Há alguns dias, concluí a leitura de 'O Dominó Preto', escrito por Florbela Espanca aproximadamente entre 1926 e 1927, mas publicado apenas em 1982, com um prefácio da poeta Yvette K. Centeno, concluindo assim a leitura da obra completa de Florbela. Além deste, havia um outro livro de contos escrito por Florbela, esse publicado um ano depois da sua morte, 'As Máscaras do Destino', cuja segunda edição conta com um prefácio de Agustina Bessa-Luís.
Estes dois livros correspondem a uma fase em que Florbela estava a escrever os últimos poemas de 'Charneca em Flor', que parecia impossível de publicar (E efectivamente, só veio a lume pouco depois do suicídio da autora.), e, enquanto escrevia, lentamente, alguns dos poemas que apareceriam com o título 'Reliquae' na segunda edição desse derradeiro livro de poesia, Florbela dedicava-se, para juntar algum dinheiro, a traduzir ficção francesa. Podendo parecer que terá sido o contacto com a prosa que a leva a escrever contos, a verdade é que já desde cedo Florbela escrevera alguns contos. Não coligidos pela autora em nenhum dos livros publicados, existem cinco contos, agora disponíveis na edição de bolso 'Contos e Diário'.
O primeiro, Mamã, data dos 13 anos da autora, os três seguintes estavam inseridos no manuscrito de 'Trocando Olhares' que Florbela não conseguiu publicar mas que era anterior a 'Livro de Mágoas' (1919) e existe um úlltimo conto ainda, Carta da Herdade, datado dos últimos anos de vida de Florbela.
Esta nota de leitura não tem o propósito de analisar profundamente os contos de Florbela, primeiro porque não me proponho a tão ambicioso empreendimento e segundo porque me parece que as prefaciadoras destes volumes, Yvette Centeno e Agustina, já fizeram brilhantemente esse trabalho. Aquilo que realmente me apetece referir é aquilo que estes contos dizem dessa mulher que era a um tempo pessoa e personagem, como bem explica outra prefaciadora, desta feita do seu 'Diário do Último Ano', Natália Correia.
O que acontece é que os três contos de 'Trocando Olhares' denunciam uma clara imaturidade da sua autora. Com cerca de vinte anos na altura em que os escreve, Florbela fala-nos acima de tudo de amores perfeitos que se por uma ou outra razão se perderam. A escrita em si revela já, nalgumas passagens, uma sensibilidade poética exacerbada que caracterizaria Florbela nos textos que dela se tornaram mais respeitados, os poemas, mas neste contos, o que se nota ainda é uma tonalidade idealista, por um lado, nas situações que imagina, mas também um moralismo muito tradicional que, hoje, diríamos políticamente correcto. À data em que escreve estes contos, Florbela encontra-se nos primeiros anos do seu primeiro casamento, com Alberto Moutinho e é interessante ver como, nas cartas escritas nesta época à confidente e amiga Júlia Alves, Florbela, aquela que em tantos dos poemas da mesma colectânea não publicada se revela insatisfeita, saudosa e apaixonada quase doentiamente, fala frequentemente da felicidade da vida matrimonial, como que aceitando nas cartas a vida vulgar que, nos poemas, parece não coincidir com a sua personalidade.
Assim, nestes três contos, Florbela envereda não necessariamente pelo elogio da vida de média-burguesia que era a sua, mas pelo menos pela sua defesa. Aqui, encontramos personagens essencialmente comprometidas com todo um código de valores e comportamentos que se sobrepõem a qualquer exaltação dos sentimentos. São pessoas honradas e admiráveis que aqui encontramos e, assim, estes contos ganham uma certa frieza porque, absorvidos pelos códigos tradicionalmente aceites pela sociedade, estes personagens parecem raramente atravessados por alguma humanidade.
Cronologicamente, os seis contos de 'O Dominó Preto' distam quase dez anos desses três incluidos em 'Trocando Olhares'. Quando Florbela os escreve, vive já com o seu último marido, Mário Lage, e atravessou já alguns dos maiores dissabores que marcam a sua curta vida. Além disso, publicara já 'Livro de Mágoas' e 'Livro de Soror Saudade' (1923) e escrevera a maioria dos poemas de 'Charneca em Flor', unanimamente considerado a sua obra-prima. Mas toda a intensidade que, da vida, perpassa para os poemas desse terceiro livro, parece passar completamente ao lado da escrita dos contos de 'O Dominó Preto'. Ler as obras pela sua ordem de escrita só pode causar uma certa confusão ao leitor porque, enquanto na poesia Florbela atinge vários picos de intensidade que trariam valor à sua poesia, o tempo e a vida parecem não ter passado pela escrita em prosa e os contos coligidos neste volume parecem, em muito, pertencer ao mesmo tempo dos outros três, partilhando com eles aquela mediocridade talentosa, como lhe chama Agustina, que torna os seus contos por demais comuns, acabando por, quase sempre, desiludir.
Aliás, o cojunto em si, ao ser maior do que o de 'Trocando Olhares', acaba por potenciar as fragilidades de todo o universo que aqui é explorado.
Na poesia, Florbela escreve exaurida sobre o desejo, a sensualidade e a tristeza, reclama o direito a ser humana e não apenas mulher, canta o esplendor de ter um corpo e de sentir, ou seja, arrisca. Isto é tanto mais importante, quanto a sua poesia em quase tudo é conservadora, passando completamente ao lado dos valores modernistas do 'Orpheu' e de tudo o que de mais vanguardista se fazia na altura. Florbela segue estruturas canónicas, persegue o virtuosismo a um ponto obsessivo, mas demarca-se das restantes fazedoras de sonetos pela intensidade daquilo que diz, da forma destemida como se mostra pois, escrevendo aparentemente de acordo com aquilo que era a poesia escrita pelas mulheres desse tempo, Florbela acaba por escrever contra essa mesma poesia, assim ultrapassando-a.
Assim, apenas pode desiludir-nos ver como, nestes contos, Florbela se revela a mais ordeira e vulgar das mulheres. Nestes contos, quase invariavelmente, temos os homens, que têm as suas vidas amorosas e sexuais com uma mais ou menos discreta liberdade e temos as mulheres que são ou completamente virtuosas e exemplares ou são umas megeras que desgraçam os homens. Acaba por a mulher ter, de facto, o poder, mas esse poder funciona sempre como um presente envenenado, pois acaba por a mulher ser, acima de tudo, aquela que destrói. Uma vez mais, os personagens encontram-se em pleno compromisso com determinados códigos e isso resulta em que estes persoangens não sejam pessoas, mas meros esteriotipos. Assim, por mais que a escrita continue a ser nalgumas das suas frases e das suas imagens absolutamente poética e sensível, não consegue salvar estes contos de pareceram galciais experiências de laboratório em que se experimenta determinado esteriotipo em contacto com outro para ver qual é mais forte. No fundo, é nisto que consiste toda a escrita ficcional, e é para fazer com que essa experiência não seja glacial que serve a humanidade que o escritor tenta conferir aos seus personagens mas Florbela não consegue ou não quer dar-lhes essa humanidade.
E mais surpreendente do que isto, numa escritora como Florbela, é que se estes contos representassem um código de ética, este refutaria completamente os princípios subjacentes na poesia dela, pois aqui, o grande valor a preservar é a vida do homem, do ser masculino, e a mulher é boa se ajuda a preservar essa vida e má se a faz perder-se.
Como bem assinala Yvette Centeno, neste conjunto, apenas O Crime do Pinhal do Cego parece escapar a esta tendência, uma vez que a mulher que cedeu aos desejos passionais e sexuais consegue parecer-nos humana o suficiente para que o conto, em si, não se assemelhe a uma lição de moral. E, como aponta ainda a prefaciadora, é talvez o regresso à charneca alentejana que se dá neste conto que desperta em Florbela a maior profundidade na criação dos seus personagens. A maioria dos contos passa-se no Porto e em Lisboa, e a mitificação do espaço da infância de Florbela pode, de certa forma, relembrar-nos a angústia de Cesário Verde em Lisboa, por exemplo.
Caso com contornos diferentes é o de 'As Máscaras do Destino'. Trata-se de um livro escrito em honra de Apeles Espanca, o irmão de Florbela, que havia falecido em 1927. O luto de Florbela parece em muito passar por estes contos e talvez seja isso que, nalguns aspectos, lhe confere alguma da profundidade que faltava aos contos que havia escrito até então. Apoquentada como estava com os perigos que corriam os homens e com a manutenção das morais tradicionalistas, Florbela acabava por negligenciar um pouco até os sentimentos que se propunha analisar nos seus contos. E isto não acontece com 'As Máscaras do Destino'.
A dedicatória ao irmão morto será, talvez dos mais belos e mais intensos textos escritos por Florbela e nela, como bem nota Agustina, além da agonia em que Florbela se sentia mergulhada, subliminarmente se nota um certo sentimento de culpa. O Aviador, conto que abre a colectânea, descreve precisamente a morte do irmão de Florbela, mas completamente transfigurada, de maneira a parecer uma espécie de pintura fantasiosa em movimento. O conto seguinte, A Morta, parece claramente projectar Florbela, mortificada pela perda do irmão amado e desejando ter força para fazer acordar os mortos. Os restantes contos parecem ser traçados a partir destes dois, havendo constantes projecções de Apeles e de Florbela, e criando entre eles laços distintos que passam, inclusivamente, pela pulsão erótica sublimada que se sente sempre que Florbela escreve sobre o irmão.
Se por um lado é intensificado o discurso sobre os sentimentos, a morte e o desaparecimento mais ainda parecem perpassar as personagens dos contos e, mais do que nunca, estes nos parecem como que espíritos sem corpo e sem densidade, esvaziados da multiplicidade que caracteriza o ser humano. E uma vez mais, Florbela nos apresenta a vida burguesa como modelo de estabilidade e a vida dos simples como modelo de bondade e de virtude. A figura da mãe é uma vez mais tutelar, ela é a mulher que todas as mulheres deveriam ser e, de facto, é a uma espécie de pureza virginal que parecem aspirar as boas mulheres destes contos, como em As Orações de Soror Maria da Pureza.
Agustina está convicta, e com razão, de que para ler estes contos é preciso conhecer a mulher. Mas a mulher, parece-me, fez todos os possíveis para nunca ser verdadeiramente conhecida. O seu Diário deixa bem clara a intenção de Florbela de criar uma versão ideal de si mesma e de por essa versão ser tomada.
Assim, os seus contos vêm lançar ainda mais confusão sobre uma persoanlidade que se nos apresenta em tudo estilhaçada. Florbela defende-se enquanto mulher na poesia, reivindica direitos e liberdades, ao passo que nos contos é moralista a um ponto que nos soa forçado. E será talvez isso que nos dizem estes contos. Florbela, como diz Agustina, não foi vítima do seu tempo. Diria eu que foi vítima de si mesma, até certo ponto. Ela sabia que não era como as outras mulheres, e isso mesmo dizia ao expressar-se poeticamente. Para a prosa, ela reserva os seus sentimentos de culpa e, projectando-se nas suas personagens ela diz-nos duas coisas: que temia que a sua diferença fizesse dela essa mulher desgraçada que destruía os homens e, assim, o mundo; e que aspirava a ser essa mulher exemplar e admirável, cuja vida nunca diferiria muito do ascetismo moral da vida monástica. Mas a sua poesia foi mais sentida do que vivida, uma vez que Florbela não encontrou no amor de nenhum homem, esse terreno tão pisado, o amor de um deus que desejava. Por outro lado, não viveu como nenhum dos esteriotipos de mulher que encontramos nos seus contos. Ou seja, não foi o que sentia e não foi o que queria ser. Não pôde ser livre como não pôde ser virtuosa.
Os seus contos são, assim, uma outra faceta da sua complicada estrutura. Eles representam os medos e as esperanças de Florbela e só adensam o seu sofrimento, porque nem uns nem outros chegaram a uma concretização, condenando-a assim a uma existência difusa. E se o seu Diário subliminarmente nos confirma esta ideia, a verdade é que, mesmo diarísticamente, Florbela é incapaz de se escrever objectivamente, nem pouco mais ou menos. E por isso, a pergunta mantém-se: quem era Florbela Espanca? Cada linha que escreve a torna mais confusa e o suicídio só nos mostra que ela partilhava esta confusão. Talvez sobre ela possamos parafrasear Agustina quando falava de Byron: artista demais para ser honesta.