O JOGO DE NÓS MESMOS
Já aqui, a propósito de Amélie Nothomb falei sobre a ausência de fluidez cultural da Europa. Depois de uma investigação mais ou menos detalhada, posso dizer que não existe nenhuma tradução para português da autora, também belga, Jacqueline Harpman. Isto, apesar de Harpman, que aliás faleceu em Maio deste ano, ser uma autora bastante apreciada na Bélgica e em França, tendo inclusivamente sido laureada em 1996 pelo Prix Médicis, pelo romance 'Orlanda'.
Esta nota de leitura, no entanto, será sobre o livro seguinte, editado em 1999, 'L'Orage Rompu', romance em que a formação de Jacqueline Harpman, psicanalista de profissão, é bastante notória.
'L'Orage Rompu' fala-nos do encontro entre dois desconhecidos, a bordo do TEE entre Paris e Bruxelas. Cornélie havia-se deslocado à capital francesa para o funeral do seu ex-marido, Gustave, onde reencontra os dois filhos. Henri é um homem de negócios, que se senta perto de Cornélie, que ela imagina como sendo o mais comum dos mortais. A conversa entre os dois começa quase por acaso. Eventualmente, juntam-se à mesma mesa, a conversa passa do tom circunstancial para um tom íntimo. Em pouco tempo, Cornélie e Henri entram num jogo verbal que parte e chega às suas infâncias, às suas origens e às suas referências. O jogo, realmente, parte e chega a essas questões, mas entre partida e chegada, passa por zonas psicológicas em que a especulação ganha vantagem relativamente à verdade dos factos.
Cornélie, a narradora da história, ocupa o lugar central da trama. O texto em si oscila entre os diálogos dos dois e as memórias que ocorrem a Cornélie. Através destas duas 'formas', podemos perceber a reinvenção que Cornélie faz de si mesma, podendo também partir do princípio que o mesmo acontecerá com Henri.
Na vida de Cornélie, parece haver uma espécie de linhagem de três mulheres de importância crucial: a sua avó, a sua mãe e a sua filha. É através da comparação com estas mulheres que Cornélie se define, uma vez que, logo no início do texto, se define como uma mulher indecisa, dividida e anti-confrontacional. Mas Harpman consegue evitar com bastante eficácia os caminhos mais óbvios e mais básicos da análise psicológica. Se entendemos, por um lado, a tendência da autora para inserir a sua personagem num sistema de correlações familiares e amorosas, por outro também conseguimos ler o texto sem que isso se sobreponha à lógica ou à veracidade que, notoriamente, Harpman procura. Isto é tanto mais importante num romance como 'L'Orage Rompu', que vive da complexidade dos seus personagens, e não da complexidade do seu enredo.
Cornélie conta e reinventa o seu passado sempre através das pessoas que a rodeavam. Fala do pai, falecido precocemente, cuja profissão como gestor de empresas em via de falência, fez com que a família se mudasse frequentemente durante a infância da filha, entre a Holanda, Inglaterra e várias cidades belgas. Só após a morte do pai Cornélie passou a ter residência fixa, em Bruxelas, pnde passa a viver com a mãe e a avó. Uma e outra são figuras fortes. A mãe retoma os clientes do falecido marido e a avó leva a sua vida com uma espécie de leviandade séria, preocupada em ser resoluta face aos sofrimentos. Em plenos anos 60, Cornélie econtra-se a viver na grande cidade, atravessa as reformulações sociais, o feminismo, as revoluções sexuais, enfim, a conquista de uma certa forma de liberdade, no que diz respeito à sexualidade, aos comportamentos, ao trabalho, etc. As colegas de escola de Cornélie, cujos comportamentos são ora conservadores ora modernos, fazem-na descobrir a sua própria psicologia, e, consequentemente, o seu próprio desencaixe, com o qual acaba por ter dificuldades em lidar, durante muito tempo, e que diz essencialmente respeito à descoberta passional.
«Et l'amour, grande-mère? Faut-il aimer?» Elle m'a répondu: «Eh bien, moi, je me suis mariée, alors, je ne sais pas.»
(p.101)
apesar de 'L'Orage Rompu' ser, no geral, uma história de pendor triste, protege-se de excessos porque Harpman domina com relativa facildade uma série de processos de ironia, que reforçam a tendência especulativa que, no fundo, está sempre implicada no (re)contar duma história íntima, como o próprio Henri acabará por constatar:
Nous jouons tous un jeu. On crée un personnage, on le prend pour soi et on s'y enferme. Tout à l'heure, quand vous m'avez parlé de mon complet trois-pièces, j'ai sursauté intérieurement mais bien entendu vous n'en avez rien vu car je suis un homme d'affaires, je négocie, donc je dissimule, c'est comme le poker, on ne doit pas se révéler avant le moment utile.
(p.183)
no fundo, toda a conversa, que faz entrever uma espécie de ligação amorosa subliminar, passa por esse jogo entre o que se esconde e o que se revela, uma espécie de jogo de nós mesmos. Isto porque, como percebemos com a leitura de 'L'Orage Rompu', a própria manipulação dos factos, o eterno jogo interpretativo, não nos afastam da verdade. Porque a interpretação dos factos, sendo pessoal, acaba sendo também autobiográfica. E, por assim dizer, o que gostaríamos de ser, ou o que gostaríamos de ter sido, diz de nós tanto ou mais do que o que somos ou o que desejaríamos ter sido. E, assim, a infidelidade aos factos pode ser uma fidelidade à verdade.
Vous revêz. Tout ceci est un rêve qui se passe entre deux réalités. Nous ne sommes nulle part, nous ne savons pas par où nous passons, nous traversons une campagne toute noire, ce moment ne compte pas, c'est un leurre. Je n'existe pas. Ce que vous coyez que je suis n'existe pas, c'est une effect du hasard, une illusion d'optique qui disparaît quand on bouge la tête.
(p.191)
diz Cornélie, quando o comboio está próximo de Bruxelas. No fundo, toda a viagem, entre duas cidades, através de uma massa negra, parece uma espécie de regresso a essa infância em que a sua família se mudava constantemente, enquanto tudo ainda estava por definir, ou se redefinia constantemente. Assim, enquanto o encontro está prestes a terminar, Cornélie diz que não existe, e que tudo aquilo que deu a Henri não existe, não é verdadeiro. No entanto, apesar de ter suspendido o encontro com Henri por achar que o nascer da paixão (O romper da tempestade que dá título ao livro.) a afastara da verdade e a levara a criar uma melhor versão de si mesma, encontramo-la, no epílogo, dez anos depois recordando esse encontro.
E se, por um lado, o desenlace de 'L'Orage Rompu' nos pode parecer um tanto derrotista, é também verdade que o romance nos deixa uma noção muito clara: que a duração de uma paixão não é o que define a sua intensidade, mas sim a verdade que foi tocada nessa paixão. E assim, um encontro de duas horas, entre duas pessoas, pode ser o mais intenso de uma vida.