quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Onde o Rigor Atinge o seu Limite


Estou perto de uma encruzilhada.
Há, nela, um
cadáver de versos e uma ave.
Couberam-me por sorte
uma vez que eu própria os assassinei
e esse crime voou pelas palavras do meu sonho
varrendo o ar
aluncinado.
Ecoam ainda, os seus gritos, pelos
caminhos.
Ouvem-se as suas vozes dizer: _Esquece o teu coração pueril.
Pertences à noite e és suspeito
de loucura maior que a dos teus pesadelos _a de cravares
um punhal no remorso que te devora.
És um corvo.
Alimentas o terror e a passividade
da cova onde te permito enterrar-me viva,
para que a minha carne
possa ser consumida
pelo teu mais infame
poema.

Eduarda Chiote
Órgãos Epistolares
2011, ed. Afrontamento
imagem de Isabel de Sá

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Barbe Bleue




 
Acaba de ser lançado, evidentemente não em Portugal, o mais recente romance da ficcionista belga Amélie Nothomb, em edição da Albin Michel. 'Barbe Bleue', assim se chama o novo livro, parte e chega à história do Barba Azul. Os difíceis temas da confiança e do segredo, juntamente com a já confirmada qualidade de Nothomb para falar do conflito de uma forma lúcida, crua e inesperada, deixam-me, claro, vontade de o ler.
Desta enfant terrible das letras belgas, que muitos consideram a mais importante autora francófona com menos de 40 anos, encontram-se, traduzidos para português, 'Higiene do Assassino', 'A Cosmética do Inimigo', 'Antichrista', 'Temor e Tremor', 'Metafísica dos Tubos' e 'Ácido Sulfúrico'.

O primeiro acto revolucionário é aprender


Tenho diante de mim a grande interrogação colectiva em tropel
Sinto que estamos escassamente docentes
curvos sobre o papel
demasiado
de máquina de escrever ao lado

A agressão
de tão enorme
parece que não fere já
o povo curto
(mas bate bate
sobre o seu dorso escuro)

Procuro o volume da agressão
ergo o braço o punho
(meu braço rema no vento
virtual hélice palma)

Não sei a quem peço
vãmente
Matam-te por tuas mãos
Acorda

Ana Hatherly
Poemas de Crítica e de Revolta (1964-1966)
in Poesia 1958-1978
1980, Moraes editora
pintura de René Magritte

domingo, 23 de setembro de 2012

sábado, 22 de setembro de 2012

Fluxo



















Há quanto tempo te perdi esqueci
Do coração a areia em vagas
fixas o sangue molha
como as margens frias o
rio
que da fonte escorre ainda
como um sulco de esperma
sobre a pele
do perdido desejo traça a via

Com o manto
da terra te confundo
manto da noite que
te envolve e és
como o dia submetes-te
ao abrupto
movimento da noite sobre o céu

núcleo da névoa como um nó
de cinza
labririnto da água foz do fogo
caos irreal da
vida
mais irreal
perder-te que reter
no teu interior o amor
absorto


Gastão Cruz
Órgão de Luzes
1981, ed. &etc
fotografia de Slava Mogutin

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Indignação


 
O horror calou tudo, declararam.
Depois de Auschwitz
Continuámos a falar, porém – sem ambição.
Reconhecendo o inalcançável,
Baixando o olhar.
Pois o que pode a fala? Por que dizem
Que, cantada, faz de arma?
Se com ela não nos municiamos.
Se, com a morte de uma Grécia antiga,
Perdemos o condão de nomear
Deuses e sentimentos e até
As pequenas moléculas, enfim, nomear o real
Que, naquele caso, incluía o tremendo e a maravilha?

 
Esses, os que levavam para a praça  
Quezílias, sim, projectos e também,
E, sobretudo, uma noção de polis
E de uma paridade vigiada,
Severamente vigiada.
Os Gregos, esses
Que narravam o medo para que o medo
Se tornasse visível, prisioneiro
Na teia do poema,
Se não compreensível, pelo menos
Transformado em espectáculo – essa Grécia,
Essa Atenas perfeita, mais perfeita
Que qualquer utopia, a rapariga
Inesperadamente transformada
Numa ruína,
Esses – que não existem

 
E nos deixaram assustados, sós,
Sob o sem-rosto, sós,
Sem as ferramentas adequadas,
Sem pensamento,
Sem esses deuses temperamentais
Que tomavam partido nos combates,
Nós, os abandonados, os que não
Sabem sequer como aplacar
E a quem,
Nós, os emudecidos,
Irmanados com os sem-terra, nós,
Os futuramente esfomeados,
Bárbaros com os pés no alcatrão,
Bebedores de petróleo, como pode

 
De novo a praça,
A Ágora, juntar-nos?
 
Transformados em porcos, por feitiço,
Pela malevolência,
Exactamente
Como na Odisseia,
Não sabemos
- e os Gregos esqueceram –
Como é que tal feitiço
Se desfaz?

Hélia Correia
poema editado no 'Público' aquando da Manifestação de 22 de Janeiro de 2012, que me parece importante relembrar hoje, dia de reunião de Conselho de Estado; juntamente com este desenho do pintor flamengo James Ensor, que, para nós, terá muito sentido

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

domingo, 9 de setembro de 2012

sobre tradições

Les traditions sont bien pratiques, elles masquent le manque d'imagination.

Jacqueline Harpman

sábado, 8 de setembro de 2012

Je Suis Malade

Je ne rêve plus je ne fume plus
Je n'ai même plus d'histoire
Je suis sale sans toi
Je suis laide sans toi
Je suis comme un orphelin dans un dortoir

Je n'ai plus envie de vivre dans ma vie
Ma vie cesse quand tu pars
Je n'ais plus de vie et même mon lit
Ce transforme en quai de gare
Quand tu t'en vas

Je suis malade
Complètement malade
Comme quand ma mère sortait le soir
Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir

Je suis malade parfaitement malade
T'arrive on ne sait jamais quand
Tu repars on ne sait jamais où
Et ça va faire bientôt deux ans
Que tu t'en fous

Comme à un rocher
Comme à un péché
Je suis accroché à toi
Je suis fatigué je suis épuisé
De faire semblant d'être heureuse quand ils sont là

Je bois toutes les nuits
Mais tous les whiskies
Pour moi on le même goût
Et tous les bateaux portent ton drapeau
Je ne sais plus où aller tu es partout

Je suis malade
Complètement malade
Je verse mon sang dans ton corps
Et je suis comme un oiseau mort quand toi tu dors

Je suis malade
Parfaitement malade
Tu m'as privé de tous mes chants
Tu m'as vidé de tous mes mots
Pourtant moi j'avais du talent avant ta peau

Cet amour me tue
Si ça continue je crèverai seul avec moi
Près de ma radio comme un gosse idiot
Écoutant ma propre voix qui chantera

Je suis malade
Complètement malade
Comme quand ma mère sortait le soir
Et qu'elle me laissait seul avec mon désespoir

Je suis malade
C'est ça je suis malade
Tu m'as privé de tous mes chants
Tu m'as vidé de tous mes mots
Et j'ai le coeur complètement malade
Cerné de barricades
T'entends je suis malade


Dalida
 
vídeos com a interpretação original de Dalida e a versão de 1994 de Lara Fabian

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A Basílica de Notre-Dame du Saint-Cordon

 
Na cidade de Valenciennes, no norte de França, há uma pequena basílica do século XIX que mais parece uma peça de barro lambujada, ou um desses moínhos de areia molhada que erguemos à beira-mar. Tem o aspecto de um sólido que liquesce devagar, as arestas boleadas, os elementos esboroados, tudo ameaça desfazer-se a um breve tocar e não resta outra solução que não seja impedir as pessoas de entrar, esperar que de uma vez por todas o monumento se esfarele. A razão de tudo isto é evidente: o uso, na construção, de uma pedra imprópria para templos que se querem pelos templos.
 
Olho a fotografia de dois amantes, abraçados, sorrindo-se, com a Notre-Dame de Valenciennes em pano de fundo. É o começo do Outono, a julgar pelas roupas, o chão molhado, a cor do céu. A basílica, creio, ainda lá está nessa cidade desengraçada e triste que nenhum turista, com o juízo inteiro, se lembrará de visitar duas vezes. Demoliram primeiro que tudo os amantes.
 
À fotografia guardo-a de novo, mas agora mais fundo dentro da caixa.
 
 
Miguel-Manso
Santo Subito
2010

[Le soleil n'est peut-être là]


Le soleil n'est peut-être là
que pour protejer le théâtre d'ombre
du feuillage sur la page de terre
calligraphie frémissante de la vie
que n'a pas à se justifier
Des lettres en arabesques
que je trace obstinément
sans doute pourrait-on reconstituer
l'arbre touffu de la pensée
s'il y avait qualque luimère derrière
mais j'ecris à l'encre de Chine
sur du papier de nuit

Saguenail
Le Peu de Chose
2009, ed. Hélastre
desenho de Henri Michaux

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Gonçalo Byrne por Paulo Coelho (Col. Arquitectos Portugueses)

No ano passado, a QuidNovi editou uma colecção de pequenas monografias sobre arquitectos portugueses. A colecção chama-se assim mesmo, Arquitectos Portugueses e é, à partida, uma excelente ideia. Sabemos que Portugal não prima nem por valorizar a cultura própria e a Arquitectura não é excepção. Bem pelo contrário, a maioria das monografias que encontramos são sempre sobre os suspeitos do costume e escusado será dizer mais seja o que for.
Aliás, a título de aparte, diga-se que se há alguma coisa que caracteriza profundamente a cultura portuguesa é a sua tendência para os semi-deuses, para a idolatria cega a um ou dois nomes, idolatria essa que faz esquecer todos os outros, independentemente de terem um trabalho (cultural, entenda-se) bom ou mau.
E se isto é característica muitíssimo portuguesa, há que louvar a ideia de fazer uma colecção de monografias sobre arquitectos portugueses. Ainda que se trate de pequenas monografias, seriam, na pior das hipóteses, boas introduções a um leque de arquitectos que vá além de Álvaro Siza e de Eduardo Souto de Moura e, portanto, permitiriam traçar uma imagem mais alargada da Arquitectura em Portugal.
O 11º volume desta colecção é sobre o arquitecto Gonçalo Byrne. Byrne está longe de ser um arquitecto votado a qualquer tipo de secretismo, já que algumas das suas obras públicas estão longe de passar despercebidas, mesmo que o nome passe. No entanto, o que encontramos na bibliografia deste livro é no mínimo angustiante: a lista apresenta seis obras utilizadas que têm isto de interessante: três são de edição italiana, uma espanhola e duas portuguesas. As edições portuguesas são um catálogo e uma revista. Uma das edições italinas já teve direito a tradução portuguesa, mas o facto continua à vista: pouco em Portugal se escreveu sobre Gonçalo Byrne.
Numa situação assim, a publicação desta monografia, nem que, como se disse, ela consistisse apenas numa introdução à obra do arquitecto, seria ainda mais louvável e teria ainda mais significado, uma vez mais cultural.
Mas não é o caso.
O volume é organizado e introduzido por Paulo Coelho, não o escritor brasileiro, mas um arquitecto formado pela Faculdade do Porto, mas com uma carreira ligada principalmente ao design. A incompetência de Coelho para trabalhar sobre Byrne sente-se logo na Introdução em que, ao que parece, introduzir a obra do arquitecto não é a prioridade do autor. Coelho começa bem, enumerando uma série de aspectos mais decisivos para a definição de uma Obra, muitos deles declarados pelo próprio Gonçalo Byrne. No entanto, quando chega a altura de escrever uma pequena conclusão em que se explicasse como as preocupações citadas contribuíram para a construção de uma obra relevante, Coelho escreve o seguinte
 
Com quase cinquenta anos de prática profissional, Gonçalo Byrne tem desenvolvido, com metódica continuidade projectual, uma obra segura e com crescente apuro de preocupações com o território e a cidade. Sendo um dos arquitectos de Lisboa mais conhecidos e apreciados no exterior, é também aquele que mais se aproximava, em termos de atitude e de propostas formais, da chamada "Escola do Porto".
[p.9]
 
daqui, podemos depreender o seguinte: que a obra de Gonçalo Byrne, cujas características haviam sido explicadas, é boa porque, apesar do arquitecto se ter formado na antiga ESBAL, ele se aproxima em determinados aspectos da Escola do Porto. Isto porque um arquitecto em Portugal não pode ter uma obra segura e com crescente apuro de preocupações que seja conhecid[a] e apreciad[a] no estrangeiro se não for da Escola do Porto ou se, não sendo por ela formado, pelo menos se aproximar dela.
Evidentemente, pode parecer que estou a fazer uma leitura um tanto literal ou até de má-fé daquilo que o organizador do volume escreve. No entanto, mais à frente, encontramos a confirmação de que não se trata nem duma leitura muito literal nem duma leitura movida por má-fé. Ao escrever algumas notas sobre um conjunto de casas geminadas em Casal Figueiras (Setúbal), eis o que lemos
 
Byrne coloca [...] uma sequência de casas geminadas com dois andares, realizada contemporaneamente à famosa malha da Malagueira em Évora, assinado [sic] por Álvaro Siza Vieira
[p.10]
 
é muito vulgar e correcto que se utilizem comparações destas em ensaios. Por norma, utilizam-se por duas razões: ou se cita uma obra que influenciou aquela de que se fala, ou então citam-se obras realizadas ao mesmo tempo, de maneira a dar uma ideia do contexto em que a obra surge. O problema com a compração estabelecida por Paulo Coelho é que não responde perante nenhuma destas hipóteses: a malha da Malagueira não pode ter influenciado particularmente Byrne, porque é mais ou menos cueva; e se o objectivo é contextualizar as casas de Casal Figueiras, citar um exemplo é insuficiente, seriam precisos mais alguns.
Portanto, este fragmento do texto serve precisamente o mesmo propósito que o outro: o de aproximar Byrne da Escola do Porto e excluir a ideia de que outras escolas possam formar arquitectos de referência.
Por alguma razão a cultura portuguesa parece não evoluir, mesmo quando cresce. A mentalidade que a Introdução de Paulo Coelho revela é, de facto, um pouco aquela que a própria Escola do Porto atravessa desde há muitos anos, uma mentalidade extremamente portuguesa: vivem voltados para um passado glorioso que não deixa de ser passado, mas autoproclamam-se modernos por inovarem nas coisas menos importantes. Para mais sobre este assunto, leia-se O Caso Mental Português de Fernando Pessoa. É uma análise da cultura portuguesa da época e, para nossa amargura, uma análise da cultura portuguesa de hoje, que pouco ou nada mudou desde 1932, quando o texto veio a lume pela primeira vez.
A realidade, que interessou pouco a Paulo Coelho, é outra: Gonçalo Byrne, nascido em 1941 em Alcobaça, fez o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes Lisboa e a partir daí tem, efectivamente, construído uma obra original e segura em Portugal e lá fora.
No entanto, e isso não mereceu particular referência a Coelho, Byrne não se limitou a ser arquitecto: tem um longo currículo como professor em Arquitectura: na Árvore do Porto, em Coimbra, na Universidade Autónoma de Lisboa e no ISCTE também em Lisboa; e ainda em Lausanne (Suíça), Leuven (Bélgica), Barcelona (Espanha), Nancy (França), Veneza (Itália), Graz (Áustria), em Harvard, Pamplona (Espanha), Mendrisio (Suíça), Navarra (Espanha) e Alghero (Itália). Estas listas são atiradas para a Cronologia, no final do volume, quase sem referência na Introdução, o que significa negligenciar um outro lado do trabalho de Byrne, pois o constante, ou contínuo mesmo, envolvimento do arquitecto com as Universidades e com a vida académica implica sempre um papel activo na formação cultural de futuros arquitectos, e, mais importante ainda do que isso, um papel activo na tentativa de recriar e tornar eficiente e evoluída (Como se disse, há uma diferença significativa entre crescer e evoluir.) uma verdadeira cultura arquitectónica, que falha largamente a Portugal, sendo esta monografia de Paulo Coelho um exemplo crasso da fragilidade da cultura arquitectónica em Portugal, que começa muitas vezes pelos próprios arquitectos, concentrados em alimentar o mito de si mesmos _ou daqueles que são já mito e não convém deixar de adorar _mais do que em fomentar uma cultura.
Se a Introdução vale alguma coisa, é pela inclusão de três textos assinados por Gonçalo Byrne em que a sua percepção e as suas preocupações em Arquitectura são referidos e explicados, de uma forma relativamente sintética e adequada. A leitura desses textos será muito mais orientadora do que a Introdução propriamente dita, para depois vermos as obras seleccionadas para apresentação nesta monografia.
Relativamente à secção de Projectos, deixo algumas notas: antes de mais, uma nota bastante positiva para a inclusão de desenhos do arquitecto, que nos permitem observar a noção de espaço e as prioridades dele no momento de iniciação do projecto, pois todos esses aspectos estão por demais presentes nos desenhos. As fotografias também são boas, focando frequentemente o interior dos edifícios e evitando esgotar-se em mostrar o aspecto exterior/estético deles. No entanto, há que assinalar que as plantas, cortes e alçados surgem sem indicação de escala, e em dimensão bastante reduzida, o que, nalguns casos inviabiliza a leitura desses desenhos técnicos. Nalguns casos (Por exemplo, a Casa nel Parco ou o Edifício Estoril-Sol.) os projectos são apresentados sem qualquer planta útil ou mesmo sem planta alguma, o que se torna um tanto difícil de compreender num livro de Arquitectura.
Os textos de Paulo Coelho não aprofundam muito, como não poderiam aprofundar numa edição desta natureza, mas revelam-se mais ou menos úteis, traçando na maioria dos casos bons retratos escritos dos edifícios. Se há uma falha nestes textos é de não tentarem traçar propriamente uma ligação entre o pensamento de Byrne, expresso em vários textos, e a obra e até de não traçar muito fortemente ligações entre umas obras e outras. Os projectos são analisados num caso-a-caso, mas não investem em especificar as continuidades que existem de umas obras para as outras. Valem, portanto, as descrições precisamente assim, como descrições das obras. Outra coisa que surpreende é a maneira como estão escritos os textos sobre obras construídas no estrangeiro. Temos a Sede da Província do Brabante Flamengo em Leuven (Bélgica), a Casa nel Parco em Jesolo (Itália) e a requalificação do Quarteirão em Ospedaletto em Veneza (Itália). O que surpreende nestes textos é que Coelho, que na Introdução se mostrava tão pródigo em contextualizar obras, não seja capaz de analisar ou de sequer referir aquilo que a Arquitectura belga ou italina tenha tido de ponderante ou de influente nas obras que Byrne projectou para esses países. No caso do quarteirão em Ospedaletto, há referências ao gótico predominante no terreno, mas essa referência não vai além de si mesma, perdendo-se qualquer oportunidade de entender em que é que a escala, o traçado ou até a ideologia do período Gótico tiveram de importante no projecto de Byrne.
Excepção a tudo isto é o longo texto que explica o Museu Nacional Machado de Castro (Coimbra), não por ser longo, mas por tocar precisamente em quase todos os aspectos mais importantes para explicar uma obra por demais complexa tanto a um nível conceptual como a um nível construtivo.
Só é de lamentar que, por exemplo, a requalificação da zona evolvente do Mosteiro de Sta Maria de Alcobaça ou o invulgar conjunto de moradias em Óbidos não tenham tido tão minucioso tratamento (Assinale-se uma vez mais que talvez a natureza da edição não o tenha permitido.).
Outra coisa ainda que me parece que valerá a pena dizer, mas que não é uma crítica directa a este livro, uma vez que se trata de uma prática corrente na edição de livros de Arquitectura em Portugal: nota-se uma quase completa negligência daquilo que possa ser o pensamento e a cultura dos arquitectos. Escasseiam as referências a textos escritos pelos autores, a publicações em que tenham estado envolvidos, e muitas vezes até à importância que outros arquitectos e mesmo outros artistas ou pensadores tiveram para aqueles de quem se fala. Este desinteresse a que se vota a formação intelectual do arquitecto justifica muitas vezes a pobreza das análises que sobre eles se escrevem.
Para concluir, retomarei um pouco aquilo que disse na introdução desta nota de leitura. Pouco de verdadeiramente aprofundado se escreveu sobre Gonçalo Byrne em Portugal. Ironicamente, o nosso país tem alguns arquitectos dignos de análise e de interesse (Alguns, apenas: Fernando Távora, Manuel Taínha, Francisco Keil do Amaral, Cassiano Barbosa e Arménio Losa, Inês Lobo, entre vários outros.), no entanto, aqueles que efectivamente organizam edições com maior amplitude preferem debruçar-se sobre aqueles que já deixaram de ser arquitectos para serem semi-deuses, e não vale a pena fingir que não estou a falar de Álvaro Siza e de Souto de Moura. No que isto resulta é na quase ignorância em relação aos restantes nomes que formam o universo da Arquitectura em Portugal. É preciso não nos esquecermos que estes livros não devem ser escritos no sentido de serem lidos por um público especializado: é preciso que a cultura arquitectónica exista fora do círculo mais restrito. E portanto, é assim que estamos: em Portugal há dois semi-deuses e não há cultura arquitectónica. E o resultado é que essa fragilidade cultural, cuja consequência mais directa é a total ausência de sentido crítico relativamente à Arquitectura, não se fará sentir só no público não especializado (Onde muitas vezes estão os clientes.), mas também nos próprios arquitectos ou naqueles que escrevem sobre Arquitectura, que, profundamente incultos, se encontram apenas capazes de reforçar os mitos que já existem, e que, cada vez que tentam ter um discurso minimamente analítico ou crítico fazem a triste figura de beatas que se ajoelham na missa sem da Bíblia conhecerem mais que aquilo que o padre lê. É o que acontece com este livro e é pena, porque um arquitecto como Gonçalo Byrne mereceria mais.
 
 
fotografia da Reitoria da Universidade de Aveiro (1992)

Fotografia da Sede de Província do Brabante Flamengo, Leuven (Bélgica) (1998)

Planta do conjunto de moradias em Óbidos (2004)
 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

dEUS: Following Sea

A FORTE CORRENTE

Há fases em que um artista se encontra mais frenético e é capaz de produzir em muito menos tempo muito mais trabalho. Que os dEUS regressem, menos de um ano depois de 'Keep You Close' (2011), aos discos surpreendeu muita gente. Esta banda de Antuérpia tem sido das mais popularizadas em Portugal, sem no entando se poder dizer propriamente que sejam populares. Serão, quando muito, uma espécie de banda de culto. O experimentalismo que caracteriza a sua música _e que a caracteriza cada vez mais, ao contrário do que seria de esperer_ pode muito bem ser a razão pela qual um público verdadeiramente alargado não vai aderir àquilo que eles fazem.
Pessoalmente, conhecia o nome, mas não era particularmente afeiçoado àquilo que estes belgas faziam, e que conhecia até 'The Ideal Crash' (1999). Recentemente, ouvi os álbuns lançados entre 2005 e 2011 e encontrei de facto aquela intensidade que, a meu ver, não era completamente conseguida nos primeiros álbuns que, apesar de conterem já embrionariamente aquilo que os posteriores revelariam, não tinham ainda o nível de perfeição que se sente, principalmente, em 'Vantage Point' (2008) e em 'Keep You Close'.
 
 
Como se disse, 'Following Sea' surgiu em tempo-record, cerca de onze meses após o álbum anterior. As duas hipóteses mais cépticas que se colocariam numa situação assim seriam que, ou este álbum seria mais do mesmo, ou que, tentando inovar, resultaria mal conseguido por falta de tempo.
Começamos a ouvir o álbum por Quatre Mains e imediatamente colocamos uma terceira hipótese, muito possível também, que é a de os dEUS estarem numa fase mais criativa, o que significa que, como se disse na introdução, possam ser capazes de produzir mais material de qualidade em menos tempo. Esta canção é a primeira em que Tom Barman canta em francês (Um pouco estranho, dado que a banda é flamenga.), e nela se notam, não só pela língua, algumas influências de Serge Gainsbourgh e mesmo de Jacques Brel: a voz cava e gutural de Barman alterna entre o canto e a declamação, num ritmo acelerado e numa tonalidade bastante sombria. Quatre Mains é de facto uma canção muito moderna, onde o experimentalismo arriscado se encontra com uma quase tendência para o hip-hop, um pouco mais clara do que quando surgia no passado (Ouça-se When She Comes Down de 'Vantage Point'.). Como seria de esperar, a letra, como aliás todas as do álbum, está bastante bem escrita, não significando a transição para o francês uma perda da destreza poética, que continua a abarrotar de ironias e de subtilezas.
Já de regresso ao inglês, segue-se Sirens, uma canção eficaz mas, quando ouvida no meio das outras, um tanto morna. Aliás, percebe-se que, neste álbum, as canções mais serenas acabam por ter um tanto menos de intensidade do que as outras, valendo mais como momentos de pausa em que o que sobressai é a letra, como vemos acontecer com esta canção, ou com Nothings, por exemplo.
Hidden Wounds, Girls Keep Drinking ou The Soft Fall retomarão, no entanto, o lanço da canção de abertura. Nestas canções, a introdução dos ritmos quase dançáveis é contraposta pela sonoridade mais rock que caracteriza os dEUS, conseguida muitas vezes através de momentos instrumentais que conferem um certo peso e uma certa invulgaridade nas composições que, de resto, são até bastante simples. Uma canção como The Soft Fall é bastante eficaz em mostrar-nos como, a partir de uma composição simples, é possível fazer uma canção complexa, onde de repente surge um solo de guitarra que parece fora do sítio, ou uma interrupção repentina, que nos obriga a dedicar redobrada atenção à música. Volte-se a referir a importância das letras, escritas com uma invulgar facilidade palavrosa, atenta aos sons, que Tom Barman é perfeitamente capaz de valorizar.
E se o álbum começa com uma canção um tanto sombria, a verdade é que, depois, tende para uma sonoridade mais solta e luminosa. E, se em Quatre Mains se sentia essa intromissão do hip-hop que já não é insólita nos dEUS, outras referências parecem surgir. Mais invulgar do que o hip-hop será por exemplo o que encontramos em Crazy About You onde a guitarra de Mauro Pawlowski, dedilhada, nos remete para um certo travo de country. A própria canção introdutória orienta-nos um pouco para a referência à chanson, que não se esgota aí: uma canção como The Give Up Gene parece ser uma interpretação muitíssimo livre dos clássicos de chanson, com a voz de Barman cantando muito próxima da declamação de um poema, mas contrabalançada pelo ritmo muito marcado e seco, cuja continuidade é quebrada pelo estalar de como que gemidos de guitarra eléctrica ou do violino de Klaas Janzoons. A bateria, reforçada pelo baixo, cria uma profundidade insuspeitada, e The Give Up Gene acaba por ser outra das melhores canções de 'Following Sea'. Logo de seguida, Fire Up The Google Beat Algorith parece ser o derradeiro delírio rap, com Tom Barman declamando com velocidade alta a letra sobre uma guitarra eléctrica exacerbada, e a batida perto de parecer desligada do resto da canção. Pelo meio, o eco do violino acrescenta uma faceta clássica a uma canção que parece estar muito à frente de si mesma e que, se tem algum defeito, é o de ser demasiado curta.
One Thing About Waves, que fecha o álbum, é uma das canções mais simples, uma espécie de clássica canção rock. No entanto, longe de desiludir quando inserida no álbum, esta canção contém um dramatismo impressionante e, sem recurso a quase nenhuma estranheza, consegue destacar-se como uma das canções mais intensas do álbum. A letra está escrita com recurso a uma imagética forte e despida e a alternância entre a voz de Barman e os solos de guitarra de Pawlowski, marcados pela bateria de Stéphane Misseghers, resultam numa ambiência incrível, a um tempo sufocante e libertadora, que se vai afastando, deixando apenas o piano, tocado por Barman, um final perfeito para o álbum.


Constituido por apenas dez canções, 'Following Sea' só pode surpreender. Num período de onze meses, os dEUS conseguiram produzir um álbum perfeitamente capaz de ombrear com os seus melhores trabalhos, produzidos por norma em dois ou três anos. Se é ou não é o melhor álbum deles, é o menos importante. 'Following Sea' (E palmas para o título, realmente belíssimo.) é um álbum intenso e denso, que perde em contenção aquilo que ganha em risco. A opção foi boa porque, em quase tudo, esse arriscar redunda em canções bem conseguidas. Este pode muito bem ser o álbum que qualquer um esperaria depois de 'Vantage Point' ou de 'Keep You Close'. É efectivamente novo, inesperado nas suas referências e conseguido nas suas experimentações. Que mais se pode pedir, na verdade?
 

sábado, 1 de setembro de 2012

Coisas minhas II


 
 O SEGUNDO SOL
 
And the things that are flowers are dead
I keep waterind the dead flower
There's not enough of me to make a bouquet
Stop watering the dead flower
 
Marilyn Manson, Doppelherz
Sob o brilho da manhã encontro
o abismo, memória
da infância que foge para nos atormentar
ou proteger.
 
No betão derrama-se a luz e acorda
o desejo de fuga, o drama de um exílio.
 
Há uma flor morta.
O teu perfil
tem a força da seiva, o olhar
vago traz de voltao tempo
em que o corpo se tornou vida.
 
Às vezes parece que te amo, outras
és só espelho.
Tens a mão pousada sobre a perna
como uma promessa esquecida.
Vem a laceração,
o gelo sob a pele, translúcido,
e a flor morre mais
apesar de seres água ou
um segundo sol que dá vida
mais do que a dá o primeiro.
 

Vou contra o tédio e a inércia
a imaginar o teu corpo
abraçado ao meu como se fôssemos
a mesma sombra.
 
 

[João Borges: Lisboa, 13.3.12]
 
desenho de Isabel de Sá