DRAMA E FASCINAÇÃO
Já dizia o Poeta que 'todo o Mundo é composto de mudança'. E se muita gente disso mesmo tem medo, está mais que visto que não é o caso dos Anathema. Em 1991, quando é lançado 'The Crestfallen EP', ninguém poderia prever que a banda de doom-metal chegasse a 2001 a produzir um álbum como 'A Fine Day to Exit', em que qualquer rasto de metal dava lugar a uma sensibilidade bastante diversa, mais ligada ao rock atmosférico. E em 2003, 'A Natural Disaster' inaugurava uma fase bastante experimental, que, agora o vemos, está para ficar.
No entanto, são os anos de 2001 e 2002 que parecem ter sido de charneira para os Anathema, com o lançamento dos dois volumes de 'Resonance', que reuniam algumas das canções da fase doom-metal, que ia mais ou menos de 1990 a 1995, incluindo ainda algumas canções de álbuns posteriores onde a estética pesada ainda se fazia sentir. Estas duas colectâneas funcionam como um arrumar de casa que abriu, realmente, caminho a novas experimentações. A confirmá-lo, há ainda o álbum 'Falling Deeper' (2011), em que os Anathema revisitam as suas canções iniciais, dando-lhe uma roupagem mais consonante com o que fazem agora. 'Falling Deeper' formava, ao mesmo tempo, uma linha recta com o álbum de originais de 2010, 'We're Here Because We're Here', em que aquela atmosfera depressiva e melancólica que, independentemente de todas as mudanças, sempre foi característica dos Anathema, era contrabalançada por um lado muito mais brilhante e luminoso, como confirmavam canções como Thin Air, Dreaming Light ou Everything.
Com tanta conturbação, o álbum prometido para 2012 só poderia chegar com muita promessa.
Lançado na passada segunda-feira, 'Weather Systems' é um álbum que nos exige uma audição bastante atenta, porque, um pouco como os Anathema já nos têm mostrado, é tudo menos evidente. A sensação de estranheza que 'We're Here Because We're Here' certamente causaria a quem conhecesse o percurso da banda britânica, é mais ou menos aquela que agora 'Weather Systems' nos poderá causar. Daniel Cavanagh explica num vídeo editado pela KScope que este álbum consistia inicialmente num conjunto de cinco canções que totalizavam cerca de trinta minutos de música, às quais se juntaram mais quatro que não tinham encontrado o seu lugar no álbum de 2010. O facto é que as canções formam um conjunto bastante coerente, mas assim fica explicado por que, de certa forma, se sente neste álbum uma certa afinidade com 'We're Here Because We're Here', mas ao mesmo tempo se sente também que algo aqui é realmente novo. Se, por um lado, há uma tendência, como havia em 2010, para criar canções mais luminosas e mais simplificadas, por outro, a inclinação para o atmosférico é bastante forte e a ligação a determinados aspectos da natureza, por exemplo as tempestades, faz-se sentir e não só nas letras, como também na própria concepção das canções, que conta também com sons gravados naturalmente que intensificam essa ligação com os sistemas climáticos prometidos pelo título.
'Weather Systems' abre com Untouchable part 1, onde uma guitarra dedilhada dá o mote para uma canção suave e, de alguma forma, romântica onde a voz suave e quase frágil de Vincent Cavanagh faz uma espécie de declaração de amor (Que, escusado será dizê-lo, não resvala para a vulgaridade.), evoluindo depois para um final mais intenso e gritado, onde a letra, de Daniel Cavanagh, atinge a qualidade do costume. Este final conta também com as harmonias vocais de Lee Douglas, o que traçará a ponte para Untouchable part 2, onde a vocalista partilha a voz principal com Vincent. Esta segunda parte facilmente se poderia tornar foleira, uma vez que o dueto com uma voz masculina e outra feminina, na maior parte dos casos, acaba por se tornar aborrecido e possidónio, mas não é de todo o caso. Aliás, convém lembrar que os Anathema cada vez mais estão a explorar o facto de não só contarem com dois vocalistas, como também o facto das vozes de Vincent Cavanagh e Lee Douglas serem duas vozes que se complementam de uma forma belíssima, como 'Falling Deeper' já tinha provado. Assim sendo, os dois dividem a letra que, de certa forma, parece derivar da letra da primeira parte, sendo esta segunda parte gravada com base no piano, acrescido ainda de belíssimos arranjos de cordas, parecendo esta canção realmente continuar a fase mais sinfónica que 'Falling Deeper' inaugurava.
Segue-se The Gathering of the Clouds, uma das canções mais dramáticas e mais sombrias de 'Weather Systems' e também, desde já se diga, uma das melhores. Uma vez mais o mote é dado pela guitarra dedilhada, num segmento perfeitamente obsessivo, a que se juntará a voz de Vincent, apoiada pela de Lee, evoluindo, através dos arranjos de cordas e da bateria acelerada de John Douglas para uma atmosfera cada vez mais negra e explosiva, mas que não dispensa uma certa procura de libertação. Uma vez mais, as harmonias de Lee Douglas traçarão a ponte para a canção seguinte, Lightning Song, onde, desta vez, Lee canta a canção inteira. Lightning Song acaba por ser um pouco o reverso de The Gathering of the Clouds, uma vez que, continuando a temática da tempestade, segue a postura de uma certa fascinação perante essa tempestade, acabando por a canção, numa tonalidade de deslumbramento, resultar eufórica, principalmente no segmento final, bastante mais pesado do que o inicial. Nesta canção também se experimenta criar os arranjos de corda em torno da guitarra eléctrica e da bateria, o que acaba por resultar tão bem quanto construí-los em torno do piano.
Sunlight será, numa primeira audição, talvez a canção mais desinteressante do álbum. No entanto, ao ouvi-la uma segunda vez, talvez se perceba como, sob uma aparência talvez demasiado delicada, há uma densidade bastante garrida conseguida através do jogo vocal entre Vincent e Lee, que, de certa maneira, anula um pouco o tom morno para que a canção parece inclinar-se.
O álbum inteiro é composto por Daniel Cavanagh, com excepção precisamente de The Storm Before The Calm, da autoria do baterista John Douglas. John Douglas começou a compor canções para a banda que integrava desde a primeira formação (Em 1990.) em 2001, com 'A Fine Day to Exit' e, por um lado, o seu papel como compositor ficou um pouco afectado pelo facto da canção de abertura desse álbum, Pressure, parecer um tanto vulgar. No entanto, era impossível não reconhecer que a ele se devem algumas das melhores canções dos Anathema, como sejam Looking Outside Inside, A Fine Day to Exit, Get Out Get Off ou Universal. E o que acontece em 'Weather Systems' é que esta canção que ele escreve e que, quase se pode dizer, é composta por duas canções distintas, é também uma das melhores do álbum. Com um início onde regressa um pouco a electrónica de 'A Natural Disaster', a voz de Vincent Cavanagh, que aqui prova a sua versatilidade, alia-se à guitarra e aos arranjos de cordas e cria outro momento bastante sombrio que, nalguns pontos, quase faz lembrar a fase inicial da banda. Mais ou menos a meio, a canção muda drasticamente de ambiência, e é-nos dado o outro lado, o acalmar da tempestade, que escolhe uma via que é mais contemplativa do que de celebração. É um momento melancólico e calmo, mas ao mesmo tempo absolutamente belo, com as vozes de Vincent e Lee numa espécie de lamento que é ora sussurrado ora exacerbado. Os quase dez minutos que a canção soma são dos mais representativos de 'Weather Systems'.
Algumas semanas antes do lançamento do álbum, tal como tinha acontecido com o álbum de 2011, os Anathema divulgaram uma das canções. The Beginning and the End será talvez das canções mais simples deste álbum, uma vez que é aquela que nos mostra o trabalho de uma banda em estúdio, sem ajudas exteriores. Constrói-se em torno do piano, tocado por Daniel Cavanagh, e vão-se acrescentando o baixo de Jamie Cavanagh, a bateria e as guitarras. É uma canção belíssima, directa e comovente, e também uma das melhores letras de Danny Cavanagh e a atmosfera melancólica acaba por resultar numa vontade de viver e de sentir que tem sido, desde há vários anos para cá, a mensagem principal dos Anathema.
The Lost Child será uma das canções mais tristes do álbum, mas também das mais idílicas, onde, apesar da letra dramática e sem esperança, a linha de piano, acompanhada pela bateria, cria uma espécie de fuga. Se bem recentemente Daniel Cavanagh fez uma pequena digressão a solo, tocando as canções dos Anathema acompanhado apenas da sua guitarra, esta canção, de certa forma, parece ser um resultado directo dessa experiência. Com esta canção, fica aberto o caminho para o encerramento do álbum, com Internal Landscapes. Este encerramento é construído com base num depoimento em que Joe Geraci relata uma experiência-limite de aproximação à morte. A ideia em si parece derrotista e doentia, mas a verdade é que o conteúdo do relato é belo e impressionante, e, em vez de nos falar da ideia comum de morte, mostra-a como uma luz que se abre sobre a eternidade, em que o indivíduo passa a ser o próprio mundo. A gravação é trabalhada com arranjos de guitarra e de bateria e com as vozes de Lee Douglas e de Vincent Cavanagh que canta pequenos fragmentos realmente suaves e luminosos que deslocam o centro da canção da ideia de morte para uma ideia de libertação e de uma espécie de amore mundi que é uma maneira realmente belíssima de terminar o álbum.
A verdade é que um álbum como 'Weather Systems' não servirá para ouvintes mais fundamentalistas, uma vez que os Anathema parecem cada vez menos interessados em fazer música pesada só porque sim. O facto é que estas canções são belas e bastante pensadas, sendo que a violência só existe se tiver que existir. 'Weather Systems' parece desenrolar-se entre o drama e a fascinação, é um trabalho que sonda aquilo que de mais profundo possa haver dentro de uma pessoa e, tal como acontece no relato de Internal Landscapes, esta música passa a fazer parte de nós e nós dela. Ainda mais difíceis de rotular, os Anathema são realmente uma banda que ou se ama ou se fica completamente indiferente. O extremismo emotivo de um álbum assim não dá lugar a meios-termos e o facto é que, se acontecer, como acontece comigo, que a nossa sensibilidade seja consonante com a desta banda, é impossível que canções destas não nos comovam e não nos aproximem de nós mesmos. Para isso mesmo, penso eu, deveria servir a música.