segunda-feira, 28 de maio de 2012

[Eventualmente paso días enteros sangrando]



Eventualmente paso días enteros sangrando
(por negarme a ser madre).
El vientre vacío sangra
exagerado e implacable como una mujer enamorada.
Si los hijos no salieran nunca
del cuerpo de sus madres
juro que tendría uno ahora mismo,
para sentirlo crecer dentro de mí
hasta poseerme como en una sesión espiritista
o como si mi bebé y yo
fuéramos muñecas rusas
una llena de la otra
mamá llena de bebé.

También tendría un hijo
si ellos siempre fueran bebés
y pudiera sostenerlo en mis brazos por encima de la realidad
para que mi niño nunca pusiera los pies en la tierra.

Pero ellos llegan a ser
tan viejos como uno.

No alimentaré a nadie con mi cuerpo
para que viva este suicidio en cuotas que vivo yo.

Por eso sangro y tengo cólicos
y me aprieto este vientre vacío
y trago pastillas hasta dormirme y olvidar
que me desangro en mi negación.



Miriam Reyes
Espejo Negro
dvd ediciones, 2001
colagem de João Rios

Antuérpia... After dark...



'Any Way The Wind Blows' de Tom Barman

Os contos de Florbela Espanca


Há alguns dias, concluí a leitura de 'O Dominó Preto', escrito por Florbela Espanca aproximadamente entre 1926 e 1927, mas publicado apenas em 1982, com um prefácio da poeta Yvette K. Centeno, concluindo assim a leitura da obra completa de Florbela. Além deste, havia um outro livro de contos escrito por Florbela, esse publicado um ano depois da sua morte, 'As Máscaras do Destino', cuja segunda edição conta com um prefácio de Agustina Bessa-Luís.
Estes dois livros correspondem a uma fase em que Florbela estava a escrever os últimos poemas de 'Charneca em Flor', que parecia impossível de publicar (E efectivamente, só veio a lume pouco depois do suicídio da autora.), e, enquanto escrevia, lentamente, alguns dos poemas que apareceriam com o título 'Reliquae' na segunda edição desse derradeiro livro de poesia, Florbela dedicava-se, para juntar algum dinheiro, a traduzir ficção francesa. Podendo parecer que terá sido o contacto com a prosa que a leva a escrever contos, a verdade é que já desde cedo Florbela escrevera alguns contos. Não coligidos pela autora em nenhum dos livros publicados, existem cinco contos, agora disponíveis na edição de bolso 'Contos e Diário'.



O primeiro, Mamã, data dos 13 anos da autora, os três seguintes estavam inseridos no manuscrito de 'Trocando Olhares' que Florbela não conseguiu publicar mas que era anterior a 'Livro de Mágoas' (1919) e existe um úlltimo conto ainda, Carta da Herdade, datado dos últimos anos de vida de Florbela.
Esta nota de leitura não tem o propósito de analisar profundamente os contos de Florbela, primeiro porque não me proponho a tão ambicioso empreendimento e segundo porque me parece que as prefaciadoras destes volumes, Yvette Centeno e Agustina, já fizeram brilhantemente esse trabalho. Aquilo que realmente me apetece referir é aquilo que estes contos dizem dessa mulher que era a um tempo pessoa e personagem, como bem explica outra prefaciadora, desta feita do seu 'Diário do Último Ano', Natália Correia.
O que acontece é que os três contos de 'Trocando Olhares' denunciam uma clara imaturidade da sua autora. Com cerca de vinte anos na altura em que os escreve, Florbela fala-nos acima de tudo de amores perfeitos que se por uma ou outra razão se perderam. A escrita em si revela já, nalgumas passagens, uma sensibilidade poética exacerbada que caracterizaria Florbela nos textos que dela se tornaram mais respeitados, os poemas, mas neste contos, o que se nota ainda é uma tonalidade idealista, por um lado, nas situações que imagina, mas também um moralismo muito tradicional que, hoje, diríamos políticamente correcto. À data em que escreve estes contos, Florbela encontra-se nos primeiros anos do seu primeiro casamento, com Alberto Moutinho e é interessante ver como, nas cartas escritas nesta época à confidente e amiga Júlia Alves, Florbela, aquela que em tantos dos poemas da mesma colectânea não publicada se revela insatisfeita, saudosa e apaixonada quase doentiamente, fala frequentemente da felicidade da vida matrimonial, como que aceitando nas cartas a vida vulgar que, nos poemas, parece não coincidir com a sua personalidade.
Assim, nestes três contos, Florbela envereda não necessariamente pelo elogio da vida de média-burguesia que era a sua, mas pelo menos pela sua defesa. Aqui, encontramos personagens essencialmente comprometidas com todo um código de valores e comportamentos que se sobrepõem a qualquer exaltação dos sentimentos. São pessoas honradas e admiráveis que aqui encontramos e, assim, estes contos ganham uma certa frieza porque, absorvidos pelos códigos tradicionalmente aceites pela sociedade, estes personagens parecem raramente atravessados por alguma humanidade.


Cronologicamente, os seis contos de 'O Dominó Preto' distam quase dez anos desses três incluidos em 'Trocando Olhares'. Quando Florbela os escreve, vive já com o seu último marido, Mário Lage, e atravessou já alguns dos maiores dissabores que marcam a sua curta vida. Além disso, publicara já 'Livro de Mágoas' e 'Livro de Soror Saudade' (1923) e escrevera a maioria dos poemas de 'Charneca em Flor', unanimamente considerado a sua obra-prima. Mas toda a intensidade que, da vida, perpassa para os poemas desse terceiro livro, parece passar completamente ao lado da escrita dos contos de 'O Dominó Preto'. Ler as obras pela sua ordem de escrita só pode causar uma certa confusão ao leitor porque, enquanto na poesia Florbela atinge vários picos de intensidade que trariam valor à sua poesia, o tempo e a vida parecem não ter passado pela escrita em prosa e os contos coligidos neste volume parecem, em muito, pertencer ao mesmo tempo dos outros três, partilhando com eles aquela mediocridade talentosa, como lhe chama Agustina, que torna os seus contos por demais comuns, acabando por, quase sempre, desiludir.
Aliás, o cojunto em si, ao ser maior do que o de 'Trocando Olhares', acaba por potenciar as fragilidades de todo o universo que aqui é explorado.
Na poesia, Florbela escreve exaurida sobre o desejo, a sensualidade e a tristeza, reclama o direito a ser humana e não apenas mulher, canta o esplendor de ter um corpo e de sentir, ou seja, arrisca. Isto é tanto mais importante, quanto a sua poesia em quase tudo é conservadora, passando completamente ao lado dos valores modernistas do 'Orpheu' e de tudo o que de mais vanguardista se fazia na altura. Florbela segue estruturas canónicas, persegue o virtuosismo a um ponto obsessivo, mas demarca-se das restantes fazedoras de sonetos pela intensidade daquilo que diz, da forma destemida como se mostra pois, escrevendo aparentemente de acordo com aquilo que era a poesia escrita pelas mulheres desse tempo, Florbela acaba por escrever contra essa mesma poesia, assim ultrapassando-a.
Assim, apenas pode desiludir-nos ver como, nestes contos, Florbela se revela a mais ordeira e vulgar das mulheres. Nestes contos, quase invariavelmente, temos os homens, que têm as suas vidas amorosas e sexuais com uma mais ou menos discreta liberdade e temos as mulheres que são ou completamente virtuosas e exemplares ou são umas megeras que desgraçam os homens. Acaba por a mulher ter, de facto, o poder, mas esse poder funciona sempre como um presente envenenado, pois acaba por a mulher ser, acima de tudo, aquela que destrói. Uma vez mais, os personagens encontram-se em pleno compromisso com determinados códigos e isso resulta em que estes persoangens não sejam pessoas, mas meros esteriotipos. Assim, por mais que a escrita continue a ser nalgumas das suas frases e das suas imagens absolutamente poética e sensível, não consegue salvar estes contos de pareceram galciais experiências de laboratório em que se experimenta determinado esteriotipo em contacto com outro para ver qual é mais forte. No fundo, é nisto que consiste toda a escrita ficcional, e é para fazer com que essa experiência não seja glacial que serve a humanidade que o escritor tenta conferir aos seus personagens mas Florbela não consegue ou não quer dar-lhes essa humanidade.
E mais surpreendente do que isto, numa escritora como Florbela, é que se estes contos representassem um código de ética, este refutaria completamente os princípios subjacentes na poesia dela, pois aqui, o grande valor a preservar é a vida do homem, do ser masculino, e a mulher é boa se ajuda a preservar essa vida e má se a faz perder-se.
Como bem assinala Yvette Centeno, neste conjunto, apenas O Crime do Pinhal do Cego parece escapar a esta tendência, uma vez que a mulher que cedeu aos desejos passionais e sexuais consegue parecer-nos humana o suficiente para que o conto, em si, não se assemelhe a uma lição de moral. E, como aponta ainda a prefaciadora, é talvez o regresso à charneca alentejana que se dá neste conto que desperta em Florbela a maior profundidade na criação dos seus personagens. A maioria dos contos passa-se no Porto e em Lisboa, e a mitificação do espaço da infância de Florbela pode, de certa forma, relembrar-nos a angústia de Cesário Verde em Lisboa, por exemplo.



Caso com contornos diferentes é o de 'As Máscaras do Destino'. Trata-se de um livro escrito em honra de Apeles Espanca, o irmão de Florbela, que havia falecido em 1927. O luto de Florbela parece em muito passar por estes contos e talvez seja isso que, nalguns aspectos, lhe confere alguma da profundidade que faltava aos contos que havia escrito até então. Apoquentada como estava com os perigos que corriam os homens e com a manutenção das morais tradicionalistas, Florbela acabava por negligenciar um pouco até os sentimentos que se propunha analisar nos seus contos. E isto não acontece com 'As Máscaras do Destino'.
A dedicatória ao irmão morto será, talvez dos mais belos e mais intensos textos escritos por Florbela e nela, como bem nota Agustina, além da agonia em que Florbela se sentia mergulhada, subliminarmente se nota um certo sentimento de culpa. O Aviador, conto que abre a colectânea, descreve precisamente a morte do irmão de Florbela, mas completamente transfigurada, de maneira a parecer uma espécie de pintura fantasiosa em movimento. O conto seguinte, A Morta, parece claramente projectar Florbela, mortificada pela perda do irmão amado e desejando ter força para fazer acordar os mortos. Os restantes contos parecem ser traçados a partir destes dois, havendo constantes projecções de Apeles e de Florbela, e criando entre eles laços distintos que passam, inclusivamente, pela pulsão erótica sublimada que se sente sempre que Florbela escreve sobre o irmão.
Se por um lado é intensificado o discurso sobre os sentimentos, a morte e o desaparecimento mais ainda parecem perpassar as personagens dos contos e, mais do que nunca, estes nos parecem como que espíritos sem corpo e sem densidade, esvaziados da multiplicidade que caracteriza o ser humano. E uma vez mais, Florbela nos apresenta a vida burguesa como modelo de estabilidade e a vida dos simples como modelo de bondade e de virtude. A figura da mãe é uma vez mais tutelar, ela é a  mulher que todas as mulheres deveriam ser e, de facto, é a uma espécie de pureza virginal que parecem aspirar as boas mulheres destes contos, como em As Orações de Soror Maria da Pureza.
Agustina está convicta, e com razão, de que para ler estes contos é preciso conhecer a mulher. Mas a mulher, parece-me, fez todos os possíveis para nunca ser verdadeiramente conhecida. O seu Diário deixa bem clara a intenção de Florbela de criar uma versão ideal de si mesma e de por essa versão ser tomada.
Assim, os seus contos vêm lançar ainda mais confusão sobre uma persoanlidade que se nos apresenta em tudo estilhaçada. Florbela defende-se enquanto mulher na poesia, reivindica direitos e liberdades, ao passo que nos contos é moralista a um ponto que nos soa forçado. E será talvez isso que nos dizem estes contos. Florbela, como diz Agustina, não foi vítima do seu tempo. Diria eu que foi vítima de si mesma, até certo ponto. Ela sabia que não era como as outras mulheres, e isso mesmo dizia ao expressar-se poeticamente. Para a prosa, ela reserva os seus sentimentos de culpa e, projectando-se nas suas personagens ela diz-nos duas coisas: que temia que a sua diferença fizesse dela essa mulher desgraçada que destruía os homens e, assim, o mundo; e que aspirava a ser essa mulher exemplar e admirável, cuja vida nunca diferiria muito do ascetismo moral da vida monástica. Mas a sua poesia foi mais sentida do que vivida, uma vez que Florbela não encontrou no amor de nenhum homem, esse terreno tão pisado, o amor de um deus que desejava. Por outro lado, não viveu como nenhum dos esteriotipos de mulher que encontramos nos seus contos. Ou seja, não foi o que sentia e não foi o que queria ser. Não pôde ser livre como não pôde ser virtuosa.
Os seus contos são, assim, uma outra faceta da sua complicada estrutura. Eles representam os medos e as esperanças de Florbela e só adensam o seu sofrimento, porque nem uns nem outros chegaram a uma concretização, condenando-a assim a uma existência difusa. E se o seu Diário subliminarmente nos confirma esta ideia, a verdade é que, mesmo diarísticamente, Florbela é incapaz de se escrever objectivamente, nem pouco mais ou menos. E por isso, a pergunta mantém-se: quem era Florbela Espanca? Cada linha que escreve a torna mais confusa e o suicídio só nos mostra que ela partilhava esta confusão. Talvez sobre ela possamos parafrasear Agustina quando falava de Byron: artista demais para ser honesta.



domingo, 27 de maio de 2012

Canção para o dia de hoje



Tool: Schism (Do álbum 'Lateralus', 2001)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

[Ya-t-il une seule ligne que tu as écrite]



Ya-t-il une seule ligne que tu as écrite
qui ne puisse être retenue contre toi?
tu es ton témoin á charge
avant d'être ton juge
jouer les damnés
rien que des trucs pour fausser les données
éviter que d'autres puissent te juger
sur pièces
tu as tout falsifié
le diable ne reconnaître pas les siens
loup galeux
vêtu de laine
car les mensonges ne protègent pas du froid
et les étreintes des fantômes
ne réchauffent pas

Saguenail
Déchanter/ Abyme
2010, ed. Hélastre
vídeo com desenhos de Marilyn Manson

terça-feira, 22 de maio de 2012

A Ballad of Dreamland



I hid my heart in a nest of roses,
Out of the sun's way, hidden apart;
In a softer bed than the soft white snow's is,
Under the roses I hid my heart.
Why would it sleep not? why should it start,
When never a leaf of the rose-tree stirred?
What made sleep flutter his wings and part?
Only the song of a secret bird.


Lie still, I said, for the wind's wing closes,
And mild leaves muffle the keen sun's dart;
Lie still, for the wind on the warm seas dozes,
And the wind is unquieter yet than thou art.
Does a thought in thee still as a thorn's wound smart?
Does the fang still fret thee of hope deferred?
What bids the lips of thy sleep dispart?
Only the song of a secret bird.


The green land's name that a charm encloses,
It never was writ in the traveller's chart,
And sweet on its trees as the fruit that grows is,
It never was sold in the merchant's mart.
The swallows of dreams through its dim fields dart,
And sleep's are the tunes in its tree-tops heard;
No hound's note wakens the wildwood hart,
Only the song of a secret bird.




ENVOI


In the world of dreams I have chosen my part,
To sleep for a season and hear no word
Of true love's truth or of light love's art,
Only the song of a secret bird.

Algernon Charles Swinburne
Poems and Ballads, Second Series
1878
vídeo com pinturas de Dante Gabriel Rossetti

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ana Vieira


Espaço Maria Ondina Braga


Pouco se fala já desta mulher invulgar e discreta. Os nossos admiráveis críticos literários preocupam-se, na sua maioria, com muitas coisas, mas não com literatura. Os amigos, os interesses e a criação e manutenção dos mitos de si mesmos são prioritários, como sabemos desde sempre. Não surpreende, assim, que a morte dos escritores assinale também o seu desaparecimento desse universo literário, que deveria ser sensível mas é principalmente interesseiro.
Assim com Maria Ondina Braga, cuja morte em 2004 arrastou para um muito injusto esquecimento. Valha-nos haver ainda leitores que não a esquecem e uma cidade, Braga, que faz por recordá-la. José António Barreiros, autor do blog dedicado à escritora, chama a atenção para o Espaço Maria Ondina Braga, inaugurado ontem e que peca apenas por tardio.
Este espaço, simbólico, funciona na Rua Central, ao lado da casa onde nasceu Maria Ondina e nele podemos ter acesso a alguns objectos e a parte do espólio da escritora, a expandir nos próximos tempos. Será certamente uma das minhas visitas, a próxima vez que regressar à cidade onde nasceu Maria Ondina, e onde nasci eu também, muitos anos depois dela. Louve-se a iniciativa, e esperemos que este espaço possa contribuir, pelo menos um pouco, para manter viva a memória desta escritora que, como poucos, soube falar da humanidade com a voz discreta mas firme que exigem todos os assuntos verdadeiramente importantes.

sábado, 19 de maio de 2012

As Escandalosas Aventuras de Lord Byron

documentário apresentado por Rupert Everett

Eunice Muñoz diz Florbela Espanca



Amiga (Livro de Mágoas)
De Joelhos (Livro de Mágoas)
Sem Remédio (Livro de Mágoas)
Fanatismo (Livro de Soror Saudade)
O Meu Orgulho (Livro de Soror Saudade)
Saudades (Livro de Soror Saudade)
Ódio? (Livro de Soror Saudade)
Versos de Orgulho (Charneca em Flor)
Rústica (Charneca em Flor)
A Um Moribundo (Charneca em Flor)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Coisas de infância




O café onde costumo ir todos os dias, bem aqui perto de casa, e de cuja esplanada interior se vê o fim da cidade de Lisboa. A rádio está sempre sintonizada na M80, bastante irritante por norma, ou bastante nostálgica noutras raras vezes. A playlist é sempre rigorosamente a mesma, só muda a ordem, e regra-geral desagrada-me.
Uma das canções que por norma passam é essa que fica acima, The Logical Song, dos Supertramp. Não é música que eu prefira, no entanto, eu e os Supertramp, we go way back...  Esta canção em específico remonta ao ano de 1979, muito antes de eu existir, ao álbum 'Breakfast in America'. Uma cópia desse álbum em audiocassete andou pelo carro dos meus pais durante vários anos, costumava ser o que ouvíamos naquelas viagens mais longas, até aos Arcos ou Vila Real, quando íamos visitar família, ou algo assim. De facto, não posso dizer que seja este o som da minha eleição -falta-lhe algo de, digamos, nine-inch-naílico- mas também é facto que é uma canção que me faz lembrar aquela idade que, por um lado, era mais sufocante e, por outro, bem mais simples. Era aquele tempo em que andar de carro por sucessivas estradas e auto-estradas era vagabundear, de certa forma, por lugares que, por mais que eu não conhecesse e por mais que fossem apenas lugares perdidos às margens das estradas, multiplicavam um mundo em que vivia e que sempre parecia muito pequeno, deixando pouco mais que algum espaço para imaginar outros mundos e, com eles, outras vidas. Acho que, ainda hoje, seria muito capaz de fazer a pé a estrada até Braga sem me perder uma única vez, ou de Braga aos Arcos, de tal forma é ainda forte a memória de ter percorrido essas estradas de carro, noutros tempos, em que não havia ainda as auto-estradas que perdem em fascinação o que ganham em pragmatismo.
Raramente hoje percorro de novo essas estradas, portanto, e talvez não fosse muito fácil fazê-lo. Seria talvez reentrar por um tempo que está perdido já. O mesmo tempo em que a rotina básica era um filme ao sábado com a Chris, como o 'From Hell', que ainda vimos no cinema do BragaShopping na altura da estreia. Eram filmes por norma violentos e arrepiantes, mas cujo difícil dramatismo não deixava de ser uma fuga à clausura.
Desde sempre os poetas mitificam a infância e fazem dela uma fuga interior que salva o ser humano da cruel realidade em que vive quando crescido. Mas eu não sei, às vezes, o que é mais cruel...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Elegia Fria (com lírios inventados)



I

(Enterraram-no hoje e volto a correr para
casa. Oxalá ninguém tenha reparado nos meus
olhos secos e gelados. Solidão.)


Meti a chave na fechadura,
abri a noite
e entrei no palco onde me espero
a chorar nos espelhos
desgrenhado pelos subterrâneos do vento
da treva impura.

Solidão é teatro,
dor que se despenteia
e só parece sincera
quando a represento
diante dos mortos com insónias
sentados na plateia.

José Gomes Ferreira
Poesia IV
1970, ed. Portugália
vídeo com fotografias vitorianas post-mortem

terça-feira, 15 de maio de 2012

Canção para o dia de hoje



Não é a minha canção preferida de Trent Reznor. É, certamente, a mais conhecida dos Nine Inch Nails, ao que não será alheio o facto de dela ter feito uma versão Mr. Johnny Cash. Também Mísia fez uma versão de Hurt no seu 'Lisboarium', no lado 'Tourists', que, das três versões, será até a que gosto mais.
Quando à banda de Reznor, a minha preferência vai para outras, como Somewhat Damaged, All the Love in the World, We're In This Together, Love is not Enough, Head Down, Discipline, The Wretched ou Head Like a Hole.  Mas tenho que reconhecer uma coisa: esta é uma canção verdadeiramente intensa, de uma honestidade dolorosa e de uma poética densa, simples e desarmante. E bastava isso para que valesse a pena. Fica aqui uma tradução literal da letra de Trent Reznor:

Eu magoei-me a mim mesmo hoje,
para ver se ainda sinto,
concentrei-me na dor,
a única coisa real.
A agulha faz um buraco,
a sensação já familiar,
tentei afastar tudo isso
mas lembro-me de tudo.

No que me tornei,
meu mais doce amigo?
Todos aqueles que conheço
acabam por ir embora.
E tu podes ficar com todo
o meu império de lixo.
Eu vou-te desiludir,
vou-te magoar.

Eu uso esta coroa de merda
no meu trono de mentiroso,
cheio de pensamentos quebrados
que não posso reparar.
Sob as manchas do tempo
os sentimentos desaparecem,
tu és já outra pessoa
e eu ainda estou aqui.

No que me tornei,
meu mais doce amigo?
Todos aqueles que conheço
acabam por ir embora.
E tu podes ficar com todo
o meu império de lixo.
Eu vou-te desiludir,
vou-te magoar.

E se eu pudesse começar de novo
a mil milhas de distância,
eu proteger-me-ia
e encontraria um caminho.

terça-feira, 8 de maio de 2012

A Farda Rota



Nós que não caímos do céu
perguntamos ao primeiro que aparece.


Quando as lágrimas não chegam
todas juntas a fazer um mar
acabou o quê? O quê acabou.


Acabou o quê e respondemos
era noite à hora de partirmos
brilhava ela qual armadura
sorria qual elmo perdido
da cabeça perdida do guerreiro
peça única deste museu
onde a guerra e eu
começamos atrasados
porque outros chegaram primeiro.


Nós que não caímos do céu nem nos erguemos
rareia o ar à nossa volta e respondemos
era dia no campo de batalha
e noite no acampamento
lanças e panelas
bandeiras e lençóis.
e a se a lâmina for pura
a ferida não tem cura.


A carne reina morta ou viva
tanto faz.

Regina Guimarães
Tutta
1994, ed. Felício & Cabral
desenho de Alberto Péssimo

Letter 15 (fragmento)


Nine things are needful for a pilgrim who has far to travel. First, he must ask the way. Second, he must choose good companions. Third, he must guard against thieves. Forth, he must guard against excess. Fifth, he must hitch up his clothes and belt them in fast. Sixth, as he climbs the mountains, he must stoop. Seventh, as he comes downhill, he must walk upright. Eighth, he must ask for good men's prayers. Nineth, he must be glad to talk about God.
So it is with our spiritual pilgrimage, in wich we must seek God's kingdom and His righteousness in the perfect works of Love.

Hadewijch de Antuérpia
trad. Eric Colledge
Mediaeval Netherlands Religious Literature
1965,  Sythoff Leyden/ Heinemann London
pintura de Edward Burne-Jones

Ophélie (I)



Sur l'onde calme et noire où dorment les étoiles,,
La blanche Ophélia flotte comme un grand lys
Flotte très lentement, couchée en ses longs voiles...
_On entend dans le bois de lointains hallais.


Voici plus de mille ans que la triste Ophélie
Passe, fantôme blanc sur le long fleuve noir;
Voici plus de mille ans que sa douce folie
Murmure sa romance à la brise du soir...


Le vent baise ses seins et déploie en corolle
Ses grands voiles bercés mollement par les eaux;
Les saules frissonnants pleurent sur son épaule,
Sur son grand front rêveur s'inclinent les roseaux.


Les nénuphars froissés soupirent autour d'elle;
Elle éveille parfois, dans un aune qui dort
Quelque nid, d'où s'échappe un léger frisson d'aile...
_Un chant mystérieux tombe des astres d'or...
............................................................................

Jean Arthur Rimbaud
[Le Dossier Izimbard], Poésies Complètes
ed. Pierre Brunel, Le Livre de Poche
pintura de John Everett Millais

Um apontamento


Deixo que o silêncio que acentue. Foi um instante de silêncio, apenas, mas destes que se repetem. Os pregoeiros de voz conhecida voltaram, mas hão-de desaparecer, afastar-se. Os silêncios agradáveis dps doas de chuva tornarão. E se não tornarem...
Os pássaros já se aproximam. Foi mesmo o pio de um, que oiço de novo mas ainda afastado, que me fez apreciar aquêle silêncio que começava a reinar. Êste tempo chuvoso abafa o mundo, serve-lhe de redoma.

Irene Lisboa
Apontamentos
1943, ed. autora
pintura de Isabel de Sá

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Tene Me (fragmento)


Mesmo o ouro, o terrível, o que faz
correr baba dos dentes,
o que cai
sobre os impérios como uma mordaça
e entra nas traqueias, de maneira
que o próprio respirar sufoca os homens,
mesmo o ouro, essa febre,
se comove.
Deita-se às vezes junto aos enterrados,
cobrindo-lhes o rosto.
Há um sorriso
que constitui toda a felicidade
do morto,
amado pela sua máscara.

Hélia Correia
Apodera-te de Mim
2002, ed. Black Sun
pintura de Francesco Goya y Lucientes

terça-feira, 1 de maio de 2012

Abril 1930



28- Não tenho forças, não tenho energia, não tenho coragem para nada. Sinto-me afundar. Sou o ramo de salgueiro que se inclina e diz que sim a todos os ventos.

Florbela Espanca
Diário do Último Ano
1981, ed. Bertrand
desenho de Edvard Munch