Jogos de Redefinição
pórtico
The earliest experience of art must have been that it was incantatory, magical; art was an instrument of ritual. (...) The earliest theory of art, that of the Greek philosophers, proposed that art was mimesis, imitation of reality. [SONTAG: 2009, 3]
com este apontamento inicia Susan Sontag um dos seus ensaios mais emblemáticos, 'Against Interpretation'. Colocando a problemática da arte enquanto elemento mágico versus arte enquanto imitação da vida, Sontag segue referindo Platão: Since he considered ordinary material things as themselves mimetic objects, imitations of trascendent forms or structures, even the best painting of a bed would be only an ''imitation of an imitation'' [SONTAG: 2009,3]
Esta ideia servirá para problematizar a arte figurativa, logo à partida, mas também será útil ao analisar, como Sontag argumenta no mesmo ensaio, a arte abstracta. A Arquitectura parece ficar de fora desta equação. Enquanto toda a Pintura e toda a Escultura provêm da necessidade figurativa, que encontramos desde a Arte Rupestre, a Arquitectura nunca teve essa função mimética: trata-se de um contentor de vida, não de uma imitação dela. Mas se atentarmos na ideia de Platão de que tudo o que existe concretamente é uma imitação de elementos transcendentes, concluiremos que a Arquitectura, não sendo uma ''imitação de uma imitação'', é pelo menos a primeira dessas imitações, a que opera a transição entre o transcendente e o real.
Tentar encontrar em qualquer obra de Arquitectura os elementos que imita é uma tarefa virtualmente impossível, talvez excepto ao próprio arquitecto. Por outro lado, qualquer obra de arte se torna independente da visão do artista a partir do momento em que deixa a esfera privada. Caberá ao observador supor, interpretar e propor uma ou várias leituras de uma obra, todas elas até certo ponto válidas.
1. primitivos flamengos e flamengos contemporâneos
Uma observação da História da cultura europeia mostrará que, artisticamente, a Flandres, território hoje em parte correspondente à Bélgica, conheceu o seu primeiro apogeu entre o final do séc. XIV e meados do século XV. No resto da Europa a pintura tardo-gótica conquistava o domínio da perspectiva na Pintura, mas mantinha a mesma tradição temática, quase sempre religiosa e nitidamente fantasiada, idealizada para aludir ao carácter místico das cenas representadas.
Os Primitivos Flamengos, como ficariam conhecidos os pintores tardo-góticos daquela região, muitos ensinados pela chamada Escola de Brugge, diferenciavam-se dos restantes artistas europeus porque não basearam aquele [naturalismo] na arte heróica e idealizada da Antiguidade, mas sim na observação do mundo real. Aceitaram as particularidades da natureza imperfeita e, ao pintar, reproduziram-nas com uma fidelidade meticulosa [POTTERTON: 1998,87].
Mais resumida será a descrição que Vasco Graça Moura nos deixa num poema sobre estes pintores: para os primitivos a/ felicidade estava na minúcia/ da transcrição do real:/(...)/ (...) e a/ alegria era a serena confiança/ de se estar no mundo, podendo// copiar estas aparências [MOURA: 1998,18]
De todos os Primitivos Flamengos, talvez o mais reconhecido seja Jan Van Eyck, autor do famoso Casamento dos Arnolfini. Trata-se de uma pintura onde encontramos as minúcias de que fala Graça Moura, a atenção ao detalhe, a obsessiva imitação do real. Mas nada é assim tão óbvio: ainda não se chegou a um consenso sobre qual verdadeiramente é o momento registado: trata-se de um casamento, de uma recriação simbólica do casamento, ou de um apelo à fertilidade, encomendado por um casal que não conseguia ter filhos? Mais ainda, uma observação atenta da pintura mostra-nos que na preparação desta cena, tudo é símbolo: as laranjas e a roupa escura são sinais de riqueza, a posição dos corpos mostra o papel social de cada um dos noivos, a colocação dos tamancos aponta para o quotidiano de um e de outro, o espelho reflecte as duas testemunhas do momento.
De repente, a imitação minuciosa do real nos Primitivos Flamengos torna-se um desafio mais complexo: a realidade é manipulada e teatralizada ao ponto de quase parecer ficcionada. Ao primeiro olhar tem um esplendor simples e luminoso, mas logo nos deixa desconcertados com a carga simbólica. E talvez percamos a convicção na imitação do real, em detrimento da experimentação sobre esse real.
Entre os Primtivos Flamengos e os OFFICE Kersten Geers David Van Severen, estão seis séculos de diferença, mas também um território comum, estão várias reestruturações políticas e geográficas, mas também uma herança cultural nunca abandonada. Que se encontre no trabalho destes arquitectos uma série de pontos comuns com o trabalho dos primeiros grandes artistas flamengos não será, portanto, inusitado. Mas não parecerá, ao mesmo tempo, o exercício mais evidente.
Na tendência regular, transparente, geometrizada e repetitiva dos edifícios dos Office KGDVS haverá lugar para alguma reminiscência da estética abundante, detalhada, minuciosa e plural que caracteriza muita da pintura tardo-gótica da Flandres? Enquanto o nosso olhar se prender com o domínio estético mais imediato dos edifícios destes arquitectos, certamente não encontraremos, mas se tivermos em conta que na obra desta firma what you see is not so much what you see as what you sense [OCKMAN: 2012, 18], quando nos movemos para lá do aspecto físico dos edifícios e os entendemos enquanto elementos geradores de uma determinada percepção do mundo, ou, na óptica de Platão, enquanto imitações de qualquer coisa inconcreta, as semelhanças entre os Primitivos Flamengos e estes flamengos contemporâneos começam a surgir-nos.
Um dos trabalhos mais interessantes para observar o pensamento de Kersten Geers e David Van Severen será a Villa Schor, que é, ao mesmo tempo, um dos seus trabalhos mais discretos a nível de imagem.
O objectivo da obra era aumentar uma casa de traçado neoclássico no limite de uma zona florestal de Bruxelas. A intervenção dos Office KGDVS passa pela criação de uma plataforma sob a casa original, que fica erguida ao lado esquerdo daquilo que é, agora, o seu palco. O branco das paredes exteriores da casa é prolongado pela frente em vidro e metal do acrescento que se distingue da fachada original, ainda que a integre. Tanto o posicionamento da plataforma face à casa como a solução dos materiais elevam, fisicamente e simbolicamente o edifício original, ostentam-no: ele representa uma realidade, neste caso, um tempo, e o novo elemento demarca-se dele para o elevar, por um lado, e por outro, está consciente de que a sua presença também o altera, confere-lhe uma nova leitura. Mais impressionante, no entanto, que a solução da fachada é o desenvolvimento do aumento em planta. A maior parte do lote passa a estar ocupada por um edificado rectangular, com oito divisões, todas elas definidas por painéis de vidro e metal (à semelhança da fachada). O resultado é que cada divisão tem visibilidade sobre todas as outras.
De certa forma, o que os Office KGDVS encontram na Villa Schor é uma outra maneira de encenar o real. Nos Primitivos Flamengos, encontramos a escolha e colocação de vários elementos simbólicos, que acabavam por tornar a imagem representada numa espécie de metáfora que partia e sempre chegava ao quotidiano. Uma vez que a Arquitectura não lida com imagens estáticas mas com uma série de movimentos _a vida, no fundo _, não pode haver aqui o domínio sobre a imagem que há na Pintura. Assim, a maneira de encenar o real é colocá-lo verdadeiramente em cena. Da mesma forma que a elevação física da casa original sobre a plataforma é uma maneira de evidenciar uma realidade _a da passagem do tempo _, os painéis de vidro que abrem em volta dos compartimentos vários campos visuais, são uma forma de ostentar o quotidiano. O símbolo deixa de ser crucial para representar a realidade, porque o observador não está perante uma representação, está incluído no cenário e mais facilmente o entenderá.
Seja como for, a transparência de todo o acrescento da Villa Schor, que compreende os espaços mais devassados de uma casa (escritório, sala de jantar, cozinha, sala de estar), aponta para o prazer da realidade e do quotidiano e incita à apreciação deles. A realidade ganha assim a importância e a dignidade que lhes deram os Primitivos Flamengos quando recusaram o 'excesso heróico' da pintura que os precedia.
Mais ou menos contemporâneo de Jan van Eyck é Robert Campin, pintor a quem são atribuídas ao pintor desconhecido designado como Mestre de Flémalle. Uma das obras mais significativas deste pintor nascido em Tournai será a sua
Madona:
Neste quadro, representa-se a Virgem como uma roliça e simples rapariga flamenga que alimenta o seu bebé. A pantalha de vime, por detrás da sua cabeça, actua visualmente como uma auréola. No banco, há uns leões esculpidos, os mesmos com que tradicionalmente se decorava o trono onde Salomão sentou a sua mãe Betsabé, simbologia que equivale a predizer a Coroação de Maria. Do lado de fora da janela, vê-se uma alta igreja gótica no meio dos edifícios. Na parte direita, acrescentou-se à pintura original a representação de um armário e de um cálice para realçar o facto de que, apesar do interior simples e doméstico, não se tratava de uma mãe e de um filho vulgares [POTTERTON: 1998,90]. Esta descrição reforça o papel redefinidor que o detalhe, enquanto símbolo, tem na Pintura dos Primitivos Flamengos. É importante compreender como aquela encenação do real de que se falou acima não é um mero gesto estilístico: nela, a cena quotidiana ascende à representação mística, e a cena mística desce à realidade. Este pode até ser um gesto algo revolucionário, o de trazer o sacro para o quotidiano, principalmente tendo em conta que estamos entre os séculos XIV e XV. É para anular essa distância entre os homens e a divindade que o pintor, neste caso Robert Campin, manipula escrupulosamente a composição das suas pinturas, experimenta os limites da realidade e constrói uma poderosa ponte entre dois mundos aparentemente opostos.
Uma atitude assim pressupõe uma postura: a de que a realidade não é um elemento rígido que limita, mas sim uma matéria diversificada que pode ser trabalhada de forma a obter determinado resultado.
No seu projecto para a loja informática de Tielt (Flandres Ocidental), que inclui ainda a casa dos proprietários da loja, os Office KGDVS optam por criar dois corpos paralelepipédicos semelhantes, que se enfrentam um ao outro através de um pátio exterior. Exteriormente, os volumes são construídos através de estruturas de ferro e paredes de tijolo, material frequentemente utilizado na construção na Bélgica. Sendo que a fachada do corpo de frente se eleva a partir do plano definido pelo muro que acompanha a rua, ela dá a impressão de não ter interrompido o muro para inserir a entrada para a loja, mas de apenas ter subido um segmento desse muro à altura de um piso. A entrada desenha uma diagonal em relação ao passeio, e é a partir dessa diagonal que os dois corpos vão organizar-se. Tanto os dois volumes como o pátio estão circundados por um muro branco, que se desenha e redesenha de área para área. Resulta daqui que, por exemplo, no piso térreo não haja muita visibilidade para o exterior, ao passo que no segundo piso, a maior parte dos compartimentos tem vista para o envolvente. As aberturas de luz em ambos os volumes estão localizadas de forma a que tenham visibilidade um sobre o outro, e ambos sobre o pátio, mas não para os lados.
Um dos aspectos mais discutidos na obra dos Office KGDVS (como se pode confirmar lendo os ensaios na 2G nº 63, a eles dedicada) é a sua relação com o exterior, com a paisagem natural e construída da Flandres.
Esta paisagem é, de facto, a realidade, a contingência prévia que é impossível remover para construir um novo edifício.
Mas a postura dos arquitectos parece ser um tanto semelhante à de Robert Campin na sua
Madona. Em vez de se tornar uma entidade limitativa que tem que ser ou regularmente escondida ou regularmente revelada, os Office KGDVS transformam essa realidade prévia num jogo de manipulações e experimentações. A relação entre edifício e envolvente ora se assume, ora é anulada. Não se trata apenas de tentar equiparar duas realidades distantes, como na pintura de Campin, mas sim de estabelecer um sistema de relações diversas com uma entidade inamovível.
A casa, situada no primeiro piso do volume da frente, abre num painel de vidro para o pátio, permitindo visibilidade ainda sobre todo o volume das traseiras. No entanto, o campo visual abre-se também sobre a paisagem (de um lado, um campo e arvoredo, e do a Felix D'Hoopstraat, uma uma transversal com casas baixas de arquitectura caracteristicamente belga), o que tem muito mais sentido para a casa do que para a loja. O primeiro piso do edifício nas traseiras tem uma série de oficinas, que abrem apenas para o pátio e para o volume da frente, não havendo tanta necessidade de aproximação entre o interior e a paisagem. Neste jogo, existe sempre lugar para a surpresa, para a redefinição da casa através da sua relação com os muros exteriores e essa surpresa será sempre resultado de uma experimentação. E é essa experimentação sobre o real que, em última análise, une mais fortemente artistas como Jan van Eyck e Robert Campin ao universo arquitectónico dos Office KGDVS.
2. para uma sensualidade arquitectónica
Voltando a 'Against Interpretation', nele, Susan Sontag afirma peremptoriamente: What we decidedly do not need now is further to assimilate Art into Thought, or (worse yet) Art into Culture [SONTAG, 2009:13]. Em contrapartida, Josep Maria Montaner, num texto em que define o ensaio e a sua importância para a formação de um pensamento crítico, afirma que o ensaio consiste numa reflexão aberta (...) que lhe permite orientar-se na direcção de uma concepção multidisciplinar do conhecimento humano, de uma compreensão da cultura e da arte como um todo, inter-relacionado (...) entrelaçando referências dos mais diversos campos da cultura: pintura, escultura, arquitectura, literatura e poesia, música, antropologia, religião e ciência [MONTANER: 2007,13].
Sontag, na sua defesa de uma erótica da arte em detrimento de uma hermenêutica, era talvez a pensadora necessária a um momento da cultura, especialmente americana, em que a crítica e a interpretação se sobrepunham à arte propriamente dita, usurpando-a. 'Against Interpretation' terá sido talvez extremista o suficiente para abanar os excessos do nosso tempo. Montaner, teórico europeu de Arquitectura, revela-se menos pessimista: não precisa de reclamar a divisão entre Arte e pensamento, ou entre Arte e cultura, acredita ainda que as relações entre estes podem ser encontradas sem que se incorra no risco da usurpação.
É importante entender-se a relação dos vários campos da cultura uns com os outros, porque ignorá-la é partir do princípio que cada uma delas surge independentemente do seu contexto sociocultural _e qualquer estudo de História de Arte, por superficial que seja, nos mostrará como isto é absurdo. Sontag estaria provavelmente consciente disto, tanto quanto estava consciente de que seria preciso negar esta realidade para travar as pretensões dos críticos que tentavam ser mais artistas que o próprio artista.
O binómio Arte-Pensamento é de mais importância ainda quando sabemos que as correntes do pensamento filosófico acabam por proliferar pelo pensamento quotidiano, e ainda que muitas vezes acabem por se vulgarizar de formas deturpadas, têm uma presença insuspeitada na grande maioria dos discursos e das posturas dos indivíduos.
L'idée de l'affection qu'éprouve le Corps humain, quand il est affecté d'une manière quelconque par les corps extérieurs, doit envelopper la nature du Corps humain et en même temps celle du corps extérieur [SPINOZA: 1965, 92] diz-nos o filósofo luso-holandês Baruch Spinoza na Proposição XVI da segunda parte da sua 'Ética', proposição que complemente com o seguinte corolário:
Il suit de lá: 1º que l'Ame humaine perçoit, en même temps que la nature de son propre corps, celle d'un très grand nombre d'autres corps [SPINOZA: 1965,93]. A esta ideia sobre a multiplicidade de corpos e a sua afectação na Alma humana, acrescente-se uma outra, da Proposição XIX da mesma parte da 'Ética':
L'Ame humaine ne connait le Corps humain lui-même et ne sait qu'il existe que par les idées des affections dont le Corps est affecté [SPINOZA: 1965,97].
A ideia de assumir a importância do corpo na alma, contrariando Descartes, bem como toda uma linha de pensamento teológico desde Agostinho de Hipona, tem sido um dos aspectos mais importantes para a consolidação da importância da 'Ética' de Spinoza.
E não será de todo forçado que se encontre na Arquitectura uma presença desta ideia do envolvimento de um corpo com outros corpos, de onde, não raro, resultam obras em que a unidade do edifício não passa só pela edificação em si, mas também pela sua integração no lugar.
O exemplo eventualmente mais badalado neste campo será a Casa Edgar Kaufmann de Frank Lloyd Wright, conhecida também por Casa da Cascata. Nesta casa, concluída em 1939,
a agradável expressão do princípio do repouso onde a floresta, o riacho e a rocha e todos os elementos da estrutura são combinados de forma tão tranquila que não ouvimos rigorosamente nenhum ruído apesar de a música do riacho lá estar [PFEIFFER: 2004,53], o que se alcança,
com talvez mais drama do que qualquer outra residência privada, é a colocação do homem em relação à natureza [PFEIFFER: 2004,53]. E se é verdade que, nesta obra, Wright consegue
colocar os seus ocupantes numa íntima relação com o vale, as árvores, a folhagem e as plantas silvestres [PFEIFFER: 2004,53], conseguindo com uma eficácia ainda hoje impressionante que
a glória do ambiente envolvente [seja] acentuada, trazida para dentro, e transformada num componente da vida diária [PFEIFFER: 2004,53], é igualmente verdade que tudo isto acontece devido através de um posicionamento físico estratégico do edificado sobre a morfologia do terreno, por um lado, e por uma perspicaz escolha dos pontos da casa onde janelas e painéis de vidro devem abrir sobre a paisagem natural. De facto, a natureza é trazida para dentro, mas mais num sentido psicológico e sensorial, a colocação do habitante perante a natureza é de convivência, mas não de envolvimento físico. Evidentemente, o trabalho de Wright representa um passo revolucionário para a Arquitectura, e sem ele, muitas das experiências da Arquitectura posterior teriam sido provavelmente mais lentas e menos eficientes.
Por um lado, poucas obras terão tido um impacto tão definitivo, se hoje é praticamente impossível conceber uma relação edifício/natureza sem considerar a Casa da Cascata, que para a referir, quer para a renegar. Por outro lado, o passo de Wright, por avançado que fosse, foi, como são todos, o primeiro de outros. Porque ainda que a Casa da Cascata garantisse uma integração psicológica do exterior natural no interior da casa, esta integração não vai até às últimas consequências. A casa tem ainda os seus limites físicos, coloca-se estrategicamente, mas não invade nem se deixa invadir fisicamente pela floresta. Levar a integração às últimas consequências seria pôr em prática a proposta de Baruch Spinoza sobre as afectações do corpo.
Tomemos o edifício construído como um corpo, e sabemos que a interferência de outros corpos de diferentes naturezas conferirá ao corpo original uma consciência de si mesmo. Originar-se assim, através desta afectação cuja definição última é a própria sensualidade, um todo coerente e pensado, cuja multiplicidade se torna numa espécie de força, de intensidade do edifício.
No trabalho dos Office KGDVS, encontramos um exemplo bastante peremptório desta experimentação na Villa em Buggenhout (Flandres Oriental). No rés-do-chão, a planta em cruz grega abriga, em áreas quadradas iguais, a entrada, um vestíbulo, a cozinha e um quarto-de-banho, sendo que o que define a cruz latina na planta é precisamente que ela seja rematada por quatro quadrados, até que todo o conjunto forme um quadrado por si só, sobre o qual assentará o primeiro piso, onde encontramos a sala-de-estar, os quartos, quartos-de-banho e um escritório.
O primeiro pormenor decisivo para a relação do espaço interior com o exterior é a resolução no rés-do-chão. Que a cruz grega seja rematada por quatro espaços cobertos mas sem paredes, acaba por explodir a casa para o exterior, ainda que de uma forma contida. O espaço interior, mais do que conviver com um espaço exterior, confunde-se com ele, o que é reforçado ainda pela cobertura assegurada pelo piso superior. Há uma afectação directa e quase fusional entre um e outro e, logo a partir daí, os Office KGDVS parecem estranhamente próximos de materializar a ideia spinoziana das afectações dos corpos.
O segundo elemento que ajuda a concretizar essa ideia é a opção de conter o edifício dentro de dois muros: um primeiro que sustenta o piso superior, prolongando o inferior; e um segundo muro que protege todo o conjunto. Entre um e outro, árvores, e alguma visibilidade sobre a planície flamenga. O ajardinamento, bastante 'livre' entra pela casa, já não só psicologicamente, como víamos em Wright. Ele faz parte da casa, é mais um compartimento, como o são os quartos ou a cozinha, tendo, inclusivamente, um lugar designado na trama regular que define a casa. Quando a casa é penetrada pela natureza exterior e irregular (apesar de planeada), a própria ortogonalidade da casa é realçada. A sua regularidade acentua-se, então, mas ao mesmo tempo é atenuada pela escolha dos materiais de revestimento do piso superior: sendo escuros, quase prolongam a vegetação que cobre o muro interior. O corpo do edificado, por assim dizer, transforma-se e é mais nítido ao encontrar a presença invicta da natureza, nesse contacto sensual que Spinoza previra.
A casa de fim-de-semana de Merchtem (Brabante Flamengo) é um trabalho que extenua ainda mais esta hipótese. É eventualmente uma das casas mais experimentais dos Office KGDVS e, por isso, uma das mais importantes para compreendermos o seu pensamento.
Ao longo de todo o lote, criam-se parcelas equivalentes, ocupadas umas com edificado, outras com áreas de jardim, exteriores. Se houvesse uma definição rígida dos limites das parcelas de edificado, estaríamos perante um caso de cheio/vazio, ou de interior/exterior, articuladas numa lógica intermitente e regular. Mas não é o caso. Nesta habitação, qualquer binómio que lide com oposições será insuficiente para explicar a lógica da organização dos espaços.
Mas a atitude dos Office KGDVS, aqui, parece ser a de precisamente rejeitar esses binómios: todo o edificado parece ter sido pensado para garantir uma fluidez ao longo de todo o lote. O exterior está hierarquicamente equiparado com o interior, os jardins e a piscina são mais um compartimento da casa em que as largas portas de vidro parecem só fazer sentido quando abertas. A natureza diferente dos espaços exteriores é uma especificidade, mas não mais do que um quarto sendo especificamente um quarto, ou uma cozinha sendo especificamente uma cozinha. Os exteriores quase funcionam como salas-de-estar, como qualquer espaço, eles, a um tempo, unem e separam os espaços da casa uns dos outros. Não são um anexo exterior, não são o jardim que completa o conceito algo suburbano de casa: são espaço também, são programa e desafio ao programa _pelo menos ao mais comum dos programas.
Esta interacção é provavelmente a mais bem conseguida de todo o conjunto da obra dos Office KGDVS. A relação entre os espaços é conseguida com tal naturalidade e tal fluidez, que dificilmente se encontraria correspondente arquitectónico mais próximo às proposições de Spinoza. A casa de Merchtem mostra como a relação dos espaços tem uma componente sensual, o que, inclusivamente, contrariará a ideia pré-concebida de que, por norma, a Arquitectura é um exercício frio e racional. E pode sê-lo, de facto, se isso não significar uma exclusão da utilização dos sentidos para criar espaços mais eficazes, como acontece aqui. Nesta casa, os Office KGDVS sabem aproveitar da melhor forma o pedido do cliente _trata-se de uma casa de férias, o que significa que a sua utilização não só será mais parcimoniosa e relaxada, como significa que uma série de contingências não entram, aqui, em causa: por exemplo, o problema da chuva, bastante intransigente durante as estações frias na Bélgica.
Interessará, por último, precisamente debruçarmo-nos um pouco nessa palavra: Bélgica. Não será inconsequente a nacionalidade de Kersten Geers e David Van Severen. Se pensarmos no que é a Bélgica nos dias de hoje, há algumas questões essenciais que encontramos, e uma delas é a da dualidade. Nos conflitos entre Valões e Flamengos, nas diferenças linguísticas, nas diferenças culturais, tudo na Bélgica parece só poder ser definido através do confronto. Ao mesmo tempo, Valónia e Flandres são duas regiões autónomas, não dois países; francês e neerlandês são duas línguas, ambas oficiais; e a cultura valã não é a flamenga, mas também não é a francesa, como a flamenga não é a valã, mas também não é a holandesa. Será talvez adequado dizer que daquele confronto, resulta apesar de tudo uma junção, pode recusar-se a fusão mas não se rejeita totalmente o conjunto, talvez porque, uma vez mais adaptando livremente o pensamento spinoziano, a relação de um corpo com outro aumenta o seu conhecimento de si mesmo.
E tudo isto parece existir também na obra dos Office KGDVS: confronto e junção, diferença e conjunto. E, uma vez mais, a casa de Merchtem, na sua lógica de interiores e exteriores que se prolongam e se confundem, parece ser exemplo máximo desta vertente do pensamento dos arquitectos.
coda
Será praticamente indiscutível a qualidade dos edifícios dos Office KGDVS. Sendo jovens arquitectos belgas com uma projecção já bastante considerável, é interessante ver como a sua concepção de Arquitectura não é, pelo menos num sentido mais directo e sumário, coincidente com a concepção da maioria dos arquitectos que, neste momento, ditam a 'moda' que, gostemos ou não, existe em todas as áreas. Não parecem rendidos à sedução tecnológica, antes parecem conscientes dos seus perigos; não caem no erro de ver a extravagância formal como maneira de reafirmar a Arquitectura enquanto Arte; os seus edifícios evidenciam-se e falam por si mesmos sem precisar de se demitir do espaço em que existem ou de anular esse mesmo espaço. O trabalho dos Office KGDVS regressa aos aspectos mais básicos: à importância da imagem, à ortogonalidade, à consciência do limite que representa uma parede, à relação com a paisagem urbana ou a paisagem natural, à escala, à ligação com a vida dos habitantes. E no entanto, é um trabalho profundamente experimental. E por isso, o pensamento que se revela a casa obra construída será sempre um dos aspectos mais imprescindíveis para definir o trabalho destes arquitectos. As leituras a que a obra se oferece são múltiplas e inesperadas, o que prova a sua complexidade. Tentar perceber onde se situa esta obra face ao problema do real (da vida quotidiana) e enquanto corpo (como o define Spinoza) são dois exemplos. E talvez por serem tão variadas as leituras que podemos deslindar cada vez que voltamos a olhar para um trabalho dos Office KGDVS, se torna precisamente tão apaixonante fazê-lo.
19.7.13 - 27.7.13
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*MONTANER, Josep Maria: Arquitectura e Crítica (tradução de Alicia Duarte Penna). Barcelona, Gustavo Gili, 2007
*MOURA, Vasco Graça: O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas. Lisboa, Quetzal, 1998.
*OCKMAN, Joan: Radical Reticence. 2G, 63, 13-18, 2012
*PFEIFFER, Bruce Brooks: Frank Lloyd Wright - Construir para a Democracia (tradução de João Bernardo Paiva Boléo). Köln, Taschen, 2004.
*POTTERTON, Homan: National Gallery (Londres). Lisboa, Oceano Liarte, 1998.
*SONTAG, Susan: Against Interpretation and Other Essays. Londres, Penguin Books, 2009.
*SPINOZA, Baruch: Éthique (tradução latim-francês de Charles Apphun). Paris, Garnier Flammarion, 1965.