domingo, 30 de dezembro de 2012

À Force de les Voir


À force de les voir
Il y a des mots qui vous rendraient malades
Des mots connus mais très dangereux à manier
Sauf si on les entoure de musique
On met bien du sucre autour de amandes amères
Des mots comme sable, herbe
Comme soleil, comme étendus côte à côte
Comme peau dorée, comme cheveux blonds
Comme dents brillantes et lèvres salées
Et puis d'autre mots, encore plus dangereux
" Personne à l'horizon, on peut y aller "
Et les plus dangereux de tous :
" C'est encore meilleur la cinquième fois. "
Heureusement, des tripotées de vieux zingues
Fabriquent de la phénoménologie à tire-larigot
Et vous balancent des bombes atomiques par le travers de la gueule...
Je m'excuse... le souffle de l'inspiration...
C'est pas tous les jours que la muse vous visite.


Boris Vian
Cantilènes en Gelée
1949, ed. Rougerie
desenho de Henri Michaux

Le Sabotage Amoureux de Amélie Nothomb

O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA

Já aqui falei da escritora belga Amélie Nothomb, que desde a publicação do seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin', em 1992, tem conquistado um lugar especial nas letras francófonas, com vários prémios e com o título de mais importante jovem autora francófona. Nothomb é uma espécie de fenómeno de escrita e não só. Cultivada uma imagem de certa estranheza, a obra tem sabido não ficar àquem. Partindo muitas vezes de referências autobiográficas, as obras de Amélie Nothomb sabem expandir-se para uma série de universos mais vastos e mais densos, o que de certa forma explica a aderência de que a sua obra tem gozado. 


Nascida em Kobe (Japão), filha de diplomatas belgas, Nothomb passa a residir em Bruxelas aos 18 anos e os seus livros não raro se debruçam sobre a infância passada sempre em vários países. É o caso do seu segundo romance, este 'Le Sabotage Amoureux' (Ao contrário do primeiro, não se encontra traduzido para português.), que se centra nos anos em que Amélie viveu em Pequim, vinda do Japão, entre os cinco e os oito anos. Situado no início dos anos 70, o romance começa por narrar-nos uma guerra invulgar. Trata-se da guerra travada pelas crianças do bairro de San Li Tun, crianças de várias nacionalidades, sendo que todas se unem para combater as da Alemanha de Leste, representação simbólica dos mitos sobre comunismo. Chegada do Japão, a narradora pensa que o que define um país comunista é a existência de ventiladores, essas flores metálicas que não existiam no país onde nascera. As batalhas diárias são descritas num tom absolutamente desarmante, uma vez que a visão adulta da escritora se funde na visão simuladamente  infantil e assim, de uma narrativa que se traça a partir do imaginário de uma criança (Com bicicletas que são cavalos, por exemplo.) é posta em causa uma estruturação política, e também uma estruturação educativa, enquanto preparação para a idade adulta e a consciência politizada.
No entanto, o cerne de 'Le Sabotage Amoureux' é uma história de amor. A vida no bairro de San Li Tun altera-se com a chegada de dois irmãos italianos. A narradora rapidamente se apaixona por Elena, uma rapariga bela que não adere à brincadeira da guerra, e cuja frieza exerce a maior das fascinações sobre a jovem narradora.
Desse dia em diante, a grande preocupação da narradora é seduzir a recém-chegada. Inicialmente, tenta cativá-la para o jogo da guerra. Percebendo que essa abordagem não é o caminho certo, tenta acompanhá-la nos seus interesses, mas nada resulta. A situação agrava-se quando Elena arranja um 'namorado' francês, um modelo perfeito e balofo de príncipe encantado. A narradora esforça-se por separá-los e, eventualmente, consegue. No entanto, Elena continua a não estar interessada nela. 
Daqui, rapidamente se gera um jogo de poder perfeitamente cruel, em que a submissão e a humilhação cada vez mais se tornam evidentes.
Amélie Nothomb mostra-se perfeitamente capaz de criar esse jogo doentio sem que ele pareça inusitado para duas crianças. O exercício da crueldade é claro, mas está presente nas situações mais vulgares entre crianças, o que confere ao romance uma tonalidade um tanto sarcástica e negra, que chega mesmo a ser assustadora. 'Le Sabotage Amoureux' coloca-nos perante um facto bastante evidente, a favor do qual argumenta de forma muito eficaz: que a inocência é uma falta de consciência sobre o mal, e não a ausência desse mal. Num derradeiro acto de desespero, a narradora diz a Elena que fará tudo o que ela quiser para lhe provar o seu amor. Elena exige-lhe que corra vinte vezes o recreio da escola. Mesmo sabendo que a sua 'vítima' é asmática, exige-lho repetidamente. Quando se aproxima das oitenta voltas ao recreio, a narradora desmaia. Daqui para a frente, o jogo sofre alterações. A partir de um conselho da mãe, a narradora passa a tratar Elena com indiferença. Perdendo de repente o objecto sobre o qual recaem os maus-tratos, Elena começa a interessar-se pela narradora. Evidentemente, no momento em que a narradora volta a ceder, Elena volta a rejeitá-la. E é entre a rejeição, o controlo e o poder que se nasce a crueldade, assunto verdadeiramente central neste romance.


Será ainda bastante irónico que todos os dias a narradora trave uma guerra com os seus amigos, guerra em que uma boa estratégia garante um bom resultado e em que todas as dificuldades poderão ser vencidas; enquanto o simples enamoramento infantil se apresenta, na mesma personagem, como um caminho sem saída. A narradora encontra-se perante uma figura narcisista, que apenas abdica da sua posição de superioridade quando se sente menos adorada. Uma história assim tem muita mais força quando se passa entre crianças. Se com D.H. Lawrence aprendemos que há em quem se submete um poder equiparável ao daquele que domina (Veja-se 'O Oficial Prussiano'.), a verdade é que no romance de Nothomb isso nunca poderia acontecer, porque uma criança de sete anos não tem consciência das potencialidades do seu papel de submissão. E assim a crueldade se torna unilateral e, portanto, mais intensa.
A restante dimensão, política, do romance, surge-nos também com um fulgor interessante, pois, como se disse, mascaradas sobre um imaginário infantil, há uma série de concepções que começam a desenhar-se e que, ainda que passem um pouco para segundo plano na trama da história, não deixam de ter a sua importância e também de exercer sobre o leitor um certo efeito de fascínio.
Mais ainda, 'Le Sabotage Amoureux' mostra-nos ainda qual a natureza verdadeira do universo de Nothomb, que é o do confronto. Tal como no seu primeiro romance (Falo apenas desse, pois este é o segundo.), há, acima de tudo, um confronto entre duas pessoas, em que a resolução significará, provavelmente, a perdição de um, mas não necessariamente a salvação do outro. Nesse jogo, em que não chega a existir propriamente um vencedor, em termos de ideologia ou ética, se situa a narrativa deste livro, que nos assusta, nos diverte e nos entristece, incluindo-nos a nós mesmos, enquanto leitores, no jogo.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Beguinage de Valenciennes

Beguinage de Valenciennes (França)

Begijnhof de Turnhout

Begijnhof de Turnhout (Província de Antuérpia, Flandres, Bélgica) em 1930

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sarah McLachlan: Fallen


Letra de Sarah McLachlan
Do álbum 'Afterglow' (2004)

(...)
But we carry on our back the burden
Time always reveals
In the lonely light of morning,
In the wound that yould not heal
It's bitter taste of losin' everything that I've held
So dear I'm

Fallen, I have
Sunk so low, I messed up,
Better I should know
So don't come 'round here
Tell me «I told you so»
(...)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Placebo: Blind



Letra de Brian Molko, Stephan Olsdal e Steve Hewitt
Do álbum 'Meds' (2005)

(...)

If I could tear you from the ceiling
I’d freeze us both in time
And find a brand new way of seeing
Your eyes forever glued to mine.
(...)

[The devil also offers his spirit]


The devil also offers his spirit
To those who in hatred and proud desire
Are ready for the worst.
Such know not that love leads to all good,
They become poor from hatred
And the fury of the devil,
So that it becomes impossible
They should ever again find or follow
The love of God.
True love praises God constantly;
Longing love gives the pure heart sweet sorrow;
Seeking love belongs to itself alone;
Understanding love loves all in common;
Enlightening love is mingled and sadness;
Selfless love bears fruit without effort;
It functions so quietly
That the body knows nothing of it.
Clear love is still, in God alone,
Seeing that both have one will
And there is no creature so noble
That it can hinder them.
     This is written by Knowledge
Out of the everlasting book.
Gold is often heavily flecked by copper,
Just as falseness and vain honor
Blot out virtue from the human soul.
The ignoble soul to whom passing things are so dear
That it never trembled before Love
Never heard God speak lovingly in it --
Alas! to such this life is darkness!



Mechtild von Magdebourg
trad. Lucy Menzies
in 'German Mystical Writings: Hildgard von Bingen, Meister Eckhart, Jacob Boehme and others'
1991, ed. Continuum
pintura de Marianne von Werefkin


Nous Deux Encore (fragmentos)


Air du feu, tu n’as pas su jouer. Tu as jeté sur ma maison une toile noire. Qu’est-ce que cet opaque partout? C’est l’opaque qui a bouché mon ciel. Qu’est-ce que ce silence partout? C’est le silence qui a fait taire mon chant. 
***
L’espoir, il m’eût suffi d’un ruisselet. Mais tu as tout pris. Le son qui vibre m’a été retiré. 
***
Tu n’as pas su jouer. Tu as attrapé les cordes. Mais tu n’as pas su jouer. Tu as tout bousillé tout de suite. Tu as cassé le violon. Tu as jeté une flamme sur la peau de soie. Pour faire un affreux marais de sang.

Henri Michaux
Nous Deux Encore
1948
desenho de João Alves

Carrie Underwood: Blown Away


Letra de Chris Tompkins e Josh Kear
Do álbum 'Blown Away' (2012)

(...)
Shatter every window 'till it's all blown away
Every brick, every board, every slammin' door blown away,
Till there's nothing left standing, nothing left of yesterday
(...)

Lo Que Queda Después de los Violines



Lo que queda después de los violines
XAVIER ABRIL

Cuando te olvides de mi nombre,
cuando mi cuerpo sea sólo una sombra
borrándose entre las húmedas paredes de aquel cuarto.
Cuando ya no te llegue el eco de mi voz
ni el resonar cordial de mis palabras,
entonces, te pido que recuerdes que una tarde,
unas horas, fuimos juntos felices y fue hermoso vivir.
Era un domingo en Hampstead, con la frágil primavera
de abril posada sobre los brotes de los castaños.
Pasaban hacia la iglesia apresuradas monjas
irlandesas, niños, endomingados y torpes, de la mano.
Arriba, tras los setos, en la verde penumbra
del parque dos hombres lentamente se besaban.
Tú llegaste, sin que me diera cuenta apareciste y empezamos a hablar
tropezando de risa en las palabras, titubeantes
en el extraño idioma que ni a ti ni a mi pertenecía.
Después te hiciste pequeña entre mis brazos
y la hierba acogió tu oscura cabellera.
A veces las cosas son simples y sencillas
como mirar el mar una tarde en la infancia.
Luego la escalera gris, larga y estrecha,
la alfombra con ceniza y con grasa,
tus pequeños pechos desolados en mi boca.
Sí, a veces es sencillo y es hermoso vivir,
quiero que lo recuerdes, que no olvides
el pasar de aquellas horas, su esperanzado resplandor.
Yo también, lejos de ti, cuando perdida en la memoria
esté la sed de tu sonrisa me acordaré, igual que ahora,
mientras escribo estas palabras para todos aquellos
que un momento, sin promesas ni dádivas, limpiamente se entregan.
Desconociendo razas o razones se funden
en un único cuerpo más dichoso
y luego, calmado ya el instinto
y rezumante de estrenada ternura el corazón,
se separan y cumplen su destino,
sabiendo que quizá sólo por eso
su existir no fue en vano.



Juan Luis Panero
Poemas
2005, ed. Relógio d'Água
pintura de Graça Martins

Kate Walsh: It's Never Over


Letra de Kate Walsh
Do álbum 'Clocktower Park' (2003)

(...)
But a memory of distant diesel nights
You put a crown in my head
But I'm wishin' you never had
'Cause now I have less than I ever had
(...)

Poe-Mas-Com-Sentidos 11


como que se constrói a solidão
altissonante e invisível
nos descaminhos da inconsciência
se tranquilo te afogas no sono
não sendo ainda palpável a madrugada
indo a cidade a meio da noite
vazar seus contornos de lixo
seus estertores de vasa e lodo
a cada esquina em cada descampado
_e cedo um círculo isolúvel de luz
persiste horas adentro
nesta mesma folha de insónia
que tão pérfida se faz silêncio

ah! hão-de os meus braços tolher
a vibração dum grito amanhã todos os dias.

Wanda Ramos
Poe-Mas-Com-Sentidos
1986, ed. Ulmeiro
pintura de Paul Klee

sábado, 22 de dezembro de 2012

It's Allright, Ma...


Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.



Manuel António Pina
Cuidados Intensivos
1994, ed. Afrontamento
fotografia de Slava Mogutin

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Amália: Grito



Letra de Amália Rodrigues
Do álbum 'Lágrima' (1983)

The Prince's Progress (fragmento)


Till all sweet gums and juices flow, 
Till the blossom of blossoms blow, 
The long hours go and come and go, 
 The bride she sleepeth, waketh, sleepeth, 
Waiting for one whose coming is slow
:— Hark! the bride weepeth. 

'How long shall I wait, come heat come rime?'
— 'Till the strong Prince comes, who must come in time' 
(Her women say), 'there's a mountain to climb, 
 A river to ford. Sleep, dream and sleep; 
Sleep' (they say): 'we've muffled the chime, 
 Better dream than weep.' 

In his world-end palace the strong Prince sat, 
Taking his ease on cushion and mat, 
Close at hand lay his staff and his hat.
'When wilt thou start? the bride waits, 
O youth.'— 'Now the moon's at full; I tarried for that, 
Now I start in truth. 

'But tell me first, true voice of my doom, 
Of my veiled bride in her maiden bloom; 
Keeps she watch through glare and through gloom, 
 Watch for me asleep and awake?'
— 'Spell-bound she watches in one white room, 
 And is patient for thy sake. 

'By her head lilies and rosebuds grow; 
The lilies droop, will the rosebuds blow? 
The silver slim lilies hang the head low; 
 Their stream is scanty, their sunshine rare: 
Let the sun blaze out, and let the stream flow, 
 They will blossom and wax fair. 

'Red and white poppies grow at her feet, 
The blood-red wait for sweet summer heat, 
Wrapped in bud-coats hairy and neat; 
 But the white buds swell, one day they will burst, 
Will open their death-cups drowsy and sweet
— Which will open the first?' 

Then a hundred sad voices lifted a wail, 
And a hundred glad voices piped on the gale: 
'Time is short, life is short,' they took up the tale: 
 'Life is sweet, love is sweet, use to-day while you may; 
Love is sweet, and to-morrow may fail; 
 Love is sweet, use to-day.'

Christina Rossetti
The Prince's Progress and Other Poems
1866, ed. McMillan
gravura de Dante Gabriel Rossetti
(feita para a 1ª edição deste livro)

[podes levar os dias que trouxeste]


podes levar os dias que trouxeste

os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue

podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois

daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido

não    é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites

as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca

podes levar os dias que trouxeste

Pedro Sena-Lino
Zona de Perda/ Livro de Albas
2006, ed. Objecto Cardíaco
imagem de David Penprase

[Anoitece em inferno a minha casa.]


Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.

Helga Moreira
Os Dias Todos Assim
1996, ed. &etc
pintura de Luis Caballero

Annie Lennox: The Saddest Song I've Got



Letra de Annie Lennox.
Do álbum 'Bare' (2003)

Darling are you feeling
The same thing that I'm seeing
The troubles of the day
Took my breath away
Took my breath away
Now you're no longer talking
And I'm no longer hearing
There's nothing left to say
Said it anyway
Said it anyway
And I want you not
I need you not
I'm dying
Cos this is the saddest song I've got
The saddest song I've got
Darling are you healing
From all the scars appearing
Don't it hurt a lot
Don't know how it stops
Don't know how it stops
Now there's no sense in seeing
The colours of the morning
Can't hold the clouds at bay
Chase them all away
Chase them all away
And I'm frozen still
Unspoken still
Heartbroken
Remembering something I forgot
Something I forgot

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Calor de Agosto


O excesso
que de ti acumulo, como se o mundo fosse apenas caos
mal, catástrofe, leva-me a questionar que sentido
tem, nele, o caldo cultura
onde esvoaçam as borboletas
de Nabokov.
O da fusão do negro
fogo?
Outubro. Outubro.
Calcinado.
De vermes contaminando as flores que, no deserto,
crescem bíblicas
e ásperas.
Quantas vezes me fizeste morrer de incêndio
e susto: do colapso
aguardado?
Colapso. Colapso.
Foi o que provocaste.
Constrição.
Vulnerabilidade.
Mas olha as térmitas que se alimentam da noite
e diz-me, animal predador, o que é o perigo? Que perigo corro,
e porque corro para o perigo de te ler em escuras,
em viscosas águas,
onde tudo acontece terminal: uma osga,
uma carraça,
e na loucura que contamina o calor raivoso
deste Outubro.
Ossos de ouvido, tragam-me de novo
os dias curtos e felizes da chuva _os dias quer da razão
quer do real.

Eduarda Chiote
O Meu Lugar à Mesa
2006, ed. Quasi
pintura de Francis Bacon

Ainda a Tua Partida


Deixaste-me a boca cheia
de lágrimas, como se
o choro sufocasse.
Devastado, o rosto
ainda não conseguiu
erguer-se da lama.
Como pudeste fazer tanto
mal?

A vida, por vezes,
é uma imitação grosseira
se si própria e castiga-nos
assim, sem beleza.

Parece que a cidade
está deserta. Há sombras,
cintilações de lixo.
Procuro nos poetas
algum alívio
para esta mágoa.
Os livros são seguros,
fiéis ao nosso olhar.

Isabel de Sá
Erosão de Sentimentos
1997, ed. Caminho
pintura de Paul Gauguin

Mumford and Sons: Broken Crown



Letra de Marcus Mumford
Do álbum ''Babel'' (2012)

Fragmentos de ''Solidão''




Tantas lágrimas no chão, que ninguém enxuga! Tantas!
Quem as chorou? Fui eu, sim, fui eu...
Dói-me o coração. Sinto nele uma opressão, uma amargura solta e grande, sem fim, só de olhar para este chão molhado.
São as minhas lágrimas... Eu chorei, estou-o vendo. O meu coração chora sempre, sempre, dentro de mim, até inconscientemente!
Esta vista do chão líquido, com as luzes fixas nele magoa-me. E desperta-me. Fala-me. Quem chorou? Quem podia ter chorado, senão eu? Ninguém tinha a minha fonte de lágrimas em si!
A este chão tão húmido há-de haver quem chame espelho, lago e rio... Quem lhe dê bonitos nomes. E lhe ligue ideias festivas. Eu só lhe chamo chão molhado. Molhado de lágrimas! Chão sombrio, não de luz.

[...]

Flutuamos sempre ao sabor das boas e das más impressões...
A minha doce impressão desta tarde! Um desejo quase sem fundo, inaplicado, de bondade e de ternura.
Pego nesta revista francesa, sem a mínima vontade de a ler. Olho-a e sinto um instintivo recuo, um choque. Inveja... Apesar de me sentir apaziguado. Inveja de quê? De tudo o que eu julgo ter sido dado aos outros! Do que nunca ninguém me concedeu ou me permitiu; a agitação, a posse, a vida... Tudo. Muitíssima coisa!
Existência monótona, monótona... Cai-lhe hoje em cima a doçura de uma tarde destas. Mas nunca a perfeita paz.

Irene Lisboa
Solidão
1936, ed. Seara Nova
pintura de Giulio Aristide Sartorio