O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA
Já aqui falei da escritora belga Amélie Nothomb, que desde a publicação do seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin', em 1992, tem conquistado um lugar especial nas letras francófonas, com vários prémios e com o título de mais importante jovem autora francófona. Nothomb é uma espécie de fenómeno de escrita e não só. Cultivada uma imagem de certa estranheza, a obra tem sabido não ficar àquem. Partindo muitas vezes de referências autobiográficas, as obras de Amélie Nothomb sabem expandir-se para uma série de universos mais vastos e mais densos, o que de certa forma explica a aderência de que a sua obra tem gozado.
Nascida em Kobe (Japão), filha de diplomatas belgas, Nothomb passa a residir em Bruxelas aos 18 anos e os seus livros não raro se debruçam sobre a infância passada sempre em vários países. É o caso do seu segundo romance, este 'Le Sabotage Amoureux' (Ao contrário do primeiro, não se encontra traduzido para português.), que se centra nos anos em que Amélie viveu em Pequim, vinda do Japão, entre os cinco e os oito anos. Situado no início dos anos 70, o romance começa por narrar-nos uma guerra invulgar. Trata-se da guerra travada pelas crianças do bairro de San Li Tun, crianças de várias nacionalidades, sendo que todas se unem para combater as da Alemanha de Leste, representação simbólica dos mitos sobre comunismo. Chegada do Japão, a narradora pensa que o que define um país comunista é a existência de ventiladores, essas flores metálicas que não existiam no país onde nascera. As batalhas diárias são descritas num tom absolutamente desarmante, uma vez que a visão adulta da escritora se funde na visão simuladamente infantil e assim, de uma narrativa que se traça a partir do imaginário de uma criança (Com bicicletas que são cavalos, por exemplo.) é posta em causa uma estruturação política, e também uma estruturação educativa, enquanto preparação para a idade adulta e a consciência politizada.
No entanto, o cerne de 'Le Sabotage Amoureux' é uma história de amor. A vida no bairro de San Li Tun altera-se com a chegada de dois irmãos italianos. A narradora rapidamente se apaixona por Elena, uma rapariga bela que não adere à brincadeira da guerra, e cuja frieza exerce a maior das fascinações sobre a jovem narradora.
Desse dia em diante, a grande preocupação da narradora é seduzir a recém-chegada. Inicialmente, tenta cativá-la para o jogo da guerra. Percebendo que essa abordagem não é o caminho certo, tenta acompanhá-la nos seus interesses, mas nada resulta. A situação agrava-se quando Elena arranja um 'namorado' francês, um modelo perfeito e balofo de príncipe encantado. A narradora esforça-se por separá-los e, eventualmente, consegue. No entanto, Elena continua a não estar interessada nela.
Daqui, rapidamente se gera um jogo de poder perfeitamente cruel, em que a submissão e a humilhação cada vez mais se tornam evidentes.
Amélie Nothomb mostra-se perfeitamente capaz de criar esse jogo doentio sem que ele pareça inusitado para duas crianças. O exercício da crueldade é claro, mas está presente nas situações mais vulgares entre crianças, o que confere ao romance uma tonalidade um tanto sarcástica e negra, que chega mesmo a ser assustadora. 'Le Sabotage Amoureux' coloca-nos perante um facto bastante evidente, a favor do qual argumenta de forma muito eficaz: que a inocência é uma falta de consciência sobre o mal, e não a ausência desse mal. Num derradeiro acto de desespero, a narradora diz a Elena que fará tudo o que ela quiser para lhe provar o seu amor. Elena exige-lhe que corra vinte vezes o recreio da escola. Mesmo sabendo que a sua 'vítima' é asmática, exige-lho repetidamente. Quando se aproxima das oitenta voltas ao recreio, a narradora desmaia. Daqui para a frente, o jogo sofre alterações. A partir de um conselho da mãe, a narradora passa a tratar Elena com indiferença. Perdendo de repente o objecto sobre o qual recaem os maus-tratos, Elena começa a interessar-se pela narradora. Evidentemente, no momento em que a narradora volta a ceder, Elena volta a rejeitá-la. E é entre a rejeição, o controlo e o poder que se nasce a crueldade, assunto verdadeiramente central neste romance.
Será ainda bastante irónico que todos os dias a narradora trave uma guerra com os seus amigos, guerra em que uma boa estratégia garante um bom resultado e em que todas as dificuldades poderão ser vencidas; enquanto o simples enamoramento infantil se apresenta, na mesma personagem, como um caminho sem saída. A narradora encontra-se perante uma figura narcisista, que apenas abdica da sua posição de superioridade quando se sente menos adorada. Uma história assim tem muita mais força quando se passa entre crianças. Se com D.H. Lawrence aprendemos que há em quem se submete um poder equiparável ao daquele que domina (Veja-se 'O Oficial Prussiano'.), a verdade é que no romance de Nothomb isso nunca poderia acontecer, porque uma criança de sete anos não tem consciência das potencialidades do seu papel de submissão. E assim a crueldade se torna unilateral e, portanto, mais intensa.
A restante dimensão, política, do romance, surge-nos também com um fulgor interessante, pois, como se disse, mascaradas sobre um imaginário infantil, há uma série de concepções que começam a desenhar-se e que, ainda que passem um pouco para segundo plano na trama da história, não deixam de ter a sua importância e também de exercer sobre o leitor um certo efeito de fascínio.
Mais ainda, 'Le Sabotage Amoureux' mostra-nos ainda qual a natureza verdadeira do universo de Nothomb, que é o do confronto. Tal como no seu primeiro romance (Falo apenas desse, pois este é o segundo.), há, acima de tudo, um confronto entre duas pessoas, em que a resolução significará, provavelmente, a perdição de um, mas não necessariamente a salvação do outro. Nesse jogo, em que não chega a existir propriamente um vencedor, em termos de ideologia ou ética, se situa a narrativa deste livro, que nos assusta, nos diverte e nos entristece, incluindo-nos a nós mesmos, enquanto leitores, no jogo.