sábado, 30 de abril de 2011
Escassez (2)
noite acelera-nos a vida tu
encostas ao incêndio
um fogo diferente
E nesta noite tanto como
na madrugada negra e clara fonte
no incêndio do chão desamparada
da amargura faz
o que diz quem
neste chão desta aridez dormiu de
dor e amparada esperança
um fogo tão diverso que dormimos
ao incêndio encostados
e vivos
Com Unhas e Dentes
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
e sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.
Agustina Bessa-Luís: O Concerto dos Flamengos
O Que é o Espaço?
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?
O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta
Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Rosa Alice Branco: O Gado do Senhor
O ÓPIO E O POVO
Em 2002, Rosa Alice Branco reuniu num único volume, “Soletrar o Dia” (ed. Quasi), a sua obra poética desde 1988 (Ficando excluído o primeiro livro, de 1981, assinado com pseudónimo.). Desde então, dois poemas foram editados em edições de verdadeiro luxo gráfico pela Gémeo R, “A Palmeira de Kairouan” (2003) e “Amor Quanto Baste” (2005), sendo que o primeiro poema vinha já integrado na secção inédita “Soletrar o Dia” na edição da Quasi. Só em 2009, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos” (ed. Quasi, incluindo “Amor Quanto Baste”.) vem quebrar este quase-silêncio de seis anos.
Uma leitura desse livro sugere aquilo que o mais recente “O Gado do Senhor” (2009, ed. Espiral Maior.), vencedor do prémio ibérico Espiral Maior e ainda não distribuido no nosso país, vem confirmar: “Soletrar o Dia” foi o momento mais apropriado para reunir a obra da poeta desde “Animais da Terra” (ed. Limiar, 1988), porque a poesia que Rosa Alice Branco publicou no ano passado nos vem demonstrar que está completamente renovada e, nalguns aspectos, até subvertida.
Sem querer aprofundar demasiadamente um olhar sobre a obra 1988-2002 (Que compreende sete livros.), uma das características que mais ressalta na leitura da mesma é a extrema luminosidade que se faz sentir nesses versos: é uma visão que procura a luz, a beleza e a simplicidade (Que melhor prova disto que a “pesquisa” sob a forma de poesia que é “O Único Traço do Pincel” (ed. Limiar, 1997)?), e que as procura usando de uma forma muitíssimo equilibrada a sensibilidade e a inteligência, não dispensando nunca o raciocínio, as associações de ideias e a importância do pensamento e da reflexão. É também uma poesia em que nada é adquirido, tudo é continuamente questionado, codificado e descodificado, uma poesia que existe simultaneamente como elemento autónomo e elemento de ligação do individuo ao real e até às próprias palavras que constroem essa ligação, como vemos no caso de “A Mão Feliz” (ed. Limiar, 1994), onde Rosa Alice Branco explora as potencialidades do d(e)íticos.
Mas quando nos deparamos com “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos”, há características que se alteram e outras que surgem pela primeira vez. Talvez esse seja mesmo o livro mais “negro” de Rosa Alice Branco, um livro que mergulha profundamente nas problemáticas da morte, da ausência e do luto que, estando presentes nos livros anteriores, o estão agora de forma mais nítida. Também uma dimensão de algum pendor narrativo se faz sentir neste livro, logo no título completo, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos (Pensa Ela)”. Estes parêntesis surgem ao longo da maioria dos poemas do livro, e vão-nos dando indicações precisamente de reacções, comportamentos e estados de espírito face às referidas questões que são o cerne do livro.
Redondamente diferente, no entanto, é “O Gado do Senhor”. Se no livro anterior, e mesmo no seu título, poderíamos sentir uma ponta de ironia, a ironia é precisamente uma das principais linhas de força do mais recente livro de Rosa Alice Branco. Este livro é, no seu todo, uma grande sátira com as questões religiosas, mas evita esgotar-se nelas e estende-se para toda uma dimensão social, política e humana, sempre partindo do princípio que inevitavelmente estas são afectadas por aquelas.
Os títulos de alguns poemas aludem logo para este assunto: Parábola dos Talentos, Dia dos Mortos, Arca de Noé, Crescei e Multiplicai-vos ou Via Sacra, por exemplo. Além destas expressões de cariz cristão, a poeta utiliza ainda, em alguns poemas, citações de orações ou passagens bíblicas, tendo sempre o cuidado de as inverter e relacionar com universos exteriores ao catolicismo. Por exemplo em Prova da Existência da Alma:
“O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.”
(pag.35)
ou então em Sem Livro de Reclamações:
“No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.”
(pag. 48)
A visão de Rosa Alice Branco sobre a problemática aqui colocada, a do catolicismo e da sua influência sobre a vida de toda uma sociedade em que estamos incluídos, é bastante clara: não existe um deus que nos salve ou que nos origine e encaminhe. Além do mais, exclui completamente hipóteses da eternidade ou de ressurreição, o que já não é novo, visto que num dos poemas do seu primeiro livro, Rosa Alice escreve “A eternidade é só a demência do homem”. Mas esta é uma poesia altamente filosófica (Não fosse a poeta formada em Filosofia Moderna.), e portanto, não se limita a excluir a hipótese de deus. Oferece também alternativas. E se em termos de salvação, nada mais parece possível do que o amor, em termos e origem e de caminho a única resposta é a natureza. Interessa aqui relembrar o título do primeiro livro considerado da autora, “Animais da Terra”, que aliás surge agora como título de um poema. Se já nesse título poderíamos pressentir a leve ironia de nos admitir, a nós humanos, apenas como animais da terra, “O Gado do Senhor” vem colocar certezas nessa afirmação, exaltando a nossa relação com a natureza e, mais ainda, afirmar o poder da natureza sobre nós em vez do oposto, como vemos neste excerto de Água Mole em Pedra Dura
“Mastigamos o solo na erva que nos pasta”
(pag. 28)
ou no poema O Cão Que me Tinha de que transcrevo o início:
“Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber onde ia.”
(pag.15)
Em relação ao amor como salvação, Rosa Alice Branco opta por uma solução bastante interessante: transfere a adoração de um Deus para um ser humano, e para isso faz uso das expressões que usualmente manifestam a adoração pelo Deus. Serve de exemplo este excerto de A Alma na Boca dos Animais:
“(…)Vem depressa
beber o cálice sagrado. Escolhi um vinho e tanto
para a noite. Depois dispo-te a pele enquanto dizes:
toma-me, este é o meu corpo: eu sou
o meu corpo a caminho do teu. (…)”
(pag.41)
Por assim dizer, a tese que Rosa Alice Branco parece defender (Vigorosamente.) neste livro é que a ideia de Deus é fictícia, sendo que a única hipótese de sobrevivência para o animal da terra que é o Homem é aceitar a sua ligação intrínseca com a natureza, e procurar a plenitude através do amor e do desejo, que devem ser vividos através da natureza ( A “erva que nos pasta”.), funcionando isto numa espécie de círculo fechado Natureza-Homem-Amor-Natureza, um círculo fechado mas livre, porque um dos seus elos, o amor, para o ser, é necessariamente livre; o que funciona como contraponto à opressão religiosa, à falta de liberdade do catolicismo, que nos obriga à mea culpa, como lemos em Arca de Noé: “Tens que sentir a mea culpa que nos ensinaram.” (pag.42).
Como acima referi, “O Gado do Senhor”, mesmo centrando-se no assunto da religião, derrama-se também sobre outras problemáticas sociais e políticas, pois que tudo é político. Uma das que me parece abordada de forma mais pungente é a da morte. Aqui, não no sentido do luto e da ausência que encontrávamos no livro anterior, mas também ela ironizada, vista quer do seu lado burocrático, quer da visão que a religião apresenta sobre ela. Em Sem Livro de Reclamações, um dos melhores poemas desta recolha, lemos o seguinte:
“O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
(…)
A família e os demais continuam a correr aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.”
(pag.48)
Por outro lado, como disse, também a visão da religião católica sobre a morte é posta em causa neste livro. Em Receituário para as Almas lemos
“(…) Se a morte é falsa
deixa-te estar deitado. Tens um lençol de terra
e não precisas de acreditar em nada. Não é com desespero
que to peço. É mesmo por não valer a pena.”
(pag.23)
Aquilo que Rosa Alice Branco explora neste livro é um assunto explorado por já vários autores, mas creio que o faz com grande originalidade. Além das áreas acima referidas, a poeta questiona ainda a questão do sacrifício, do comportamento de fachada e do discurso ilógico que caracteriza o catolicismo. Sobre este, deixa ainda a sua máxima quanto à religião ser “o ópio do povo”:
“Como vês, a crença Nele é fervorosa e grande:
a medida exacta da nossa miséria.”
(pag.47)
“O Gado do Senhor” representa, penso, um enorme passo em frente em relação a “Soletrar o Dia”, não desprezando este, claro. E se um projecto desta natureza coloca sempre as suas dificuldades em termos de pensamento e de resolução poética, mais do que nunca, Rosa Alice Branco mostra-se muito competente no que toca a resolvê-las.
Poemas com Cinema
terça-feira, 26 de abril de 2011
segunda-feira, 25 de abril de 2011
Um poema
debaixo desta cidade. É a dor
que me faz sentir assim
por saber-te incapaz de amar.
O corpo deambula sem prender
a si o coração. Há o choro
submerso no olhar, a tristeza
que surpreende. Exilada de ti própria
hás-de acabar sob a medonha luz
e 0 rosto é já esse cadáver ou flor
apodrecida. Os lábios perfeitos
desenhados a pincel
são minúsculas fatias de carne
amortalhada.
Agora sou eu e não sou
enleada nas cinzas do passado,
no amor inútil que te dei.
O Minuto e o Tempo
este tempo.
Pela carícia da pele,
nos interstícios
dos poros, a matéria
chora: a vida, essa irrecuperável doença
apunhala-a.
Quem se apercebe
de um tal crime? O Universo?
Mas que outra coisa ele não representa
a não ser um campo de funestas
delícias
onde os sinais da escassez
marcam
em cada minuto de expansão
um pensamento de morte?
A respiração,
esse imperdoável descuido
do nosso coração
desatento?
A propósito do dia de hoje: "Só Assim Será Poema"
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.
Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.
Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.
Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.
Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.
domingo, 24 de abril de 2011
A Outra Face do Vidro (fragmento)
este horizonte,
o espaço íntegro em que a vida se move,
e no entanto a febre não teve aí o seu núcleo
-ou melhor:
o que iluminou o deserto foi então uma voz.
As coisas mudavam de sentido, a sede
estagnada
despertava; a pele caía; uma visão
de raízes aumentava
-ninguém aceita a perda-, braços
apertam água como peixes, apertam
a vida: assim
recebi essa voz que chegava pelo silêncio
dos olhos; silêncio móvel
através do qual as coisas começavam
insensivelmente
a pertencer-me; uma espiral de esquecimento
subia da praça escura
em cujo fundo
dormem as árvores. Há
decerto
em tudo isto um exorcismo; não sei
em que escala se mede
a extensão daquilo em que me transformo;
não há plasma encerrado, é
um desenho livre
que apressa os dias, mãos azuis
que sobem para a conquista
e se aninham
no beiral da alegria. A voz golpeia,
tem inflexões de talismã que estilhaçam
a dor; ouço
o riso que desenha as pupilas e fico
como se tivesse descoberto
num momento
a outra face do vidro.
sábado, 23 de abril de 2011
Outra canção para o dia de hoje
Muse: Bliss (do álbum "Origin of Symmetry", 2001)
Sobre o Lado Esquerdo
No segundo caso, o homem que não dorme pensa:"o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração".
1968, Iniciativas editoriais
sexta-feira, 22 de abril de 2011
E Se a Manhã Fosse Outra?
Sombras tardias? disseste sombras tardias?
mágoas, possivelmente serão apenas mágoas
as tuas lembranças
perdidas pelos cantos do castelo encantado,
fantasmas sem voz nem ferros, nem nada,
secos cavalheiros, secos
olhos podres, lábios mortos, desbotada língua,
magoado ar de quem não se pode mexer
e morde as suas mãos, assim,
Um poema
Não sou nenhum oceano,
não venho para te afogar.
O sol esvai-se em vento.
A areia caminha sem praia
e cada grão se faz lua
na tua cara que me olha e me busca,
demasiado nua.
Eu sou o trilho por onde sulcas.
Eu não sou nada que não esperasses.
Tudo o que a tua mão te estende,
estava escrito na tua endoderme,
no calor das tuas pernas,
nos passos infatigáveis
dos teus segundos fátuos.
Não trago nada.
Sou só água.
Venho para te afogar.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Um poema
do chão a levantamos se fez leve
maneira de outras águas
os camiões caminham para o norte
com serenos destroços
as maquinetas baças da invenção
será verão, os panos levantados;
terás no espelho a idade, o jeito quase
infeliz de ser homem;
o pouco amor te imita; e nunca
chegarás a saber que não existes.
António Franco Alexandre
A Pequena Face
1983, ed. Assírio e Alvim
fotografia de Ralph Eugene Meatyard
Agustina tem destas coisas... (24)
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de "Um Cão Que Sonha" (1997)