quinta-feira, 19 de abril de 2012

Anathema: Weather Systems

DRAMA E FASCINAÇÃO

Já dizia o Poeta que 'todo o Mundo é composto de mudança'. E se muita gente disso mesmo tem medo, está mais que visto que não é o caso dos Anathema. Em 1991, quando é lançado 'The Crestfallen EP', ninguém poderia prever que a banda de doom-metal chegasse a 2001 a produzir um álbum como 'A Fine Day to Exit', em que qualquer rasto de metal dava lugar a uma sensibilidade bastante diversa, mais ligada ao rock atmosférico. E em 2003, 'A Natural Disaster' inaugurava uma fase bastante experimental, que, agora o vemos, está para ficar.
No entanto, são os anos de 2001 e 2002 que parecem ter sido de charneira para os Anathema, com o lançamento dos dois volumes de 'Resonance', que reuniam algumas das canções da fase doom-metal, que ia mais ou menos de 1990 a 1995, incluindo ainda algumas canções de álbuns posteriores onde a estética pesada ainda se fazia sentir. Estas duas colectâneas funcionam como um arrumar de casa que abriu, realmente, caminho a novas experimentações. A confirmá-lo, há ainda o álbum 'Falling Deeper' (2011), em que os Anathema revisitam as suas canções iniciais, dando-lhe uma roupagem mais consonante com o que fazem agora. 'Falling Deeper' formava, ao mesmo tempo, uma linha recta com o álbum de originais de 2010, 'We're Here Because We're Here', em que aquela atmosfera depressiva e melancólica que, independentemente de todas as mudanças, sempre foi característica dos Anathema, era contrabalançada por um lado muito mais brilhante e luminoso, como confirmavam canções como Thin Air, Dreaming Light ou Everything.
Com tanta conturbação, o álbum prometido para 2012 só poderia chegar com muita promessa.


Lançado na passada segunda-feira, 'Weather Systems' é um álbum que nos exige uma audição bastante atenta, porque, um pouco como os Anathema já nos têm mostrado, é tudo menos evidente. A sensação de estranheza que 'We're Here Because We're Here' certamente causaria a quem conhecesse o percurso da banda britânica, é mais ou menos aquela que agora 'Weather Systems' nos poderá causar. Daniel Cavanagh explica num vídeo editado pela KScope que este álbum consistia inicialmente num conjunto de cinco canções que totalizavam cerca de trinta minutos de música, às quais se juntaram mais quatro que não tinham encontrado o seu lugar no álbum de 2010. O facto é que as canções formam um conjunto bastante coerente, mas assim fica explicado por que, de certa forma, se sente neste álbum uma certa afinidade com 'We're Here Because We're Here', mas ao mesmo tempo se sente também que algo aqui é realmente novo. Se, por um lado, há uma tendência, como havia em 2010, para criar canções mais luminosas e mais simplificadas, por outro, a inclinação para o atmosférico é bastante forte e a ligação a determinados aspectos da natureza, por exemplo as tempestades, faz-se sentir e não só nas letras, como também na própria concepção das canções, que conta também com sons gravados naturalmente que intensificam essa ligação com os sistemas climáticos prometidos pelo título.
'Weather Systems' abre com Untouchable part 1, onde uma guitarra dedilhada dá o mote para uma canção suave e, de alguma forma, romântica onde a voz suave e quase frágil de Vincent Cavanagh faz uma espécie de declaração de amor (Que, escusado será dizê-lo, não resvala para a vulgaridade.), evoluindo depois para um final mais intenso e gritado, onde a letra, de Daniel Cavanagh, atinge a qualidade do costume. Este final conta também com as harmonias vocais de Lee Douglas, o que traçará a ponte para Untouchable part 2, onde a vocalista partilha a voz principal com Vincent. Esta segunda parte facilmente se poderia tornar foleira, uma vez que o dueto com uma voz masculina e outra feminina, na maior parte dos casos, acaba por se tornar aborrecido e possidónio, mas não é de todo o caso. Aliás, convém lembrar que os Anathema cada vez mais estão a explorar o facto de não só contarem com dois vocalistas, como também o facto das vozes de Vincent Cavanagh e Lee Douglas serem duas vozes que se complementam de uma forma belíssima, como 'Falling Deeper' já tinha provado. Assim sendo, os dois dividem a letra que, de certa forma, parece derivar da letra da primeira parte, sendo esta segunda parte gravada com base no piano, acrescido ainda de belíssimos arranjos de cordas, parecendo esta canção realmente continuar a fase mais sinfónica que 'Falling Deeper' inaugurava.
Segue-se The Gathering of the Clouds, uma das canções mais dramáticas e mais sombrias de 'Weather Systems' e também, desde já se diga, uma das melhores. Uma vez mais o mote é dado pela guitarra dedilhada, num segmento perfeitamente obsessivo, a que se juntará a voz de Vincent, apoiada pela de Lee, evoluindo, através dos arranjos de cordas e da bateria acelerada de John Douglas para uma atmosfera cada vez mais negra e explosiva, mas que não dispensa uma certa procura de libertação. Uma vez mais, as harmonias de Lee Douglas traçarão a ponte para a canção seguinte, Lightning Song, onde, desta vez, Lee canta a canção inteira. Lightning Song acaba por ser um pouco o reverso de The Gathering of the Clouds, uma vez que, continuando a temática da tempestade, segue a postura de uma certa fascinação perante essa tempestade, acabando por a canção, numa tonalidade de deslumbramento, resultar eufórica, principalmente no segmento final, bastante mais pesado do que o inicial. Nesta canção também se experimenta criar os arranjos de corda em torno da guitarra eléctrica e da bateria, o que acaba por resultar tão bem quanto construí-los em torno do piano.
Sunlight será, numa primeira audição, talvez a canção mais desinteressante do álbum. No entanto, ao ouvi-la uma segunda vez, talvez se perceba como, sob uma aparência talvez demasiado delicada, há uma densidade bastante garrida conseguida através do jogo vocal entre Vincent e Lee, que, de certa maneira, anula um pouco o tom morno para que a canção parece inclinar-se.


O álbum inteiro é composto por Daniel Cavanagh, com excepção precisamente de The Storm Before The Calm, da autoria do baterista John Douglas. John Douglas começou a compor canções para a banda que integrava desde a primeira formação (Em 1990.) em 2001, com 'A Fine Day to Exit' e, por um lado, o seu papel como compositor ficou um pouco afectado pelo facto da canção de abertura desse álbum, Pressure, parecer um tanto vulgar. No entanto, era impossível não reconhecer que a ele se devem algumas das melhores canções dos Anathema, como sejam Looking Outside Inside, A Fine Day to Exit, Get Out Get Off ou Universal. E o que acontece em 'Weather Systems' é que esta canção que ele escreve e que, quase se pode dizer, é composta por duas canções distintas, é também uma das melhores do álbum. Com um início onde regressa um pouco a electrónica de 'A Natural Disaster', a voz de Vincent Cavanagh, que aqui prova a sua versatilidade, alia-se à guitarra e aos arranjos de cordas e cria outro momento bastante sombrio que, nalguns pontos, quase faz lembrar a fase inicial da banda. Mais ou menos a meio, a canção muda drasticamente de ambiência, e é-nos dado o outro lado, o acalmar da tempestade, que escolhe uma via que é mais contemplativa do que de celebração. É um momento melancólico e calmo, mas ao mesmo tempo absolutamente belo, com as vozes de Vincent e Lee numa espécie de lamento que é ora sussurrado ora exacerbado. Os quase dez minutos que a canção soma são dos mais representativos de 'Weather Systems'.
Algumas semanas antes do lançamento do álbum, tal como tinha acontecido com o álbum de 2011, os Anathema divulgaram uma das canções. The Beginning and the End será talvez das canções mais simples deste álbum, uma vez que é aquela que nos mostra o trabalho de uma banda em estúdio, sem ajudas exteriores. Constrói-se em torno do piano, tocado por Daniel Cavanagh, e vão-se acrescentando o baixo de Jamie Cavanagh, a bateria e as guitarras. É uma canção belíssima, directa e comovente, e também uma das melhores letras de Danny Cavanagh e a atmosfera melancólica acaba por resultar numa vontade de viver e de sentir que tem sido, desde há vários anos para cá, a mensagem principal dos Anathema.
The Lost Child será uma das canções mais tristes do álbum, mas também das mais idílicas, onde, apesar da letra dramática e sem esperança, a linha de piano, acompanhada pela bateria, cria uma espécie de fuga. Se bem recentemente Daniel Cavanagh fez uma pequena digressão a solo, tocando as canções dos Anathema acompanhado apenas da sua guitarra, esta canção, de certa forma, parece ser um resultado directo dessa experiência. Com esta canção, fica aberto o caminho para o encerramento do álbum, com Internal Landscapes. Este encerramento é construído com base num depoimento em que Joe Geraci relata uma experiência-limite de aproximação à morte. A ideia em si parece derrotista e doentia, mas a verdade é que o conteúdo do relato é belo e impressionante, e, em vez de nos falar da ideia comum de morte, mostra-a como uma luz que se abre sobre a eternidade, em que o indivíduo passa a ser o próprio mundo. A gravação é trabalhada com arranjos de guitarra e de bateria e com as vozes de Lee Douglas e de Vincent Cavanagh que canta pequenos fragmentos realmente suaves e luminosos que deslocam o centro da canção da ideia de morte para uma ideia de libertação e de uma espécie de amore mundi que é uma maneira realmente belíssima de terminar o álbum.


A verdade é que um álbum como 'Weather Systems' não servirá para ouvintes mais fundamentalistas, uma vez que os Anathema parecem cada vez menos interessados em fazer música pesada só porque sim. O facto é que estas canções são belas e bastante pensadas, sendo que a violência só existe se tiver que existir. 'Weather Systems' parece desenrolar-se entre o drama e a fascinação, é um trabalho que sonda aquilo que de mais profundo possa haver dentro de uma pessoa e, tal como acontece no relato de Internal Landscapes, esta música passa a fazer parte de nós e nós dela. Ainda mais difíceis de rotular, os Anathema são realmente uma banda que ou se ama ou se fica completamente indiferente. O extremismo emotivo de um álbum assim não dá lugar a meios-termos e o facto é que, se acontecer, como acontece comigo, que a nossa sensibilidade seja consonante com a desta banda, é impossível que canções destas não nos comovam  e não nos aproximem de nós mesmos. Para isso mesmo, penso eu, deveria servir a música.


A Explosão da Imagem



Há muitos anos numa feira de loiça,
rosa ramalho deu-me um dos seus bonecos
de barro, e contou-me nesse dia a uma amiga
que me acompanhava uma história qualquer
de discussão e zanga: -- e sabe o que eu lhes disse,
menina ? um "caralhinho !" a frase foi
sublinhada com um manguito engelhado
e um riso divertido de barcelos.

passou muito tempo, mas lembro-me, rosa
ramalho recomendou-me que metesse
o boneco de barro cru, modelado de fresco,
no forno na cozinha, assim fiz e aquelas
formas húmidas explodiram pouco
depois, "-- o boneco
foi pró boneco" repetiam a rir-se
outras pessoas, pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses

ingénuas, fez-se pó, é o destino dos monstros
populares e dos outros, no
barro de que são feitos, a
minha amiga casou e mudou de cidade,
já passou mesmo muito tempo.
eu fui à minha vida, entretanto a rosa
ramalho morreu. tenho a certeza
de que ainda discute exclamando
" -- sabe que mais? -- um caralhinho !"
e que sabia o que ia acontecer
quando me disse que o boneco tinha
de ir ao forno. quem faz, desfaz.



Vasco Graça Moura
Poemas com Pessoas
1997, ed. Quetzal

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Vida Confinada



os do terceiro esquerdo os do quarto frente
os do quinto direito os do segundo frente
os do quinto esquerdo os do primeiro direito
os do quarto esquerdo os do segundo direito
vida selvagem vida selvagem vida selvagem


...............................................................


crise de identidade
rato de campo ou rato de cidade?


............................................................


aquela ervinha junto à porta
aquela chaminé desocupada
dizem que passou ali o ser
e agora é nada
do nada surgirá o alto prédio
e daí composta a vida
a declinar assim que sobe
dos cumes para a ruína
reciclada


Luísa Costa Gomes
in 'O Mistério de Lisboa'
1993, ed. Relógio d'Água
pintura de Carlos Botelho

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Weather Systems

o novo álbum dos Anathema é lançado hoje. Aqui fica um pequeno depoimento de Daniel Cavanagh sobre as novas canções.

domingo, 15 de abril de 2012

Florbela de Vicente Alves do Ó

AS MÁSCARAS DO DESTINO

Uma personalidade como a de Florbela Espanca talvez nunca chegue a ser plenamente compreendida. A força dos seus poemas e de muitas de outras páginas que nos deixou denotam muitos traços dessa personalidade que podia ser narcísica, neurótica, insatisfeita, isolada ou mal-entendida ou tudo isto ou nada disto.
Natália Correia, Jorge de Sena, José Régio, Agustina Bessa-Luís, Yvette K. Centeno, Hélia Correia ou Rui Guedes são algumas pessoas que trabalharam, de variadas formas, a figura de Florbela. Destes, Hélia Correia trabalha-a criativamente, reinventando Florbela numa peça de teatro do mesmo nome. Vicente Alves do Ó junta-se a este grupo, e fá-lo, pela primeira vez, no cinema.


O filme, 'Florbela', apresenta-nos Florbela Espanca (Dalila Carmo) na sua separação de António Guimarães (José Neves), e no início do casamento com o terceiro e último marido, Mário Lage (Albano Jerónimo). Apesar de inicialmente Florbela parecer convicta da sua vontade de estar com Mário, a vida na cidade de Matosinhos surge-lhe de certa forma desinteressante e nela, a escritora sente-se algo desenquadrada. A frieza que depressa surge entre ela e o marido acentua-se quando recebe uma carta do irmão, Apeles (Ivo Canelas), com quem vai ter a Lisboa.
O essencial do filme decorre precisamente na cidade de Lisboa, e vive essencialmente da relação que existe entre Mário, Florbela e Apeles, estando ela no centro. Vicente Alves do Ó foi pródigo em demonstrar a personalidade instável e algo dividida de Florbela, bem como a sua firmeza que parece abrir portas a uma certa irreverência. Ao mesmo tempo, ver o filme com atenção também nos aponta para aquilo que nele é central: a relação entre Florbela e Apeles, onde uma certa tensão sexual não consumada dá origem a um contacto intenso mas, ao mesmo tempo, nunca plenamente vivido. A maioria do filme é feito de cenas curtas, onde o que ressalta é sempre alguma frase contundente que nos dá mais um dado sobre a figura de Florbela, ao passo que são mais longas as cenas em que Florbela está com Apeles. Nestes momentos precisamente temos acesso à relação difícil de Florbela com a escrita, com a família, e até com a sociedade que a rotula imediatamente por causa dos três casamentos. Um dos momentos fulcrais será a morte de Apeles, num acidente de avião, que acentua a instabilidade da escritora, conduzindo-a a uma espécie de esgotamento, cujas sequelas depressivas só terminarão com o suicídio, que não aparece já no filme.
A morte de Apeles parece também potenciar quer a frieza entre Florbela e Mário, quer o sentimento de desencaixe que nela se vai fazendo sentir.
O que acontece é que a personalidade de Florbela é realmente demasiado complexa para ser mostrada num filme com cerca de uma hora e meia. Consciente disso, Vicente Alves do Ó acaba por centrar-se num aspecto específico (A tal relação entre os dois irmãos.), seguindo um pouco aquilo que, no essencial, é o livro de contos 'As Máscaras do Destino' (1931), o que, aliás, fica claro quando, na sequência final, Florbela lê um excerto da Dedicatória deste mesmo livro. No que toca à relação entre Apeles e Florbela, o filme está muito conseguido. Os momentos em que estão juntos são plenos de vida, mas também de regressos à infância e de um debruçar sobre a vida de Florbela, o que tanto acontece através de uma exaltação, como através de momentos muito dramáticos, como o que dá origem ao aborto espontâneo de Florbela. E há que isolar a cena em que Apeles, encostado a uma parede, ouve Florbela fazer sexo com Mário, enquanto se masturba, chorando. Esta cena, em poucos minutos, consegue transmitir todos os sentimentos que decorrem entre os dois irmãos, que passam pela atracção, pelo amor mais profundo, e pelo sentimento de culpa. E o mesmo se diga da cena em que, numa festa, Florbela veste uma capa dourada, indo depois mostrá-la ao irmão. Ao irmão, não ao marido, que também estava presente. Aliás, aspectos destes apontam-nos uma coisa que também interessa apontar a 'Florbela': é que a apurada sensibilidade do realizador para os cenários, os pormenores, e também para a direcção de actores, acaba por dispensar, de certa forma o diálogo. O filme depende pouco dos diálogos, salvo nalguns momentos, e assim toda a intensidade acontece dentro dum certo silêncio, exactamente como o amor de Florbela e Apeles.
O que, a meu ver, fica a falhar neste filme, é o debruçar sobre certos aspectos bastante importantes da vida de Florbela, como sejam a Faculdade de Direito, o 'Livro de Soror Saudade' (1923), que existia já nesta altura da vida da escritora, e até alguns aspectos (Não todos.) da sua relação com o meio literário da altura.
Aqui, quem conhecer a biografia de Florbela, ficará a sentir um certo distanciamento por parte do filme.


Se ignorarmos essa biografia, o que, aliás, não será errado, veremos que 'Florbela' consegue, de vários pontos de vista, entregar-nos a personalidade de Florbela, sonhadora, intensa, mas também neurótica e incompreendida, bem como dar-nos vislumbres muito interessantes do tempo em que ela viveu. Vicente Alves do Ó não descura os cenários, as roupas, toda a produção estética do filme, aliás, é minuciosa e quase sempre rigorosa. Dalila Carmo está muito bem como Florbela, e a intensidade que incarna com toda a naturalidade só nos relembra o quanto a actriz está mal aproveitada no panorama português. Ivo Canelas também não está mal como Apeles. A Albano Jerónimo coube um papel um tanto ingrato, uma vez que a frieza que caracteriza o seu casamento com Florbela o condena a um certo apagamento que, mesmo assim, ao ser interrompido, nos convence facilmente.
No fundo, este filme consegue perfeitamente dar-nos a atmosfera que Florbela nos dá, talvez não em toda a sua obra, mas pelo menos em 'As Máscaras do Destino', o livro cuja sombra parece ser mais decisiva neste filme. Entre esse livro que era o livro de um morto, e a história d' a que no mundo anda perdida, este filme acaba por ter uma palavra a dizer sobre determinada parte da vida de Florbela.

sábado, 14 de abril de 2012

As Quadras D'Ele (2) (fragmentos)


Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?
......................................
Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar,
O amor quando é sentido
Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem,
Podem mentir os teus lábios,
Os olhos, esses, não mentem.
............................................
Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade,
Bendito sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti,
Que me ofertou a desgraça
No momento em que te vi.
.................................................
O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã,
Como a rosa da canção.
................................................
Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos,
Afogam-se outros olhares
Nas ondas dos teus cabelos.
................................................
Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição.
Ai, ensinem-me a maneira
De dar leis ao coração!
................................................
Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar
Daquele que muito sente.
..............................................
Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono,
Nos lábios a primavera...

Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar,
Soluça cheio de mágua
O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente?
És alegre como a aurora,
E triste como um poente...

Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca,
Que é tortura nos teus olhos
E riso na tua boca!


Florbela Espanca
Trocando Olhares  (1915-1917)
1994, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda
fotografia de Arthur Tress

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Vase (Vaas)



Can you blame a vase for its fragility 
or a hand for breaking the vase? 
Maybe it is meant for this; 
for the vase to sing down upon the hand, 
until the hand can no longer resist, 
even though the hand knows it will hit 
and the shards already singing in the vase 
before they were made. 

Why would the hand long for a vase, 
which like a neck, extends towards the hand 
that is about to hit it? And why does the vase 
want to sing its shards to the surface 
until the hand is unable to resist? 

Maybe the vase is dreaming of the hand, 
turning it into a rose, and the hand seeks out the vase 
to finally find the shard 
with which he can beat roses from the wrist.



Peter Verhelst
trad. Astrid Alden
desenho de Robbert Van Wynendaele


Kun je een vaas haar breekbaarheid verwijten 

of een hand het breken van de vaas? 

Misschien is het zo bedoeld 

dat de vaas de hand op zich af zingt, 
zodat de hand niet kan weerstaan, 
hoewel de hand weet dat hij slaat 
en in de vaas al scherven zingen 
voor ze zijn ontstaan. 



Waarom zou de hand verlangen naar een vaas 

die, als een hals, zich uitstrekt naar de hand 

die haar wil slaan? En waarom wil de vaas 
haar scherven naar de oppervlakte zingen 
zodat de hand haar niet langer kan weerstaan? 



Misschien droomt de vaas wel van de hand 

een roos te maken, wil de hand op zoek gaan naar de vaas 

om eindelijk de scherf te vinden 
waarmee hij rozen uit zijn eigen pols kan slaan.

Peter Verhelst
Nieuwe sterrenbeelden
2008, ed. Prometheus, Amsterdam

quinta-feira, 12 de abril de 2012

[Um fragmento]



Teresa, teresa,
Quem me fala?
Sou eu, a tua companheira
É ele quem te manda?
Pousa a cabeça nos meus braços, teresa                sem medo
ouve,
hoje foi a enterrar no texto um dos meus gatos
escrevi que não me cansarei de escrever que os animais crêem em nós
como se chamava
Farófia
que nome estranho para um gato
o que é estranho é ter um nome, teresa


repara
está branco no interior do armário de Joshua.
Sem nada; rien condiziria melhor com a realidade, conduziria melhor o armário, através do corredor, até à porta. Está descendo as escadas, compassadamente. Sem gritos.
não para me entregar, mas para ser um só com o teu caminho no horizonte, para lá deste claustro, recortam-se as árvores, talvez choupos e chorões
porque a manhã é rara
sobre para além da manhã e alcança-me
irrompe subitamente na tristeza que se apresta a invadir-me
não permitas que eu soçobre
pergunta-me
faz-me perguntas
pergunta-me que sonho tive no texto da noite
pergunta-me se sofro porque tudo abrasas
os móveis da nossa morada, imagens, bibelots, cartas, rendas, livros
tudo e a madeira de que eram feitos
quando voltei já não se encontravam


pergunta-me se o vazio me faz sofrer
se a curva das árvores me aproxima de ti
rosto pouco a pouco conhecido

Maria Gabriela Llansol
Ardente Texto Joshua
1998, ed. Relógio d'Água
gravura de J.B. Greuze

terça-feira, 10 de abril de 2012

Primavera na Schildersstraat (Lente In De Schildersstraat)



Via-te lá do outro lado
como se de um abrigo subterrâneo
saísses: cauteloso e espantado
com a luz que brilhava sobre os telhados
ainda trazias o casaco comprido de inverno
podia ter feito um sinal
podia-te ter feito perguntas
havia entre nós a rua como água
atrás de mim estavam mães sentadas no parque
em redor do museu, os filhos
levavam bofetadas até chorarem
a mim salvou-me o tempo,
a distância, este poema


Miriam Van Hee
trad. Lina Hofkens Cortesão
Uma Migalha na Saia do Universo (Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte)
1997, ed. Assírio e Alvim
fotografia de Ralph Eugene Meatyard




ik zag je aan de overkant 
als was je uit een schuilkelder 

gekomen: voorzichtig en verbaasd 

over het licht dat op de huizen scheen 
je had je lange winterjas nog aan 
ik had een teken kunnen geven 
ik had je vragen kunnen stellen 
de straat lag tussen ons als water

achter mij zaten moeders in het park 
rond het museum, hun kinderen 

kregen klappen tot ze huilden 

mij heeft de tijd gered, 
de afstand, dit gedicht


Miriam Van Hee
Het verband tussen de dagen. Gedichten 1978-1996
1998, ed. De Bezige Bij, Amsterdam

domingo, 8 de abril de 2012

Pródromo


Vamos ficar sozinhos no mundo,
estrídulo ermo na ignição do pó.

Batem as pancadas na cabeça,
de noite, de dia.

Autismo. Olhar de sangue. Gestos
de náufrago na secura.

A terra? Vai ser máquina, sem boca
nem olhos. Só garras, a esgravatar
no cérebro. A devorá-lo ficam
a alucinação «in progressu»,
as pulverizações.

Invoco só os construtores de vento.
Vento para atear o pó do império,
furacões varrendo os mapas,
cidades e países e empresas,
vendavais
pra enxotar os bois do investimento,
as vacas que mugem no emprego,
as mulas do crescimento,
a formiga eléctrica do lucro.

A cabeça não explode,
por causa do cabelo.

Júlio Henriques
Modas & Bordados d'Alice Corinde
1995, ed. Fenda
pintura de Frans Snijders

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Cabaré VI



Olho-me ao espelho,
enredo de lâmpadas e chamas do outro lado
na tontura de melodias às avessas
dos cristais do ruído...


Olho-me ao espelho
e vejo-me a cantar
-sim, a cantar!-
com três bocas na cara,
quentes do entusiasmo vazio
dos violinos do silêncio...


(Homens: porque não nasci apenas no espelho,
sem alma deste lado?)

José Gomes Ferreira
Poesia I
1948, ed. Portugália
imagem de Julião Sarmento

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Canção para o dia de hoje


B Fachada: Monogamia (Do álbum '´Novos Talentos Fnac', 2009)

domingo, 1 de abril de 2012

Despedida



sentei-me ao sol
no alto das escadas de Alcântara
a ver os barcos
o rio
os carros que faziam barulho
lá em baixo


fiquei assim muito tempo
sentada ao sol
deixei o sol aquecer
um corpo que já tremia
por ter ficado sozinho


perplexo
sem resistência
por ter ficado sozinho
o corpo já se morria


todas as árvores são
aquelas mesmas árvores que eu vi?
e o céu
é sempre o mesmo céu?
e a terra em que me deito
é sempre a mesma terra
quer eu diga que vivo
ou que morri?

Yvette K. Centeno
Perto da Terra
1984, ed. Presença
imagem de Lourdes Castro