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sábado, 18 de abril de 2009

toque de campainha



Entre a rosa e a chuva é tudo solidão
Nenhuma mão vence a distância
que separa um e outra do portão
começa e termina na infância



Ia jurar que outrora estive aqui
ou uma que não esta porta ao fim passarei
E tudo coube no olhar com que não vi
aquele rosto ali mas outro que não sei





RUY BELO
Aquele Grande Rio Eufrates
edições ática, 1961
desenho de MAX ERNST

quinta-feira, 22 de maio de 2008

more or less some time ago


Hoje é uma noite inteira
Vesti-me de preto, estou drogada,
encosto-me, húmida, a uma esquina escura,
com vómitos, e a tremer. Vejo rasgadas
as minhas meias negras, nos joelhos.
Terei caído. A cidade oscila,
os olhos vêem-na tremer, sem luz.
Seguro ainda, com estas garras,
a bolsa que roubei no bar.
Alguém me apalpa e vai ferir-me, rio,
rouca, de baba na boca, e oscilo.
Roubaram-me agora a bolsa, grito
roucamente, e caio de novo no
passeio, muito branca.




ALICE CORINDE, 2º de 6 inéditos publicados na colectânea "Amor Luxúria e More", 1985
imagem: RAY CAESER

segunda-feira, 19 de maio de 2008

un chien andalou

Argumento dividido entre Luis Buñuel e Salvador Dalí, "Um Cão Andaluz" é o percursor e o mais mediático filme surrealista. Buñuel sonhara com uma lâmina a cortar um olho, Dalí com uma mão que deitava formigas. Cruzaram os sonhos. Buñuel alegava que ambos declinaram qualquer imagem que pudesse ter uma explicação racional. Mas, como sempre acontece, é pouco claro se realmente assim foi. Muitas imagens parecem fazer sentido e ter de facto um determiando objectivo. Burros estão sepultados em pianos que arrastam padres. A mulher tem a axila depilada enquanto o homem cospe pelo. Os anos passam mas as pessoas estão no mesmo sítio e não envelhecem. Este é um filme brutal. E essencial para qualquer um que queira perceber em pleno o surrealismo.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

fado alexandrino


Amanhã chegaste à minha vida
e disseste bom dia e era noite lá fora
puseste-me na mesa o prato da comida
acenaste-me adeus e não te foste embora

E como era manhã vestiste o meu pijama
tomaste um comprimido para dormir acordada
como era hora do almoço chamaste-me para a cama
como era hora da ceia bebeste-me ensonada

E quando temos frio aquecemos à lua
as mãos que penduramos na corda de secar
quanto mais roupa trazes, mais eu te sinto nua
e quanto mais te calas mais te sinto cantar


poema: ANTÓNIO LOBO ANTUNES
imagem: RENÉE MAGRITTE

sexta-feira, 11 de abril de 2008

as palavras



"As vozes esganiçadas das carpideiras vibram lívidas nas agulhas que a penedia levanta. Arrepiam as cristas das vagas deste oceano de pedra. Descem de socalco em socalco. Vão lamber o gelo do rio que a geada glaciou e a teça do silêncio sepulcral da montanha enche-se do vinho da tua morte. De longe a longe deixam de se ouvir. Adivinha-se uma pausa suspirosa na qual o luto vai buscar reforços ao reservatório da dor para de novo fazer rugir as águas lúgubres da velada. Ouve-se então o uivar do teu cão como se a sua alma sumprisse o apaixonado dever de propagar a lenga-lenga fúnebre.
Piedosamente elas vieram oferecer ao teu cadaver a sua técnica ancestral de prantear od defuntos. Vieram maternalmente a não para receber a caridade, o pão, o vinho que é uso dar aos que vêm velar os moeros. Porque tu não tinhas ninguém para celebrar os ritos da tua morte. Nasceste desta paisagem como as estevas que se eriçam pelas fendas dos xistos."





NATÁLIA CORREIA, "A Madona" (1982)
Imagem: CASPAR DAVID FRIEDRICH

sábado, 26 de janeiro de 2008

David Lynch: INLAND EMPIRE

IMPÉRIO ONÍRICO

Actualmente é difícil encontrar um filme que nos faça realmente parar para pensarmos sobre ele, e mais raro ainda é aquele que, mesmo assim, em muito continua a ser ilegível. Isto se não se está a falar dos filmes do mestre David Lynch. Depois do brutal "Mulholland Drive" de 2001, as mulheres voltam a estar no centro de um mistério indecifrável em "INLAND EMPIRE".

Até aqui, é tudo o habitual nos filmes de David Lynch (Entenda-se os filmes de David Lych como "Estrada Perdida", "Blue Velvet" ou "Firewalk With Me".). Mas em "INLAND EMPIRE", que chega a público cinco longos anos depois de "Mulholland Drive", há algo de novo, de deliciosamente novo: filmadas com uma câmara digital de baixa definição, por vezes a preto e branco, as imagens parecem saídas da cabeça de Lynch sem qualquer tratamento. Por vezes a imagem é suja, escura e granulada, há elementos que parecem impossíveis de ligar com o resto do filme, mas a verdade é que tudo isto é uma realidade distorcida e deturpada, que somos priviligiados em poder ver; desde o sitcom da família de homens-coelho á rapariga perdida que a este assiste, ao ar desorientado de Laura Dern, aos alucinantes sem-abrigo.


Mas vamos por parteS. O filme centra-se (Mas não se limita.) na personagem de Laura Dern, uma actriz, Nikki, que recebe a visita de uma sinistra nova vizinha que, sem o mínimo propósito, lhe conta dois contos tradicionais polacos sobre o nascimento do mal. Além disso, ela parece saber muito sobre o filme para o qual já sabe que Nikki será escolhida para protagonizar no dia seguinte. É neste contexto que surgem, Devon (Justin Theroux) e Kingsley (Jeremy Irons), respectivamente o co-protagonista e o realizador de "On High On Blue Tomorrows". Na sequencia de um pequeno incidente, o realizador revela aos seus protagonistas que, na verdade, o filme que se preparam para fazer é na realidade um remake de um filme alemão sobre um conto polaco que nunca chegou a ser concluido, devido ao homicídio dos dois protagonistas.
É nisto que, de repente, Nikki se encontra a viver simultâneamente a sua vida, a de Sue, a sua personagem e a da actriz que interpretara Sue na pirmeira versao do filme.
Ao mesmo tempo, há uma mulher que garante á polícia que foi hipnotizada para matar uma pessoa, que não sabe quem é, mas reconhecerá quando a vir.
Todas as estas histórias se cruzarão, depois de Nikki acender um cigarro e fizer um furo no veludo e vê...
"INLAND EMPIRE" não é um filme a ser visto com um balde de pipocas numa mão e uma lata de Coca-Cola na outra. É, na realidade um filme para ser visto com muita, muita atenção, e várias vezes. É, também um dos melhores filmes de David Lynch. Pode ser imperceptível, mas, vendo pelos olhos de Lynch, é um filme realista. Se imaginarmos que tudo se passa dentro da cabeça de Nikki Grace, tudo faz sentido. O estado quase catatónico de confusão em que a actriz se encontra, as situações, cada vez mais surreais, a que é exposta, e a originalidade de todas as sequencias, faz deste filme imperdível... para todos mesmo...





Nota: 20/20

domingo, 23 de dezembro de 2007

Natália Correia: Madona

DUAS LUAS


"A Madona" é o título do segundo romance da tardo-surrealista Natália Correia, publicado 24 anos após o primeiro, "Anoiteceu no Bairro". Nestes 24 anos, Natália, dona de um génio ímpar, publicou ensaios, peças de teatro, e algumas das suas mais importantes obras em poesia, livros como "Dimensao Encontrada" (1957), "Cântico do País Emerso" (1961), assim como a sua "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica" (1965).



Fosse eu dono do mundo, e nao haveria uma única pessoa que morresse sem ter lido Natália Correia. E "A Madona", cuja leitura terminei há algumas semanas, vem reforçar esta minha certeza.
Esta é a história de Branca, e dos três homens da sua vida, Manuel, Miguel e "o Anjo", Lars Nielsen. E não é só no domínio barroco da linguagem, na densidade das imagens metafóricas/ surrealistas e na pessoalidade narrativa que a autora brilha, é, principalmente, na forma como nos conduz através da história, desmontando a cronologia e encadeando os momentos uns nos outros, sem que nada seja ao acaso, e sem que a linha narrativa principal seja desviada. Todos os outros momentos surgem quase paralelamente, tocando o momento presente num ponto quase imperceptivel.
E, o que seria dificil para muitos bons escritores, para Natália é naturalmente simples: como explorar a virgindade eterna e eternamente atacada de Branca, como explorar a sua espiritualidade, sem que essa exploração violasse essa mesma espiritualidade.
Mas também assuntos como a eterna dúvida de escrever, a influência da política, a homossexualidade, a morte, e a superficialidade religiosa são abordados em "A Madona", com particular perspicácia e exactidão.
"A Madona" é, por isso, um livro obrigatório, e torna-se-o ainda mais quando se trata apenas na segunda incursão da escritora no domínio do romance.



Veredicto: 20/20

quinta-feira, 6 de julho de 2006

O Espírito



(Natália Correia)


Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas




E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.




Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera




Andorinha indene ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.





Imagem: "O Baloiço"1767, de Jean Honoré Frangonard

Natália Correia nasceu em 1923 em Fajã de Baixo, nos Açores. Inserida no contexto do surrealismo, Natália está entre os mais assinaláveis autores da literatura contemporânea, tendo escrito poesia, romances, ensaios, apontamentos políticos, teatro, crónicas, tendo sido também tradutora, editora e jornalista. Morreu em 1993, legando á literatura algumas das mais brilahntes obras que esta já conheceu.

Jean Honoré Fragonard nasceu em Grasse em 1732, estudou brevemente em Itália, e, regressado a França, tornou-se num dos mais emblemáticos pintores do rococó. A obra "O Baloiço" é uma das mais importnates não só do seu trabalho como de toda a pintura rococó.