No ano passado, a QuidNovi editou uma colecção de pequenas monografias sobre arquitectos portugueses. A colecção chama-se assim mesmo, Arquitectos Portugueses e é, à partida, uma excelente ideia. Sabemos que Portugal não prima nem por valorizar a cultura própria e a Arquitectura não é excepção. Bem pelo contrário, a maioria das monografias que encontramos são sempre sobre os suspeitos do costume e escusado será dizer mais seja o que for.
Aliás, a título de aparte, diga-se que se há alguma coisa que caracteriza profundamente a cultura portuguesa é a sua tendência para os semi-deuses, para a idolatria cega a um ou dois nomes, idolatria essa que faz esquecer todos os outros, independentemente de terem um trabalho (cultural, entenda-se) bom ou mau.
E se isto é característica muitíssimo portuguesa, há que louvar a ideia de fazer uma colecção de monografias sobre arquitectos portugueses. Ainda que se trate de pequenas monografias, seriam, na pior das hipóteses, boas introduções a um leque de arquitectos que vá além de Álvaro Siza e de Eduardo Souto de Moura e, portanto, permitiriam traçar uma imagem mais alargada da Arquitectura em Portugal.
O 11º volume desta colecção é sobre o arquitecto Gonçalo Byrne. Byrne está longe de ser um arquitecto votado a qualquer tipo de secretismo, já que algumas das suas obras públicas estão longe de passar despercebidas, mesmo que o nome passe. No entanto, o que encontramos na bibliografia deste livro é no mínimo angustiante: a lista apresenta seis obras utilizadas que têm isto de interessante: três são de edição italiana, uma espanhola e duas portuguesas. As edições portuguesas são um catálogo e uma revista. Uma das edições italinas já teve direito a tradução portuguesa, mas o facto continua à vista: pouco em Portugal se escreveu sobre Gonçalo Byrne.
Numa situação assim, a publicação desta monografia, nem que, como se disse, ela consistisse apenas numa introdução à obra do arquitecto, seria ainda mais louvável e teria ainda mais significado, uma vez mais cultural.
Mas não é o caso.
O volume é organizado e introduzido por Paulo Coelho, não o escritor brasileiro, mas um arquitecto formado pela Faculdade do Porto, mas com uma carreira ligada principalmente ao design. A incompetência de Coelho para trabalhar sobre Byrne sente-se logo na Introdução em que, ao que parece, introduzir a obra do arquitecto não é a prioridade do autor. Coelho começa bem, enumerando uma série de aspectos mais decisivos para a definição de uma Obra, muitos deles declarados pelo próprio Gonçalo Byrne. No entanto, quando chega a altura de escrever uma pequena conclusão em que se explicasse como as preocupações citadas contribuíram para a construção de uma obra relevante, Coelho escreve o seguinte
Com quase cinquenta anos de prática profissional, Gonçalo Byrne tem desenvolvido, com metódica continuidade projectual, uma obra segura e com crescente apuro de preocupações com o território e a cidade. Sendo um dos arquitectos de Lisboa mais conhecidos e apreciados no exterior, é também aquele que mais se aproximava, em termos de atitude e de propostas formais, da chamada "Escola do Porto".
[p.9]
daqui, podemos depreender o seguinte: que a obra de Gonçalo Byrne, cujas características haviam sido explicadas, é boa porque, apesar do arquitecto se ter formado na antiga ESBAL, ele se aproxima em determinados aspectos da Escola do Porto. Isto porque um arquitecto em Portugal não pode ter uma obra segura e com crescente apuro de preocupações que seja conhecid[a] e apreciad[a] no estrangeiro se não for da Escola do Porto ou se, não sendo por ela formado, pelo menos se aproximar dela.
Evidentemente, pode parecer que estou a fazer uma leitura um tanto literal ou até de má-fé daquilo que o organizador do volume escreve. No entanto, mais à frente, encontramos a confirmação de que não se trata nem duma leitura muito literal nem duma leitura movida por má-fé. Ao escrever algumas notas sobre um conjunto de casas geminadas em Casal Figueiras (Setúbal), eis o que lemos
Byrne coloca [...] uma sequência de casas geminadas com dois andares, realizada contemporaneamente à famosa malha da Malagueira em Évora, assinado [sic] por Álvaro Siza Vieira
[p.10]
é muito vulgar e correcto que se utilizem comparações destas em ensaios. Por norma, utilizam-se por duas razões: ou se cita uma obra que influenciou aquela de que se fala, ou então citam-se obras realizadas ao mesmo tempo, de maneira a dar uma ideia do contexto em que a obra surge. O problema com a compração estabelecida por Paulo Coelho é que não responde perante nenhuma destas hipóteses: a malha da Malagueira não pode ter influenciado particularmente Byrne, porque é mais ou menos cueva; e se o objectivo é contextualizar as casas de Casal Figueiras, citar um exemplo é insuficiente, seriam precisos mais alguns.
Portanto, este fragmento do texto serve precisamente o mesmo propósito que o outro: o de aproximar Byrne da Escola do Porto e excluir a ideia de que outras escolas possam formar arquitectos de referência.
Por alguma razão a cultura portuguesa parece não evoluir, mesmo quando cresce. A mentalidade que a Introdução de Paulo Coelho revela é, de facto, um pouco aquela que a própria Escola do Porto atravessa desde há muitos anos, uma mentalidade extremamente portuguesa: vivem voltados para um passado glorioso que não deixa de ser passado, mas autoproclamam-se modernos por inovarem nas coisas menos importantes. Para mais sobre este assunto, leia-se
O Caso Mental Português de Fernando Pessoa. É uma análise da cultura portuguesa da época e, para nossa amargura, uma análise da cultura portuguesa de hoje, que pouco ou nada mudou desde 1932, quando o texto veio a lume pela primeira vez.
A realidade, que interessou pouco a Paulo Coelho, é outra: Gonçalo Byrne, nascido em 1941 em Alcobaça, fez o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes Lisboa e a partir daí tem, efectivamente, construído uma obra original e segura em Portugal e lá fora.
No entanto, e isso não mereceu particular referência a Coelho, Byrne não se limitou a ser arquitecto: tem um longo currículo como professor em Arquitectura: na Árvore do Porto, em Coimbra, na Universidade Autónoma de Lisboa e no ISCTE também em Lisboa; e ainda em Lausanne (Suíça), Leuven (Bélgica), Barcelona (Espanha), Nancy (França), Veneza (Itália), Graz (Áustria), em Harvard, Pamplona (Espanha), Mendrisio (Suíça), Navarra (Espanha) e Alghero (Itália). Estas listas são atiradas para a Cronologia, no final do volume, quase sem referência na Introdução, o que significa negligenciar um outro lado do trabalho de Byrne, pois o constante, ou contínuo mesmo, envolvimento do arquitecto com as Universidades e com a vida académica implica sempre um papel activo na formação cultural de futuros arquitectos, e, mais importante ainda do que isso, um papel activo na tentativa de recriar e tornar eficiente e evoluída (Como se disse, há uma diferença significativa entre crescer e evoluir.) uma verdadeira cultura arquitectónica, que falha largamente a Portugal, sendo esta monografia de Paulo Coelho um exemplo crasso da fragilidade da cultura arquitectónica em Portugal, que começa muitas vezes pelos próprios arquitectos, concentrados em alimentar o mito de si mesmos _ou daqueles que são já mito e não convém deixar de adorar _mais do que em fomentar uma cultura.
Se a Introdução vale alguma coisa, é pela inclusão de três textos assinados por Gonçalo Byrne em que a sua percepção e as suas preocupações em Arquitectura são referidos e explicados, de uma forma relativamente sintética e adequada. A leitura desses textos será muito mais orientadora do que a Introdução propriamente dita, para depois vermos as obras seleccionadas para apresentação nesta monografia.
Relativamente à secção de Projectos, deixo algumas notas: antes de mais, uma nota bastante positiva para a inclusão de desenhos do arquitecto, que nos permitem observar a noção de espaço e as prioridades dele no momento de iniciação do projecto, pois todos esses aspectos estão por demais presentes nos desenhos. As fotografias também são boas, focando frequentemente o interior dos edifícios e evitando esgotar-se em mostrar o aspecto exterior/estético deles. No entanto, há que assinalar que as plantas, cortes e alçados surgem sem indicação de escala, e em dimensão bastante reduzida, o que, nalguns casos inviabiliza a leitura desses desenhos técnicos. Nalguns casos (Por exemplo, a Casa nel Parco ou o Edifício Estoril-Sol.) os projectos são apresentados sem qualquer planta útil ou mesmo sem planta alguma, o que se torna um tanto difícil de compreender num livro de Arquitectura.
Os textos de Paulo Coelho não aprofundam muito, como não poderiam aprofundar numa edição desta natureza, mas revelam-se mais ou menos úteis, traçando na maioria dos casos bons retratos escritos dos edifícios. Se há uma falha nestes textos é de não tentarem traçar propriamente uma ligação entre o pensamento de Byrne, expresso em vários textos, e a obra e até de não traçar muito fortemente ligações entre umas obras e outras. Os projectos são analisados num caso-a-caso, mas não investem em especificar as continuidades que existem de umas obras para as outras. Valem, portanto, as descrições precisamente assim, como descrições das obras. Outra coisa que surpreende é a maneira como estão escritos os textos sobre obras construídas no estrangeiro. Temos a Sede da Província do Brabante Flamengo em Leuven (Bélgica), a Casa nel Parco em Jesolo (Itália) e a requalificação do Quarteirão em Ospedaletto em Veneza (Itália). O que surpreende nestes textos é que Coelho, que na Introdução se mostrava tão pródigo em contextualizar obras, não seja capaz de analisar ou de sequer referir aquilo que a Arquitectura belga ou italina tenha tido de ponderante ou de influente nas obras que Byrne projectou para esses países. No caso do quarteirão em Ospedaletto, há referências ao gótico predominante no terreno, mas essa referência não vai além de si mesma, perdendo-se qualquer oportunidade de entender em que é que a escala, o traçado ou até a ideologia do período Gótico tiveram de importante no projecto de Byrne.
Excepção a tudo isto é o longo texto que explica o Museu Nacional Machado de Castro (Coimbra), não por ser longo, mas por tocar precisamente em quase todos os aspectos mais importantes para explicar uma obra por demais complexa tanto a um nível conceptual como a um nível construtivo.
Só é de lamentar que, por exemplo, a requalificação da zona evolvente do Mosteiro de Sta Maria de Alcobaça ou o invulgar conjunto de moradias em Óbidos não tenham tido tão minucioso tratamento (Assinale-se uma vez mais que talvez a natureza da edição não o tenha permitido.).
Outra coisa ainda que me parece que valerá a pena dizer, mas que não é uma crítica directa a este livro, uma vez que se trata de uma prática corrente na edição de livros de Arquitectura em Portugal: nota-se uma quase completa negligência daquilo que possa ser o pensamento e a cultura dos arquitectos. Escasseiam as referências a textos escritos pelos autores, a publicações em que tenham estado envolvidos, e muitas vezes até à importância que outros arquitectos e mesmo outros artistas ou pensadores tiveram para aqueles de quem se fala. Este desinteresse a que se vota a formação intelectual do arquitecto justifica muitas vezes a pobreza das análises que sobre eles se escrevem.
Para concluir, retomarei um pouco aquilo que disse na introdução desta nota de leitura. Pouco de verdadeiramente aprofundado se escreveu sobre Gonçalo Byrne em Portugal. Ironicamente, o nosso país tem alguns arquitectos dignos de análise e de interesse (Alguns, apenas: Fernando Távora, Manuel Taínha, Francisco Keil do Amaral, Cassiano Barbosa e Arménio Losa, Inês Lobo, entre vários outros.), no entanto, aqueles que efectivamente organizam edições com maior amplitude preferem debruçar-se sobre aqueles que já deixaram de ser arquitectos para serem semi-deuses, e não vale a pena fingir que não estou a falar de Álvaro Siza e de Souto de Moura. No que isto resulta é na quase ignorância em relação aos restantes nomes que formam o universo da Arquitectura em Portugal. É preciso não nos esquecermos que estes livros não devem ser escritos no sentido de serem lidos por um público especializado: é preciso que a cultura arquitectónica exista fora do círculo mais restrito. E portanto, é assim que estamos: em Portugal há dois semi-deuses e não há cultura arquitectónica. E o resultado é que essa fragilidade cultural, cuja consequência mais directa é a total ausência de sentido crítico relativamente à Arquitectura, não se fará sentir só no público não especializado (Onde muitas vezes estão os clientes.), mas também nos próprios arquitectos ou naqueles que escrevem sobre Arquitectura, que, profundamente incultos, se encontram apenas capazes de reforçar os mitos que já existem, e que, cada vez que tentam ter um discurso minimamente analítico ou crítico fazem a triste figura de beatas que se ajoelham na missa sem da Bíblia conhecerem mais que aquilo que o padre lê. É o que acontece com este livro e é pena, porque um arquitecto como Gonçalo Byrne mereceria mais.
fotografia da Reitoria da Universidade de Aveiro (1992)
Fotografia da Sede de Província do Brabante Flamengo, Leuven (Bélgica) (1998)
Planta do conjunto de moradias em Óbidos (2004)