quinta-feira, 23 de abril de 2009

a procura da fecalidade



Onde cheirar a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem deixar de cagar,
deixar de abrir a bolsa anal,
mas preferiu cagar
como poderia ter preferido viver
em vez de consentir em viver morto.

É que para não fazer cócó
teria que aceder
a não ser,
mas ele é que não foi capaz de se resolver a perder o ser,
isto é a morrer vivo.

Existe no ser
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente
............................ O CÓCÓ
............................ (aqui rugido)

Para existir basta que se conscenda em ser,
mas para viver
é preciso ser alguém,
para ser alguém
é preciso ter OSSOS,
não ter medo de mostrar os ossos,
e de caminho perder a carne.

O homem sempre gostou mais da carne
do que da terra dos ossos.
É porque só o que havia era terra e madeira de ossos
e ele viu-se obrigado a ganhar a sua carne,
só o que havia era ferro e fogo
e merda não,
e o homem teve medo de ficar sem merda
ou antes desejou a merda
e para isso sacrificou o sangue.


Antonin Artaud
"Para Acabar de Vez Com o Juízo de Deus"
tradução de Luiza Neto Jorge
imagem: Canibalismo de Outono, Salvador Dalí

terça-feira, 21 de abril de 2009

2 anos depois

in and out on this same path that I’ve followed for years
can’t I look around and ask how could we still end out up here?
i can’t just hold tight, wait for them to cut us to ribbons
if the sharpest thing where you come is a blade of grass

oh, take me with you
i don’t need shoes to follow
bare feet are running with you
somewhere a rainbow ends my dear

these injuries
don’t you think we need a new referee?
i can’t let the ball drop, boy I need some interference
to shut them up

oh, take me with you
i don’t need shoes to follow
bare feet are running with you
somewhere the rainbow ends my dear

oh, take me with you
chase rabbits into their burrow
bare feet are running with you
today even the rain can cut me up

tears turn to steel
and the wound never heals
in the darkness of november
well, the witch is in the tower
and the snake’s in the bower
and the hunt goes on forever
now the stake is there to burn
my father’s robe is torn between cross and mother
with the blood on your hands, come on what'cha doing?
i am fed up with this questioning
here

oh, take me with you
i don’t need shoes to follow
bare feet running with you
somewhere the rainbow ends my dear

oh, take me with you
chase rabbits into their burrow
bare feet are running with you
today...
today...

tori amos, take me with you

segunda-feira, 20 de abril de 2009

também

na Galeria Trindade, Miguel Bombarda



Silêncio (Ou As Variações de Goldberg) de Isabel Quaresma




Le Theatre de Salpêtrière de Cláudia Melo

Isabel Lhano: Nós

A mais recente série de pintura de Isabel Lhano encontra-se agora exposta no Solar de Santo António,Rua do Rosário, Miguel Bombarda.

Ao longo do percurso de Isabel Lhano pela pintura, é perceptível uma obcessão pela intimidade. No entanto, as formas de a representar têm sido variadas, desde figuras de silhueta estilizada, às mulheres e homens de inspiração renascentista, até à fase em que inicia, mantendo o estilo escultórico, imagens hiper-realistas, que depois passam a desenvolver-se em monocromatismo.

Seguindo esta fase mais recente iniciada em 2005 com "Elogio do Essencial", "Nós" desenvolve-se numa linha em que a volumetria, aspecto essencial na obra da pintora, é conseguida através de gradações numa única cor. No entanto, relativamente à exposição anterior, "A Concha Quadrada", nota-se aqui uma drástica depuração: Isabel Lhano prossegue nas suas abordagens directas da intimidade, mas desta vez, fá-lo apenas com a representação de dois pares de mãos. E é o suficiente.

Através das posições muitas vezes confusas mas sempre de grande precisão, são transmitidas imagens de um maior desejo, ou agressividade, ou paixão, ou fuga, ou o que se quiser. Esta multiplicidade e complexidade de nós e de cruzamentos também resulta numa quase metáfora para um sem-número de elementos que não mãos.

domingo, 19 de abril de 2009

um poema


Hoje vejo o sol duma maneira nova.
Puseram um grande papel azul-escuro salpicado de orificios à frente duma grande lâmpada. A luz espirra pelos buracos em jactos aguçados.
E, depois, na parte de baixo, recortaram o papel do feitio de casas, de árvores, de montes. Como a lâmpada está muito alta, as casas, as árvores e os montes ficaram negros.
Lembrei-me, outra vez, dos cartões que eu recortava na escola. Às vezes fazia quadros de papel de lustro, e o céu era sempre uma tira azul-escura que eu colava por cima das árvores, das casas e dos montes.
Hoje o céu é muito simples.



FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
"Em Cada Pedra Um Voo Imóvel", 1958
edição de autor
imagem: RENÉE MAGRITTE

sábado, 18 de abril de 2009

toque de campainha



Entre a rosa e a chuva é tudo solidão
Nenhuma mão vence a distância
que separa um e outra do portão
começa e termina na infância



Ia jurar que outrora estive aqui
ou uma que não esta porta ao fim passarei
E tudo coube no olhar com que não vi
aquele rosto ali mas outro que não sei





RUY BELO
Aquele Grande Rio Eufrates
edições ática, 1961
desenho de MAX ERNST

sexta-feira, 17 de abril de 2009

luiza neto jorge por rodrigo leão


o poema "A Magnólia" de O Seu a Seu Tempo (1966), interpretada por Rodrigo Leão

quinta-feira, 16 de abril de 2009

adriana calcanhotto

a cantar Poética do Eremita, com poema de Fiama Hasse Pais Brandão.

Belíssimo

quarta-feira, 15 de abril de 2009

um poema


Como rebuscar na memória
esse nomear das coisas uma a uma
tão distantes já passado nostalgia
a carne doendo se persisto agonia?



As dores as sofridas solidões os amores
a inefável pertinácia da floresta
rés de angústia meu olhar desassombrado
de animal perdido a coberto do silêncio.



Cerce a chana doente ardendo
tão longe longínqua a cidade dos acasos
das inconsúteis planuras desse país
vergastadas de medo no mapa-mundi da infância.


Deste lado agora definitivamente
como calar os embondeiros rasgados a sangue
nas veias traços minuciosos nas margens
do papel por desfastio? gangrena farpas.



Como o pasmo de sempre correr à frente do tempo
laboriosa busca dos sintagmas perdidos
tão longe tão remota eu em distante país.






Wanda Ramos
Poe-Mas-Com-Sentidos
ulmeiro, 1986
imagem: Floria Sigismondi

um poema

O meu coração desce,
Um balão apagado...
-Melhor fora que ardesse,
Nas trevas incendiado.

Na bruma fastidienta,
Como um caixão à cova...
-Porque antes não rebenta
De dor violenta e nova?!

Que apego ainda o sustém?
Átomo miscerando...
-Se o esmagasse o trem
Dum comboio arquejando!...

O inane, vil despojo
Da alma egoísta e fraca!
Trouxesse-o o mar de rojo,
Levasse-o na ressaca.

Camilo Pessanha
CLEPSIDRA

terça-feira, 14 de abril de 2009

apresentação do rosto (excerto)


Atravessei depressa a juventude.
Tinha duas coisas- a alegria e o terror.
Percorri-os sem tomar fôlego.
Quando cheguei ao outro lado, encontrava-me em frente da maturidade- estupefacto.
Não conhecia os nomes nem as subtilezas.
Falando com certas pessoas eu dizia: conheci a alegria e o terror.
Elas sorriam.
Parece que eram sábias.
Ou estúpidas.
Nada sei disso.


Herberto Helder
"Apresentação do Rosto"
1968, ulisseia, excluido da obra pelo autor
fotografia: Bone Lonely por Paulo Nozolino

Eu Era Dessa Areia I



Pouso estas mãos descalças
areia de músculos
som precário
e os dedos param
divagam
depois seguem precisos
como se fossem telecomandados.


Como fazer sorrir este papel
com o teu sorriso?
Abrir nesta palavra
a tua boca?
Colocar nesta brancura
os teus cabelos?


As tuas pernas longas
raciocinam.
Erguidas sobre a cama
meditantes
ensombram de silêncio
um sexo adulto.


Armando Silva Carvalho
"Eu Era Dessa Areia"
1977, edições o oiro do dia
(esgotado)
imagem: auto-retrato de Robert Mapplethorpe (1976)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

quanto a isto, é só porque gosto muito

é o que eu digo

isto não pára mesmo. Seis anos depois de "Hotel Paper", Michelle Branch marcou para o verão a edição de "Everyhting Comes and Goes". Isto é um excerto de "This Way", o single de avanço.


domingo, 12 de abril de 2009

2 auto-retratos de Floria Sigismondi

5 vídeos de Floria Sigismondi

Christina Aguilera "Fighter"


A Perfect Circle "Weak and Powerless"


Muse, "Supermassive Black Hole"


Sarah McLachlan, "Sweet Surrender"


The White Stripes, "Blue Orchid"

vestígios




noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras


hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se


onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial



Al Berto, "Horto de Incêndio"
imagem: Floria Sigismondi

isto não pára

agora é Mísia, de longe a mais original e ousada fadista viva, que a 27 de Abril publica Ruas, um duplo álbum. No primeiro cd, Lisboarium, são cantados poetas como Ary dos Santos ou Fernando Pessoa, a par com as habituais colaborações de Rosa Lobato de Faria e Vasco Graça Moura. Já em Tourists, são músicos internacionais que Mísia interpreta. Entre eles estão os Nine Inch Nails e os Joy Division.
A capa é esta

sábado, 11 de abril de 2009

katy brand: melhor que o original


"Heart Bypass Love"

uma bela alternativa aos excessos de "Bleeding Love"

laurie anderson: esta mulher previu a crise há dois anos atrás

"Only an Expert/ Maybe If I Fall", do espectáculo Homeland

também quase a chegar

está "Abnormally Atracted To Sin" o próximo álbum de Tori Amos, a 19 de Maio de 2009.
Aqui em baixo ficam a capa do álbum e o vídeo do single de apresentação, "Welcome To England"



pessoas como nós

"dream brother, my killer, my lover"

é em alturas destas que esta cena que no meu caso começou a 10 de Março de 1990 vale a pena: a nova música dos Placebo de Brian Molko chama-se "Battle For The Sun". O álbum com o mesmo título é lançado a 8 de Junho, e a passagem por Portugal, mais propriamente pelo Alive é a 10 de Julho

sexta-feira, 10 de abril de 2009

o boi da paciência



Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!



Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?



Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros. Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo

recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:
Dêem árvores para um novo recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me limpe o sangue!
Recomeçar!



Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas
em nome das raízes
em nome dos países
em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele

Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como perservar este amorostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão

A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!

António Ramos Rosa, "Viagem Através de Uma Nebulosa", 1960
imagem: Kazemir Malevich

this fever is back...

até parece sobre droga, mas nao é...

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Wanda Ramos: Litoal (Ara Solis)

OUTROS PERCURSOS

A poucas páginas do final do seu quarto romance, Wanda Ramos descreve um texto inédito e inacabado do personagem que origina a teia de toda esta história como “uma história de traição imposta a uma matriz de engajamento político-ideológico, porém sendo frouxos os dois movimento de fundo de enredo e mostrando-se pobremente definida a protagonista” (pag.208). Ainda que o enredo de “Litoral (Ara Solis)” pudesse facilmente originar uma narrativa consonante com o romance escrito por um dos seus personagens, a descrição acima transcrita é uma descrição do oposto desta. Não que tal surpreenda.
Aquando da publicação deste livro, em 1991, Wanda Ramos escrevera já a sua obra completa em poesia que, apesar de não ser propriamente assinalável, se revela de extrema solidez e coerência; bem como o essencial da sua obra como romancista, onde obras como “As Incontáveis Vésperas” são exemplares da força da escrita da autora de origem angolana.
Assim sendo, “Litoral (Ara Solis)” não desaponta em aspecto algum.
Revela-se, logo à vista desarmada, um romance muito bem estruturado, com uma separação por capítulos que promete (E cumpre.) um estilo de composição pouco dado a barroquismos ou desvios. Depois, a leitura do resumo na contracapa do livro, juntamente com a dos primeiros capítulos é suficiente para entender também que o texto é reflexo de um pensamento bem organizado e sem equívocos:
Miguel Cê é encontrado morto na sua casa no Cabo Finisterra, no litoral galego, sendo todos os seus pertences legados à única familiar viva, uma prima que reside em Lisboa, e que será a narradora. Após alguma hesitação inicial, que se faz acompanhar do resgate de certas memórias de infância, a Narradora decide-se a ir para Finisterra, a fim de inventariar a vida de Miguel Cê, e esclarecer a causa da sua morte. É nos resultados destes objectivos, bem como nos relatos das viagens, num registo que roça o diarístico, que consiste “Litoral (Ara Solis)”.
Este enredo é desde logo sinuoso e pouco óbvio no que toca a resoluções. É-o primeiramente porque a tendência mais lógica seria a de fazer o relato cronológico da vida de Miguel Cê. Fraca solução me parece, por duas razões: além de traír a promessa de um romance escorregando no sentido da biografia, seria sempre pantanoso recriar plenamente a vida de uma pessoa com quem o contacto foi tão escasso como neste caso.
Assim sendo, Wanda Ramos mostra-se à altura destas exigências e clarifica as soluções encontradas logo desde o início da história: assume Miguel Cê como um personagem ausente da própria história, apresentando-nos apenas os elementos do seu espólio e as histórias contadas pelos amigos ou conhecidos com quem a Narradora se vai cruzando e, mais importante ainda, assume esta última como protagonista, o que faz todo o sentido uma vez que a história vive essencialmente da investigação que esta leva a cabo.
Outro aspecto que me parece relevante em “Litoral (Ara Solis)” é a sua intertextualidade. A autora assume e encorpora no seu texto citações de outros autores ou dos diários de Miguel Cê, fornecendo assim um relato mais denso e mais complexo das situações que desvenda na vida do primo, e fornecendo dados para uma recriação consistente do ambiente em que esta se desenrolara, aceitando com a mesma seriedade textos dos Canterburry Tales e lendas folclóricas da Galiza, ilustrando assim os percursos da Narradora pela costa, desde Finisterra à Praça Ara Solis, até a La Coruña, etc.
Por último, “Litoral (Ara Solis)” surpreende por fugir do cliché de procurar um final absolutamente chocante, dando preferência a um desenlace que prima pela naturalidade e pela ideia de que seria perfeitamente possível.
Lamentavelmente, a morte levou Wanda Ramos precocemente. Caso contrário, parece-me que a produção de mais alguns romances como este acabaria por lhe dar o reconhecimento que merece e que, mesmo assim, não deixou de lhe ser dado a seu tempo, tendo, por exemplo, este texto vencido o Prémio Literário Cidade de Almada para Romances Inéditos de 1991.

"cobra"



Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.





Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.

Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.



E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.





Herberto Helder
COBRA





1977- &etc (esgotado e eliminado de "Ofício Cantante" 2009)

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Amy MacDonald: This Is The Life

YOUTH OF TODAY
.
.



Seja mau ou bom, confesso que não estou muito a par das tendências nas playlists das rádios, mas tenho uma vaga ideia de que Amy MacDonald é a nova coqueluche destas. Nos últimos tempos assistimos a isso com Colbie Caillat e depois com Brandi Carlile. As rádios têm esta necessidade de criar fenómenos, e de os renovar. Se isto é benéfico ou maléfico para os ditos fenómenos, isso é outra história que não é assunto deste texto.








Do que queria falar era de “This Is The Life”, o álbum de estreia de Amy MacDonald, uma cantora/compositora escocesa cujo nome vem agora a lume, não sem a influência que hoje parece obrigatória de vários sites de internet que de certa maneira vêm substituir os longínquos concertos acústicos em bares.
No entanto, parece-me que este é um álbum que merece referência. O próprio título, embora possa parecer um tanto pretencioso, é certamente muito explícito em relação ao objectivo da sua autora, e, devo dizer, parece-me que tal objectivo é atingido: a descrição de um determinado estilo de vida de uma determinada faixa etária (Pós-adolescente.).
Mas nesse processo (De descrição, entenda-se.) Amy MacDonald destaca-se por conseguir um tom analítico que não cai na predicabilidade de uma poser do género Avril Lavigne.
Parece-me que dentro deste conceito, MacDonald terá conseguido alguns picos de qualidade, que passam pela titletrack, por “The Youth Of Today” ou “Let´s Start a Band”. O estilo de escrita é depurado e desabrido (Isto diz-se?), por exemplo ao dizer “Maybe if you had a true point of view/ I would listen to you/ But it´s just your one-sided feelings/ They keep getting in my way/ And you don´t know a single thing/ About the youth of today/ Stayed in your opinion/ Making it ring nin my head all day…” (Youth Of Today).

Além disso, Amy MacDonald distingue-se das restantes cantoras adolescentes da adolescência por não centrar em si ou nas suas ideias toda uma faixa etária e consequente postura, relatando por vezes situações que lhe são claramente exteriores.
Musicalmente, a sonoridade funde o rock simples/semi-acústico com um travo de folk provavelmente ancorado nas raízes pessoais (Quero eu dizer, o facto de ser escocesa.), com influências que remetem tanto para um certo estilo mais recente, do género Kate Walsh, e o inevitável contágio de Alanis Morissette, Jewel, Tori Amos, Fiona Apple ou Feist. Assim sendo, consegue, sem perder a coerência, momentos de maior frenesi como sejam “Mr. Rock and Roll”, “Run” ou “Let´s Start a Band” e outros mais deprimidos/melancólicos, “Footballer´s Wife”, “This Is The Life” ou “The Youth Of Today”.
Com ou sem rádio, fica-se à espera de mais notícias de Amy MacDonald, preferencialmente algo que não anule as qualidades deste álbum de estreia.






"Run"






"This Is The Life"

terça-feira, 7 de abril de 2009

João Botelho: A Corte do Norte

AGUSTINIZADO E OLIVEIRIZADO
Há coisas difíceis de entender, ou que pelo menos para mim o são. Que um realizador adapte um dos mais complexos romances de Agustina Bessa-Luís, “A Corte de Norte” (1987) após ter adaptado “Eu Carolina” de Carolina Salgado, é uma delas.

Obviamente, não me vou perder neste tipo de questões, logo porque nem sequer vi o filme “Corrupção” e muito menos li o livro da diva do FCP.
A adaptação deste romance, no entanto, parece-me boa, apesar de apresentar algumas falhas muito óbvias.
Com muita pena (E perda.) minha, ainda não vi todas as adaptações que Manoel de Oliveira fez de romances de Agustina Bessa-Luís. Já vi, no entanto, algumas.
Aparentemente, João Botelho também.
Se há realizador que conseguiu muitos pontos altos na sua carreira através da adaptação das histórias agustinianas, foi Manoel de Oliveira. Ao fazer uma coisa que é tão característica de outro realizador, João Botelho deveria ter tido o cuidado de criar uma dinâmica própria e preferencialmente dissonante da de Oliveira.
Obviamente, Agustina não é propriedade do Mestre, mas é-lhe quase sempre associada, e, ao aproximar-se tanto assim da “visão” de Oliveira sobre Agustina, João Botelho arrisca-se a que o filme que agora nos apresenta seja visto como pouco criativo ou inspirado.

Não é, no entanto, exactamente isso que se passa com "A Corte do Norte", mas quase.
Apesar de ir buscar a Oliveira o estatismo e a teatralidade, João Botelho inova ao acrescentar a voz off que vai recitando passagens retiradas do romance. Parece-me uma boa ideia, por resultar numa forma eficaz de marcar bem a presença da voz de Agustina Bessa-Luís, principalmente por utilizar frases muito características do estilo da escritora: a abordagem cáustica e um tanto perversa das situações.
Sendo uma história que decorre na Madeira, a filmagem das paisagens seria obviamente muito importante, e nisso, João Botelho acertou, escolhendo as paisagens certas, que além da beleza, transmitem uma certa ambiguidade entre a liberdade e o isolamento.
Quanto à história, ela é filmada um tanto de trás para a frente, enquanto a história de Emília de Sousa é explorada. Nos finais do século XIX, esta passou de prostituta a actriz de teatro de tal talento que passa a ser protegida de Almeida Garrett.

No entanto, não demora a casar-se com um homem riquíssimo da Madeira, e a mudar-se com ele para lá. Tornando-se Rosalina de Sousa, passa a conviver com a fina-flor dos habitantes da ilha, incluindo Elisabeth da Áustria. No entanto, em 1861, esta última abandona a ilha, e Rosalina decide abandonar a família e isolar-se na Corte no Norte, uma espécie de local amaldiçoado, uma vez que é lá que se suicida, que há-de constituir um mistério para as gerações que se lhe seguem.
João Botelho consegue seguir esta história de uma forma maioritariamente clara, ainda que por vezes se deixe perder demasiado em pormenores que só a tornam um tanto mais confusa ou escorregadia.
Dela, há que destacar uma frase “Que nos interessa que um senhor qualquer se deite com uma mulher?- perguntava. Mas quando alguém se atirava ao mar, isso levantava variadas hipóteses. Será isso ainda amor, ou só o gesto envergonhado do sublime?”