OUTROS PERCURSOSA poucas páginas do final do seu quarto romance, Wanda Ramos descreve um texto inédito e inacabado do personagem que origina a teia de toda esta história como “uma história de traição imposta a uma matriz de engajamento político-ideológico, porém sendo frouxos os dois movimento de fundo de enredo e mostrando-se pobremente definida a protagonista” (pag.208). Ainda que o enredo de “Litoral (Ara Solis)” pudesse facilmente originar uma narrativa consonante com o romance escrito por um dos seus personagens, a descrição acima transcrita é uma descrição do oposto desta. Não que tal surpreenda.
Aquando da publicação deste livro, em 1991, Wanda Ramos escrevera já a sua obra completa em poesia que, apesar de não ser propriamente assinalável, se revela de extrema solidez e coerência; bem como o essencial da sua obra como romancista, onde obras como “As Incontáveis Vésperas” são exemplares da força da escrita da autora de origem angolana.
Assim sendo, “Litoral (Ara Solis)” não desaponta em aspecto algum.
Revela-se, logo à vista desarmada, um romance muito bem estruturado, com uma separação por capítulos que promete (E cumpre.) um estilo de composição pouco dado a barroquismos ou desvios. Depois, a leitura do resumo na contracapa do livro, juntamente com a dos primeiros capítulos é suficiente para entender também que o texto é reflexo de um pensamento bem organizado e sem equívocos:
Miguel Cê é encontrado morto na sua casa no Cabo Finisterra, no litoral galego, sendo todos os seus pertences legados à única familiar viva, uma prima que reside em Lisboa, e que será a narradora. Após alguma hesitação inicial, que se faz acompanhar do resgate de certas memórias de infância, a Narradora decide-se a ir para Finisterra, a fim de inventariar a vida de Miguel Cê, e esclarecer a causa da sua morte. É nos resultados destes objectivos, bem como nos relatos das viagens, num registo que roça o diarístico, que consiste “Litoral (Ara Solis)”.
Este enredo é desde logo sinuoso e pouco óbvio no que toca a resoluções. É-o primeiramente porque a tendência mais lógica seria a de fazer o relato cronológico da vida de Miguel Cê. Fraca solução me parece, por duas razões: além de traír a promessa de um romance escorregando no sentido da biografia, seria sempre pantanoso recriar plenamente a vida de uma pessoa com quem o contacto foi tão escasso como neste caso.
Assim sendo, Wanda Ramos mostra-se à altura destas exigências e clarifica as soluções encontradas logo desde o início da história: assume Miguel Cê como um personagem ausente da própria história, apresentando-nos apenas os elementos do seu espólio e as histórias contadas pelos amigos ou conhecidos com quem a Narradora se vai cruzando e, mais importante ainda, assume esta última como protagonista, o que faz todo o sentido uma vez que a história vive essencialmente da investigação que esta leva a cabo.
Outro aspecto que me parece relevante em “Litoral (Ara Solis)” é a sua intertextualidade. A autora assume e encorpora no seu texto citações de outros autores ou dos diários de Miguel Cê, fornecendo assim um relato mais denso e mais complexo das situações que desvenda na vida do primo, e fornecendo dados para uma recriação consistente do ambiente em que esta se desenrolara, aceitando com a mesma seriedade textos dos Canterburry Tales e lendas folclóricas da Galiza, ilustrando assim os percursos da Narradora pela costa, desde Finisterra à Praça Ara Solis, até a La Coruña, etc.
Por último, “Litoral (Ara Solis)” surpreende por fugir do cliché de procurar um final absolutamente chocante, dando preferência a um desenlace que prima pela naturalidade e pela ideia de que seria perfeitamente possível.
Lamentavelmente, a morte levou Wanda Ramos precocemente. Caso contrário, parece-me que a produção de mais alguns romances como este acabaria por lhe dar o reconhecimento que merece e que, mesmo assim, não deixou de lhe ser dado a seu tempo, tendo, por exemplo, este texto vencido o Prémio Literário Cidade de Almada para Romances Inéditos de 1991.