 1949



As ruas dormem ainda. As luzes dos candeeiros, porém, já se apagaram. A casa em frente tem o ar solene e misterioso das casas desabitadas. Talvez por isso o seu jardim de palmeiras hirtas consegue um certo encanto. Ao fundo a gravata, ainda cinzenta, do rio. Passam vendedores de jornais com a sacola vazia, acompanhados de uma tossezinha seca. E velhas, vergadas de devoção, para a primeira missa. Uma mão ensonada arredou uma cortina na casa rosa, de um rosa recente de bolo de aniversário. O movimento aumenta. O camião do gelo parou em frente da leitaria.
Luísa Dacosta
Na Água do Tempo, Diário
1992, ed. Quimera
pintura de Edward Hopper

terça-feira, 20 de julho de 2010

Olga Gonçalves: Caixa Inglesa

Termino agora a leitura de "Caixa Inglesa" (1984, ed. Rolim) de Olga Gonçalves, escritora nascida em Luanda, em 1929.
Este é um livro em que a autora cruza, dentro de um certo experimentalismo, a poesia e a prosa. Relembrando "Movimento" (1972, ed. Moraes), primeira recolha de poemas de Olga Gonçalves e comparando com este livro de 1984, o que falta ao primeiro parece este ter a mais.



Segundo a nota na contracapa, Olga Gonçalves testemunhou interesse para o experimentalismo e talvez seja essa a principal fragilidade do livro de estreia: uma tendência excessiva para a estética, ligada ao minimalismo, que tornava alguns poemas apenas fôlegos rítmicos e palavrosos em que não se entendia grande conteúdo. Em "Caixa Inglesa" não existe esse minimalismo, mas muitas vezes justamente um excesso. "Caixa Inglesa" é um livro de ideias e imagens potencialmente fortes, em particular as ligadas à infância e à memória, mas de certa forma estes poemas em prosa precisavam de alguma limpidez, de menos palavras. Precisamente esse excesso torna alguns dos textos demasiado barrocos, e nalguns casos esse excesso é tão evidente que se perde o rasto à ideia para seguir as palavras.
É certo que este cruzamento entre prosa e poesia é um projecto de grande vulto, e Olga Gonçalves consegue por vezes alguns resultados mais positivos, sendo o mais interessante a questão do ritmo, conseguido pela escolha rigorosa das palavras e da pontuação. A pergunta é ainda até que ponto a perseguição do ritmo não distrai do conteúdo dos poemas.
Dos vinte e nove poemas que totalizam os dois capítulos de "Caixa Inglesa" um parece ser, de todos, o mais equilibrado: "Meia-Tarde". Neste poema são conseguidos o equilíbrio e a tensão entre a forma e a ideia, que parecem mais frágeis em grande parte dos restantes textos.
Se é verdade que esta fusão de géneros literários (Que excede a forma, claro.), já produziu em Portugal verdadeiras obras de referência- como "O Aquário" e "Movimento Perpétuo" de Fiama, "Os Passos em Volta" de Herberto Helder ou os romances de Yvette K. Centeno- no caso de Olga Gonçalves, e concretamente da sua poesia, parecem-me mais pertinentes os sonetos, onde o cânone formal ajuda a controlar a escrita, evitando que o excesso de palavras desfoque a ideia do poema. Leia-se "Só de Amor" (1975, ed. Ática), livro de referência na bibliografia da autora, totalmente constituido de sonetos, que comprovará esta ideia.

Uma Citação

Eu sei que o interior e o exterior da beleza das casas não é coincidente______ e atribuo à beleza um grau elevado de pensamento.


Maria Gabriela Llansol
Um Beijo Dado Mais Tarde
1990- ed. Rolim

Canção Para o Dia de Hoje

Anathema: Harmonium

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Bem-Vindos ao Amadorismo: Um Balanço sobre o Marés Vivas

Nunca vi nada assim.
Só ando nisto de festivais há cinco anos, já estive em alguns, mas o mais próximo que estive do Marés Vivas antes destes três dias foi num famigerado São João na Ribeira.
O público era constituido maioritariamente por bois a olhar para palácios: grandes palácios como Allison Goldfrapp, como os Placebo e os Editors: três concertos que passaram completamente ao lado de um público que está habituado a ouvir pouco mais que a Romana e a Ágata.
O melhor concerto acabou por ser o dos Goldfrapp, uma vez que a (des)organização do festival arruinou o concerto dos Placebo com o som distorcido além do aceitável e o concerto dos Editors que ficou suspenso 20 minutos porque o profissionalismo era a palavra de ordem dos responsáveis pelo Marés Vivas. Talvez se estivessem menos concentrados em quais os melhores lugares para colocar a barraca da cerveja e a decidir que brindes oferecer a quem aceitar fazer palhaçadas nos stands acabassem por pensar um pouco sobre o que é organizar um concerto respeitando os músicos: foi respeito que faltou perante os colectivos de Brian Molko e Tom Smith.
Enfim, para o ano não há mais, espero eu.

domingo, 18 de julho de 2010

Marés Vivas: Editors

FOGO SUSPENSO

O último dia do festival Marés Vivas é em definitivo a cereja em cima do bolo: um bolo de São João cheio de cantigas populares e ambiente hedonista a que não faltam bailaricos, farturas e claro, cereveja. Refiro-me ao ambiente e à organização, claro. No que respeita os concertos, há que dizer que o dos dEUS foi definitivamente excelente, ainda que fosse o de Ben Harper o mais aguardado.
Por volta das onze e meia devia haver onze pessoas e meia realmente interessadas em ouvir os Editors, que regressam a Portugal ainda com "In This Light and On This Evening", o melhor de três álbum que a banda britânica já produziu. O concerto de Ben Harper também iria estar cheio, mas por motivos diferentes...
E se por cerca de vinte minutos pareceu a essas onze pessoas e meia que iriam ter um grande concerto: o som estava excelente, Tom Smith e companhia estavam a tocar um alinhamento inteligente e com toda a qualidade mas... foi caso para realmente se desenganarem.


Mas comecemos pelo princípio. Os Editors entraram em palco com a canção "In This Light and On This Evening" cantada numa escala mais aguda do que a do disco. Prosseguiram para "An End Has a Start" resgatado ao disco anterior.
É evidente que todas as bandas com mais do que um disco sempre aproveitam os concertos para fazer uma espécie de retrospectiva, mas no caso dos Editors quanto menos saudosismo melhor, porque o terceiro álbum é que representa realmente uma identidade para a banda que hoje se pode afirmar realmente original. A confirmação chega com estas canções que tocadas ao vivo soam ainda melhor como "Eat Raw Meat/ Blood Drool" que é mesmo mesmo uma grande canção. Mais ainda, momentos como "Fingers In The Factories", "Bones" ou o fantástico "Blood" continuam a fazer todo o sentido, bem como "The Racing Rats" que poderia perfeitamente fazer parte do álbum mais recente. "Smokers Outside The Hospital Doors" seria outro momento de apoteose até que... Tom Smith começa a emitir sinais furiosamente para o técnico de som. Recomeço. Tom Smith levanta-se e atira com a guitarra para o chão. Saem todos de palco.
Durante cerca de vinte minutos, aquelas onze pessoas e meia perguntam-se se o concerto prosseguirá ou ficarão por ali, enquanto as outras vaiavam e berravam insultos para um palco vazio. Eu cá só fiquei impressionado com isto: como é que se pode fazer um festival de música e tratar os músicos com tão pouca dignidade como fez a organização do Marés Vivas? Qual é o músico sério que gosta que se seja tão pouco sério com ele? No meio disto, penso que Tom Smith teve toda a razão, e estou certo de que se fosse eu nem voltaria para cima do palco.

Mesmo assim, os Editors acabaram por de novo entrar em palco, atalhando para "Bricks and Mortar" e o obrigatório "Papillon". Tom Smith refere os choques eléctricos de que estaria a ser vítima, razão por que havia saído, e desculpam-se por ter que abandonar mais cedo o palco.
Foi muito bom enquanto durou, nas duas partes, mas a verdade é que foi insuficiente para o ter sido realmente. Momentos do disco mais recente como "You Don´t Know Love" ou "The Big Exit" faziam realmente falta a um concerto de que se espera tanto, ou pelo menos o muito a que "In This Light and On This Evening" obriga.

Fotos: BLITZ




In This Light and On This Evening





Blood




Papillon

sábado, 17 de julho de 2010

Marés Vivas: Placebo

BATTLE FOR THE SOUND

O segundo dia do Marés Vivas contribuiu consideravelmente para a atmosfera de amadorismo que me pareceu tão evidente no primeiro dia.
Eram cerca de onze e meia quando os Placebo entraram em palco, tendo saido pouco mais de uma hora depois. E quem já teve oportunidade de assistir a outros concertos só pode ter ficado desiludido. O concerto no Marés Vivas é bem capaz de ter ficado aquém do polémico concerto no Creamfields (2007) em que Brian Molko abandonou o palco ao fim de 50 minutos supostamente por ter ficado sem voz, apesar de todos terem percebido que os problemas de som foram a razão que o fez virar as costas.



A verdade é que este concerto está muito proporcional a todo o espírito do festival da Praia da Afurada, mas é muito ingrato para um álbum como "Battle For The Sun" (2009), que contém algumas das canções mais interessantes dos Placebo.
Destas canções foi possível ouvir "Ashtray Heart", "Battle For The Sun", "Breathe Underwater" ou "The Never Ending Why". Apesar de no fundo me lamentar um pouco por não ter ouvido momentos como "Come Undone" ou "Kitty Litter", o problema do concerto de ontem não foi o álbum mais recente, mas a incisão nos álbuns passados que pode ter resultado muito bem em "Nancy Boy" e até em "Bionic" (Isto falando dos mais recuados porque já se sabe que outros como "Every You and Every Me" ou "The Bitter End" nunca deixaram de ser apoteóticos.), a verdade é que noutros momentos soou frouxo, como se os Placebo estivessem a tentar reavivar um passado que, para o bem e para o mal, não faz parte do melhor que a banda tem para oferecer, pelo menos ao vivo num festival onde, já se sabe, sempre são mais convenientes as canções mais fortes e talvez imediatas.


No entanto, para um ouvido atento e conhecedor da música dos Placebo, o alinhamento foi um mal menor em comparação com os problemas de som que roçavam o insultuoso: a voz de Brian Molko apagava-se constantemente quando se ouviam os sintetizadores, as notas altas em que o vocalista é tão perito quase perfuravam os tímpanos, e em canções como "Taste In Men" ou "Meds" ou "Post Blue" as guitarras sofreram de uma incomodativa falta de nitidez.
Surpreendente foi também a simpatia de Brian Molko, de longe muitíssimo mais comunicativo do que o habitual (Good evening, Molko boys and Molko girls...), e até cómico por vezes.
Refira-se ainda o momento brutal que foi "Trigger Happy" e a cover de "All Apologies" tão surpreendente como bem inserida.
Podia ter sido pior, mas a verdade é que noutro festival facilmente seria melhor. Não deixa de ser estranho que um concerto de um álbum tão bom possa ser arruinado pela falta de profissionalismo da organização. Esperemos que "Battle For The Sun" seja tocado uma vez mais em Portugal, de preferência onde seja BEM ouvido. É que no Marés Vivas tem que se batalhar mais pelo som do que propriamente pelo sol, e isso não convém a uma boa banda.

Fotos: BLITZ



Every You and Every Me


Battle For The Sun


Trigger Happy


All Apologies

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Marés Vivas: Goldfrapp

ELECTRO-CHOQUES


Além do amadorismo da organização e do ambiente a roçar o são-joanino, o primeiro dia do festival Marés Vivas (Vila Nova de Gaia) foi marcado, em termos de música, pelo regresso de Skye Edwards aos Morcheeba e pelo concerto dos Goldfrapp, que regressam a Portugal para apresentar "Head First".
Este concerto, com dois anos de distância do anterior, no Sudoeste, vem provar duas coisas: a primeira é que os Goldfrapp são uma grande banda, a segunda é que o público português não percebe muito do assunto, e o do Marés Vivas menos ainda. A noite foi, em comparação ao SW, parada e aborrecida, o que não deixa de ser estranho porque me quer parecer que o alinhamento deste concerto era mais "festivaleiro" do que o do SW.


Mas esqueçamos o público e foquemo-nos no concerto. A verdade é que "Head First" é um disco que vem recuperar o fôlego onde o seu antecessor, "Seventh Tree" respirava calmamente. As canções, onde não deixa de ser notório um rumor de anos 80, intercalaram-se neste concerto com canções passadas que são agora transformadas, trazidas essencialmente de "Black Cherry" (2003) e "Supernature" (2006).
E talvez tenha mesmo sido "Supernature" o maior problema deste concerto: as canções são poderosas, sonantes e verdadeiramente chamativas, mas a verdade é que passaram dois discos deste esse e "Supernature" ainda é obrigatório. Se por um lado isso é um evidente sinal de que os Goldfrapp têm (pelo menos) aí um grande álbum, por outro um concerto de apresentação deixa de o ser propriamente. Claramente este era um concerto de dança, mais que outra coisa qualquer, e a melhor prova continua a ser o facto de em "Felt Mountain" (2000) e em "Seventh Tree" (2008) não se ter tocado.




Fora isso, os Goldfrapp souberam seleccionar as canções mais festivas e mais do lado electropop, tanto do álbum mais recente, como "Alive", "Dreaming", "Shiny and Warm" além do obrigatório "Rocket", quer do passado, como "Train", "Cristalline Green" que abriu o concerto em grande estilo, "Ride On a White Horse", "Number One", "U Never Know" ou o evidente "Ooh La La". Para o fim ficou a nova versão de "Strict Machine" que foi o culminar de todos os electrochoques que marcam o estilo dos Goldfrapp. Apesar do som estar demasiado alto, pareceu-me, estava assinalavelmente nítido, com a distinção perfeita entre os vários instrumentos e os vários sintetizadores, tocados pela banda vestida à anos 80.
Foi de lamentar que não houvesse encore.
Allison Goldfrapp estava fantástica como sempre, Shiny and Warm no seu poncho preto e prata e o seu estilo ébrio/perverso. Falando pouco, acabou por comunicar bem com o público através do movimento e de pequenos comentários. Escusado será dizer que apoteose foi em "Ooh La La", o único momento em que o festival se assemelhou minimamente a um festival. Não deixa de ser estranho, porque afinal a música dos Goldfrapp celebra a vida.
Como sempre, excelente.


Number One


Ooh La La


Rocket