terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Klangkarussel feat. Tom Cane: Netzwerk (Falls like rain)



(...)
I look up to the sky above
Full of sweet release
From the dreams that I chase
Trying to find some space
In a world that I don't believe

I won't run when the storm clouds come
I won't turn away
'Cause if your eye's on the ground
When the night comes down
You only see the stars when they fall like rain
(...)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Uma iniciativa necessária


Hélastre é o nome da produtora cultural que, desde o final dos anos 70, no Porto, reúne o trabalho de, não só mas principalmente, Regina Guimarães e Saguenail. Os dois têm um extenso trabalho em cinema e vídeo e também em literatura. Numa linha tão discreta que se torna quase clandestina, os trabalhos de Regina e Saguenail têm circulado para um público bastante menor do que lhes seria merecido. Há nessa atitude algo de incorruptível que deve ser elogiado. Quer nos filmes, quer nos livros, há uma completa ausência de cedências. Cada "objecto" produzido pela Hélastre é uma obra de arte do princípio ao fim. No caso dos livros (que foi como, para mim, isto começou), não são só os textos ou os desenhos que são produção artística. O objecto livro é também uma obra de arte, que se articula e se funde na própria natureza da escrita. Em nenhum momento o projecto deixa de ser arte e passa a ser objecto comercial, mesmo ao assumir um formato dito comercial. Há um preço a pagar por estas coisas, claro, nomeadamente uma certa invisibilidade num meio cultural muito arrogantemente elitista e incapaz de se movimentar fora dos parâmetros mais convencionais. Os nossos intelectuais prezam o "marginal", mas não demais: isto não é feitio, é mesmo defeito.
Pouco convencional é também a mais recente iniciativa de Regina Guimarães e Saguenail: a de disponibilizar na internet, integralmente e gratuitamente, as suas obras. A vasta bibliografia de ambos encontra-se já consultável e a filmografia estará completa em breve. No caso de Regina, é de assinalar o ressurgimento de duas peças improváveis: a sua secção na "Antologia de alunos do liceu António Nobre" e ainda o pequeno livro "Ritos de eterna posse", uma edição de autor de 1974, nunca referida nas bibliografias.
Mais do que pouco convencional, esta é uma iniciativa necessária (usando a expressão do arquitecto Keil do Amaral): necessária porque pode ser a forma ideal para que se divulguem e conheçam finalmente duas das obras mais ímpares e interessantes da cultura portuguesa recente. Além de livros e filmes, o site disponibiliza textos dramáticos e textos críticos.



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Incendiário


1

Deste-me um quarto um outono
que te darei em silêncio
ilha de fogo verão         em troca
dar-te-ei que incêndio
que sucesso que prazer que
força que solução que fome satisfaremos
que fogo para ti preparo
este verão
que outro local me darás
em silêncio este verão
que solidão preparamos que
local              este verão
preparo um quarto em silêncio
e a chama da solidão



2

Utiliza-me as pernas entretanto
pode ser posição anestesia
febre ou peste ou tumulto ou festa ou cinza
temperamento anestesia     tanto importa que

o verão me inutilize
me canse o fogo as pernas e avance
na areia a meu lado    tanto cansa
o verão como tu    tanto me cansa a cinza

tanto o quarto de fogo que me deste
tanta a esperança     utiliza-me ainda
este verão      apenas um incêndio

um beijo no verão  inutiliza
o corpo            pode ser
insucesso de fogo que utilizas



Gastão Cruz
A doença
in "Órgão de luzes/ Poesia reunida
1990, ed. Imprensa Nacional / Casa da Moeda
imagem: Michele del Campo

sábado, 6 de dezembro de 2014

A escrita como ignorância inquieta: conversa com Eduarda Chiote

Esta entrevista foi feita num café à Avenida João XXI, num domingo nem muito cinzento nem muito luminoso, na zona de fumadores, junto às vidraças de onde se vêem os edifícios Português Suave muito característicos daquela zona. Eduarda Chiote mexe as mãos sobre a mesa, explica-se melhor assim. Os olhos atentos, sérios e generosos, serenos. Fala pausadamente, e um pouco baixo, apesar do barulho dos talheres e dos pratos que vem do balcão, e do ruído das conversas das mesas à volta, onde almoços são servidos a todas as horas da tarde. Faz sentido que assim seja. Na poesia de Eduarda Chiote, o mundo nunca deixa de existir em volta da voz que tenta dar-lhe, ou mudar-lhe, o sentido. É assim desde o primeiro livro, «Esquemas», publicado em 1975, até ao mais recente, «Órgãos epistolares», saído há dois anos. É assim desde o primeiro livro, mas de formas diferentes. A poesia de Eduarda Chiote convoca – na linguagem e não só – os ecos de uma série de domínios literários e extra-literários, muito extra-literários, e as fascinações pela mente humana e pelo enigma indecifrável – ou comicamente indecifrável – do mundo ocupam o lugar central. É assim – mas, repita-se, de diferentes maneiras – em livros mais directamente emotivos como «Refúgio em vez de câmara mortuária» (1979), «Estilhaços» (1979), «Travelling» (1983), «Não me morras» (2000) ou «A celebração do pó» (2002), mas também noutros mais analíticos como «Altas voam pombas» (1938), «A preços de ocasião» (1987) ou nos contos de «A décima terceira ilha» (1983) e «Não é preciso gritar» (2008). No centro de uma obra complexa e, a alguns títulos, irregular, encontramos uma espécie de tríptico magnífico, informalmente formado por «Branca Morte» (1994), «O meu lugar à mesa» (2006) e «Órgãos epistolares» (2012). O conjunto de poemas mais recente, publicado nas páginas da revista DiVersos, «Fiat Lux», parece dar continuidade a este tríptico. E é um pretexto tão bom quando outro qualquer para conversar com Eduarda Chiote, sobre os seus livros, e sobre a vida e os outros livros, que estão em volta desses (seus) livros.

Entrevista: João Cunha Borges. Fotografias: Rui Fernandes e Patrícia Almeida.


Gostaria que começássemos numa frase da Eduarda, que me parece funcionar bem como uma introdução a uma conversa sobre a sua obra: «Devo toda a clareza e tudo o que escrevo à escrita/ dos outros».
Quando eu digo que devo tudo à escrita dos outros, digo que nasci com graça de atenção. De estar atenta às perguntas dos outros e que os outros me transmitem. É uma graça! Podia ter nascido com outra, mas é esta que tenho. E portanto não é só aquela expressão gráfica que eu posso ler nos livros, é aquilo que eles me transmitem, na maneira de ser, nos comportamentos, nas atitudes, etc. Não quero ser redutora ao ler os livros dos outros. Porque os livros dos outros são meus, não é? A partir do momento em que a pessoa os publica, deixaram de ser dela, são dos outros... No fundo, o que eu quero dizer é: estar atenta ao outro, estar atenta ao universo do outro, é estar atenta à maneira como ele se inscreve em mim. Depois a partir daí, eu vou elaborando todo um conjunto de pensamentos, de reflexões, de sensações que me servem para eu chegar a determinadas conclusões. E vocês perguntam-me pelo patamar da escrita, onde as coisas ficam registadas – que não é só literária, é científica, é psicológica, é emocional, tem muitas vertentes. Nesse aspecto, eu fico é atenta às sobreposições da escrita... Se uma escrita é lindíssima, duma panorâmica enorme, e um outro vem dizer-me: “Olha, deste aqui um erro!” Isto pode ser um erro ortográfico, pode ser um erro científico, como por exemplo Einstein, que viu muito bem que errou, e depois nasce a quântica. Estou também atenta ao erro! O que eu acho, no fundo, é que eu estou atenta. Tão atenta ao outro que eu entendo que posso errar, que a minha identidade se perdeu e depois disto pode sair alguma coisa para ela se materializar, para não se dissolver. Nestes campos todos – possivelmente não há só o campo da física, há outros campos também, o campo da imaginação, da sensação – eu vou-me agarrar se calhar a uma coisa que eu não tenho, por exemplo, a identidade. Se calhar eu não tenho isso, não sei se as pessoas têm. Tenho um comportamento: é a Eduarda, e tenho uma figura: é a Eduarda. Mas esta minha figura pode-se alterar e não deixo de ser a Eduarda, posso ter outro comportamento, ser outra. E então para ter um registo, uma ressalva muito forte que me permita construir um eu, eu vou escrevendo, vou fazendo umas letrinhas. Neste aspecto, a escrita dos outros é um bocadinho mais global, um pouco mais amplificante. Não tem que ser um livro, às vezes é uma conversa, é um registo, por exemplo: tu falas-me de arquitectura, e hoje estive a ver umas coisas que até não têm muito que ver com isso, mas com um registo arquitectónico das grandes civilizações, Mesopotâmia, etc, aquelas construções fabulosas feitas 12000 anos antes de Cristo... aquilo é uma escrita e quando eu quero ler, como não sou de arquitectura, vou a quem é, e digo: Olha, podes-me explicar? Eu não tenho preparação para isso. Tenho se calhar um excesso de informação caótica que não me permite uma síntese razoável, portanto tiro o que posso da leitura, com o registo de algumas perguntas. Nesse sentido eu digo que é algo distinto do livro em si, aquilo que o livro vai dizer. Nessa frase... eu referia-me à poesia dos outros não era?


Parece-me que sim...
Então menti... sem querer... Porque eu não conheço muita poesia dos outros, conheço alguma, mas... quer dizer, isso da poesia eu também não sei o que é. Porque a poesia dos outros... a “Ilíada” e a “Odisseia” são grandes poemas. Lucrécio escreveu grandes poemas. Mas o que é? Às vezes não encontro a poesia, porque a poesia é o que me desperta a sensibilidade, o interesse, a curiosidade, a evasão de um proto-quotidiano em que a gente se move para sobreviver. É o que me distingue de uma situação prosaica. Ao passo que a prosa me traz para esta vida cujos limites são bastante concretos e aprisonados dentro de todos os seus dramas, a poesia salva-me. Mas a poesia em tudo, não é só na literatura! A poesia está numa equação, numa linha, num olhar. Está numa maneira de ser, está numa atitude expectante da parte daquele que recebe uma palavra no meio de uma situação. É muito complicado, nós temos de compreender, e por isso fazemos divisões, mas no fundo se calhar não é bem assim e está tudo muito ligado.


Penso que de certa forma a Eduarda já começou a falar disso, mas parece-me interessante falar da sua formação, que vai das histórico-filosóficas à psicologia. E publica o primeiro livro, os «Esquemas» apenas em 1975. Esta formação e a experiência intelectual que ela tenha proporcionado, têm uma influência muito forte logo neste primeiro livro.
Influenciou porque... eu acho uma coisa: nós somos ocidentais, e portanto temos a noção de que à filosofia pertencem as grandes questões. Quem sou? Para onde vou? Por que estou aqui?... são perguntas que vêem mais tarde, porque há a noção, na juventude, de que somos eternos. E parece que essas questões pertencem à filosofia. Mas não pertencem, não. Isso é convenção muito mecanizada. Pertencem a tudo! Pertencem à física, pertencem à matemática... Nós estamos sempre a colocar essas questões, muitas vezes sem entrar no domínio da filosofia que se apoderou delas, e muito bem até, para poder fazer viver os filósofos que eu acho que são precisos ainda hoje. Mas essas questões também pertencem à física, à psicologia, à antropologia, pertencem a tudo. Eu acho que a filosofia só serve para dizer que nós não temos respostas. É uma forma de construir um sistema, de constituir um motivo de alarme contínuo: Por que é que eu sei tão pouco? Mas há um problema: toda a preparação filosófica que, mal ou bem, está cá, e que se interliga com a física, serve para chamar a atenção para todos os outros processos. Eu chamo à física “a arte de ser ociosamente”, a filosofia é “a arte de ser ociosamente curioso”: nós não resolvemos nada, mas temos a capacidade de raciocinar, que não faz mal ninguém, pode não fazer bem, mas não faz mal. E esse conteúdo filosófico, eu acho que modesto, muito modesto, serve-me como plataforma de admiração pelo deslumbramento daquilo que é a mente, daquilo que a mente consegue, daquilo que a mente não alcança. Para mim, a filosofia é a situação do filósofo angustiado por não conseguir uma resposta.


Precisamente nos «Esquemas», são frequentes as interpelações, mais directas ou menos, a figuras como Pitágoras, Sigmund Freud, Claude Lévi-Strauss e Jacques Lacan, entre muitos outros. A escrita da Eduarda alimenta-se de facto da antropologia, da psicologia, da filosofia e do cinema, eventualmente mais do que da poesia...
É o seguinte... eu estava a trabalhar numa coisa muito concreta, que era na psicotecnia, encaminhar as pessoas, enfim, para as profissões que lhe eram mais adequadas. Isso leva muito tempo, eu não tinha tempo para mim, para dispor de mim. Tinha que trabalhar e depois quando chegava a casa a leitura era a minha preocupação. Mas a minha preparação, se queres dizer assim, não era, nem é, na poesia. Eu interessava-me muito mais pelo campo das ciências, da matemática, por antropologia, por genética, pelas neurociências. Ora, quem se interessa por tudo, nada sabe. O que quer dizer que eu sou efectivamente um filósofo por natureza. Porque a filosofia é o constatar que não se sabe nada de nada. Só sei que nada sei - isto é central. Mas esta curiosidade por outras coisas que não a literatura e que às vezes irritava muito – e irrita – as pessoas que só entendem de literatura, vem de eu ter despertado para aquilo que se chama literatura muito tarde. Eu queria escrever. Eu queria escrever... mas não sabia o que era. Queria dar corpo àquilo, mas não sabia muito bem o que era. Eu pensava assim: Um dia, quando sair daqui, deste trabalho que agora estou a fazer, ou vou ter filhos, ou vou escrever. Mas depois de descobrir uma certa inépcia para a maternidade, resolvi encaminhar-me para outro lado. E digo-te: eu conhecia muito pouco de literatura, conhecia aquelas coisas que as pessoas conhecem, que tem quem vem de qualquer casa burguesa. Então não era do campo da literatura. E se calhar ainda não sou, embora esteja sempre a ler. Mas o que é que eu considero literatura? Aí é que está: tudo. Tudo, porque para mim é tudo uma ficção sobre uma ficção sobre uma ficção. Hoje, sou uma grande leitora de física quântica, o que quer dizer que não sei física nem quântica, não percebo nada disso. E eu posso estar a ler um livro, e não é literatura. Mas eu estou noutro campo, estou a fazer literatura. Há uma teoria, pode ser de física por exemplo, imediatamente o misticismo se apodera dela, imediatamente outra teoria se articula. O que se está a fazer é literatura, porque aquilo não tem nada a ver, são sistemas de equações de física, e todo o mundo constrói literatura em volta daquilo, uma ficção. Eu pergunto-vos: há alguma coisa que não seja ficção? O que é que nós estamos a fazer? Temos um livro, temos ideias, temos curiosidade. E é preciso um cânone: mas não tanto! É importante convocar o cânone certo, mas não tanto, porque às vezes provoca um certo enquilosamento. Pronto, às vezes temos que dizer: Isto é um coelho, isto é uma galinha, isto é arquitectura, isto não é pintura, isto não é literatura. Mas, na verdade, nos tempos de hoje, já não é necessariamente assim. Portanto, quando eu leio, e quando eu escrevo assim, não é uma escrita burra, como eu me atrevo a dizer. Eu li há muito pouco o “Mein Kampf” do Hitler e achei aquilo uma borrada... o tipo escreve mal que se farta, aquilo não é nada, aquilo é piroso! Mas quando algo é escrito com cuidado, com atenção, com delicadeza... então são peças de literatura... quando um grande ensaio sobre seja lá o que for, me aparece escrito com grande sensibilidade, não é literatura? Então é o quê? Vamos chamar literatura a quê? Fazer rimas? Fazer uma cantiga de amor? No século XXI? Não sei...


É curioso falar nessas distinções, porque, se nos «Esquemas» já havia uma preocupação com uma coerência entre os poemas, isso torna-se mais manifesto a partir dos «Estilhaços». Essa coerência forma uma espécie de narrativa. Até que ponto é importante esta narrativa?
Sou muito analítica... infelizmente... embora eu não saiba muito bem o que significam estas palavras. Eu sempre disse que uso mal as palavras, que mal há nisso? Eu sou muito analítica, e às vezes o facto de ser tão analítica obriga-me a uma síntese sólida, que oriente o pensamento para ele não ser tão discursivo, para ele ter algum sentido para mim.

Ainda em 1979, publicou uma plaquette chamada «Refúgio em vez de câmara mortuária», uma pequena sequência de poemas...
Esse livro vem de um período de... toda a gente tem uma vida de perdas emocionais, de colapsos, de coisas terríveis. E esse livro tem aliás um título, «Refúgio em vez de câmara mortuária», que é muito bonito. Não é meu, veio de uma frase que me disse o Arnaldo Saraiva, nessa altura em que houve um grande colapso na minha vida, um terramoto, um sismo, em que eu pensei Já morri!... Toda a gente morre muitas vezes. [Pergunta a P.A.] Acreditas na reencarnação? Eu também! Naquela altura pensei Já morri! Já não há nada! Estava absolutamente, como se diz, na merda. Então escrevi ao Arnaldo Saraiva que estava, salvo erro, na Califórnia. E o Arnaldo Saraiva, meu amigo, que é uma amizade daquelas que nunca passa, escreveu-me isto: “Olha mulher!” ele gosta muito da palavra mu-lher, e é isso que eu sou, mu-lher, e gosto muito da palavra mulher... “Olha mulher! Refúgio em vez de câmara mortuária!” E aquilo ficou-me na cabeça. E surgiu toda aquela nossa problemática da infância, associada à morte. Então tive necessidade de rever toda uma infância, e aí veio toda uma série de lutos, de figuras mitológicas, o Ajax, Telémaco... e escrevi esse livro, que começa, salvo o erro com “Acreditas na teoria do movimento imóvel?” No fundo, um vezes um é igual a um, tudo se repete, debaixo destas coisas cíclicas, destas coisas que se repetem, há qualquer coisa que permanece, seja da angústia, do amor, da morte...


Sim, nesse livro a Eduarda fala da “teoria do movimento imóvel” e no «Travelling» de “um poeta afogado num charco”, uma ideia que reaparece em «A Décima Terceira Ilha», e ambas em «Branca Morte». É outra ideia de que gostava que falasse...
Pois, tudo isso vem de uma criança que diz “Mãe, a tua linguagem mata-me!”... Aquilo que eu quero dizer é que o desencontro entre o afecto filial e maternal às vezes é tão forte que leva o filho a chorar de outra maneira. Não és tu que me está a fazer mal, é o que nos afasta nos parâmetros em que nos movemos, as diferenças, as diferenças linguísticas, as outras. É uma situação em que sentimos que não podemos corresponder inteiramente à expectativa do outro, não podemos fornecer, não podemos dar. E não há culpa. Não há culpados, há feridos. Somos todos feridos. E quando uma criança diz “Mãe, a tua linguagem mata-me!”, trata-se de uma pessoa que sofre, que não se consegue integrar, e nessa altura morre com isso, eu morro com isso. Eu não tenho linguagem para dar ao outro para o outro me perceber. Não consigo, não sou o outro.


Em 1983, publicou um livro de contos, «A décima terceira ilha», que me parece muito próximo das prosas poéticas que encontrávamos em «Esquemas» e «Altas voam pombas». Para si, este livro de contos responde a uma necessidade de escrever ficção, ou resolve uma necessidade de experimentar o poema em prosa que não é muito recorrente no resto da sua obra?
Eu nem me lembro muito bem desse livro. Eu acho que quando escrevo em prosa, uso a metodologia da poesia, uma linguagem sincopada... daquilo que é a minha poesia, não é poesia. Não é poesia, bem se afasta da poesia! Eu penso que eu não sou poeta, penso que tenho um estilo de escrita. Um estilo. Que se volta contra mim porque não me agrada ter aquele estilo, queria ter um estilo mais solto, menos... lúcido eu não gosto de dizer, mas... mas sou lúcida porque só quem percebe que de vez em quando enlouquece é que conhece surtos de lucidez, porque as pessoas que são loucas já não sabem. E eu tenho surtos de lucidez que me dizem que estive louca até aqui. É um surto de lucidez, e só é possível a quem, intermitentemente, tem momentos assim. E por vezes não consigo fazer estruturas tão pequeninas, sobretudo quando estou muito empenhada em... em perceber as pessoas, então preciso de uma dilatação, algo maior, e por isso escrevo uma coisa que... é um texto... não se é um conto, é um texto.


Mas que é mais fácil classificar como ficção, não para si eventualmente, mas para o editor, por exemplo.
O editor... fixou como ficção. Eu não sei se é. Não sei.


Ana Hatherly disse, sobre esse livro, que “é um texto violento porque nele a vida pouco colhe do sonho”. É esta a violência da vida? A sua distância ao sonho?
[Pausa] Eu não sei o que é sonhar... Eu sei o que é viver e sobreviver. Viver e sobreviver. Mas sonhar não sei, percebes? O que é sonhar um mundo melhor? Quando eu vejo... de que é feito um insecto, o cérebro de um insecto, a orientação de um insecto, o olfacto de um cão, o facto de haver um buraco para se enfiar uma toupeira na construção do mundo, eu posso imaginar um mundo melhor? Posso imaginar um mundo diferente, com outros modais, aquelas coisas que são da sociologia e da política, uma melhor distribuição de riqueza e tudo mais... mas eu posso imaginar um mundo melhor? Não... Eu não sei sonhar, não posso, eu não sei fazer isso.


Depois de, em 1987, editar «A preços de ocasião», não voltou a publicar até 1994. Este hiato teve alguma relação com a escrita poética, ou foi um acaso? Parece-me importante referir estes sete anos sem publicar, porque quando aparece «Branca Morte», aquilo que vimos a encontrar é diferente dos primeiros livros...
Olha, quem me dera perceber a que pertencem esses anos! Eu tenho agora um livro que me levou dois ou três anos a escrever, em que me empenhei mesmo fortemente, como raras vezes, completei-o, entreguei ao editor e subitamente o meu interesse passou. Sim, é como uma paixão, passou, acabou. Mas porquê? Eu não posso perceber. Nos intervalos, eu continuo a ler. Sempre! Sou uma leitora compulsiva, muito compulsiva. Sou muito atenta à escrita dos outros, ainda que não possa ler todos, porque é preciso muito tempo. Eu não sei o porquê desses anos. Mas também tenho tendência a esquecer o que é mau na minha vida. Não por uma questão de histerismo, mas como defesa. Se calhar aconteceram-me coisas que me magoaram tanto que eu não tenho memória delas. Não sei, não vale a pena estar a dizer que se passou isto aquilo. Passou-se alguma coisa, e eu nem dei por ela. Mas a vida também passou por mim e eu também não dei por ela. Sabes uma coisa? Eu respondo melhor: porque fui irresponsável!


Mas irresponsável em que sentido? Continuava a escrever e não se preocupava em publicar? Não se preocupou em escrever?
Eu nunca me preocupei em publicar. Quase sempre as pessoas pediam-me. Tive sorte, não é? Sorte, sorte, sorte! Foi o que foi. Só comecei a preocupar-me em publicar quando publiquei o «Não é preciso gritar». Até aí, de vez em quando, lá aparecia um amigo, Ó Eduarda, tem um poema que nos envie? Tive sorte. E agradeço. Porque há pessoas que querem publicar, que têm esse desejo e que merecem, e não têm a mesma sorte. Ah! Não te esqueças de dizer: eu não dou muita importância ao quotidiano das pessoas, mas há uma coisa: tenho muito respeito pelas pessoas que trabalham sinceramente, que acreditam no que estão a fazer, isso é muito bonito! E eu gosto! Não quer dizer que goste das pessoas, do comportamento das pessoas: não é isso. Gosto daquela excrescência que têm quando fazem essas coisas, gosto do que elas conseguem quando se superam! Quando se superam: não são super-homens, vão além do que podem. Saltam a palhinha! Havia um indivíduo em Trás-os-Montes, que não conseguia andar. Então, punham-lhe uma palhinha, uma coisa pequenina, no chão, e diziam, Salta a palhinha! E ele não podia, não conseguia mexer as pernas. Mas é possível saltar a palhinha. Isto é verdade.


E voltar a publicar, foi esse “saltar a palhinha”? É que eu acho que no livro de 1994, a «Branca Morte», a poesia da Eduarda chega a uma estabilidade mais definitiva...
Eu acho que até aí estive a aquecer. A partir daí, eu resolvi entrar mesmo nesta coisa da literatura. Comecei a ler muita poesia, a apercerber-me que havia coisas brilhantes! Eu sempre pensei que escrevia umas coisinhas. Se bem que não há coisa, parece-me a mim, que seja absolutamente só coisa, não há. Escrevia umas coisinhas, mas não ia mais além. Para escrever, para eu poder escrever – não são as pessoas, sou eu – eu necessito de saber efectivamente o que é a vida nos seus abismos, nos seus limites. Eu preciso de sofrer, eu preciso de ter a consciência nítida das perdas. Eu preciso de entender o valor das coisas, a essencialidade das coisas. Até aí, eu não sabia, eu vivia. E a determinada altura já não se tratava de viver só, tratava-se de querer viver para poder bem morrer. E era o que eu queria, era aprender a morrer. Aprender a viver, a gente dá um jeitinho e a vida ou lá o que é, empurra. Mas aprender a morrer é mais complicado, exige uma grande lucidez, exige uma grande postura, uma grande consideração pelo outro. E às vezes, se possível, alguma sinceridade. E às vezes, se possível, alguma – pouca, mas alguma – honestidade. E eu disse, Até aqui, estive a aquecer. Agora vou dar o salto!


Penso que era a Marguerite Duras que dizia que primeiro se tenta escrever e depois começa-se a escrever...
Acho que sim. É qualquer coisa que me aconteceu. Nessa altura, eu disse: Isto tem que dar uma grande volta! E eu tive essa consciência nítida, pela primeira vez, de que para escrever é preciso estar seguro, muito seguro. Não é fazer umas coisinhas, não, é outra coisa. É um confronto connosco, de onde não se sai vitorioso, mas sai-se satisfeito. Sai-se sereno. E eu disse: A partir de agora, eu comecei a escrever. Eu tinha estado a aquecer, a tabuada não se aprende toda de uma vez, nem a geografia... Andei a aquecer, e depois quando dei por mim estava a correr. E quando eu escrevi a «Branca Morte», eu sabia que o livro era bom. Pela primeira vez, eu disse: Isto é poesia, isto que eu fiz agora, é poesia. As outras coisas todas, experiências, cantigas de amor, são coisas que lemos atrás, nas tradições. Mas este livro só podia ter sido escrito por mim. Numa altura de uma grande maturidade e de uma grande irreversibilidade. Já não podia voltar para trás. Mesmo que eu quisesse! Eu estava definitivamente comprometida com aquilo a que podemos chamar literatura.


Nesse livro fixam-se, realmente com segurança, as relações mais problemáticas ou menos entre a infância, a sexualidade e a morte. E há uma frase que me parece central neste livro: “Faço da infância vocação”. O que é que na poesia da Eduarda muda quando faz da infância vocação?
O António Bracinha Vieira escreveu um livro fabuloso em que diz que só se é filósofo em criança. Depois, ou se perde a inocência ou se perdem os porquês... Eu acho que a infância é um sinal de frescura. É uma coisa irrepetível, depois há uma efervescência, é um sinal da maturidade – eu não sei o que é isso – mas dizemos, porque é assim. A infância é um reduto que não sabemos bem o que é. Não é aquela coisa de onde nasceu, onde morou... É uma coisa quase de Adão e Eva. É uma pureza de sentidos, ainda nada foi conspurcado, ainda não apareceu quem dissesse Come a maçã! Curiosamente, isso vai desaparecendo em nós. A gente faz qualquer coisa, que até nem é por mal, e dizem-nos Já não és nenhuma criança! E o que é que fazemos? Remetemos a criança para dentro de nós. E ela fica lá. Escondida, assustada. E eu fui buscá-la. Fui buscar essa criança muito escondida, muito assustada e trouxe-a.


Mas ao mesmo tempo, a criança na poesia da Eduarda não é a mais comum, de esperança ou inocência. Está mais próxima daquela concebida por Freud, o “perverso polimorfo”. É uma espécie de consciência inconsciente, antes de ser moldada ou reprimida pelo espírito civilizacional, que a Eduarda quisesse não civilizar, mas verbalizar.
É verbalizar. Nunca seria para civilizar. Acredito que só se é livre quando se é absolutamente irresponsável. Quando se vem com a responsabilidade, quando vem tudo sobre nós, ficamos em pânico! Porque fizémos tanto mal sem saber. Para mim as crianças são inocentemente maldosas, pronto. Irresponsáveis mesmo. São coisas terríveis...


E portanto, são livres...
São, então não são? Tu é que as repreendes, tu é que lhes bates na mão, tu é que fazes amputações terríveis. Mas elas são livres, nasceram para isso. Nós nascemos para ser livres, o resto são socializações. Senão que sentido tinha isto? Era uma maçada...


O tema da morte reaparece intensamente nos livros seguintes, e eu destacaria talvez «Não me morras» e principalmente «O meu lugar à mesa». O que me parece curioso nestes livros é que, que referindo-se à morte, parecem ser esforços por encontrar uma espécie de salvação pelo pensamento e pela ética. É possível falar de razão e de ética quando se lida com a morte?
Claro que é. Claro que é. Quando eu te disse há pouco que estava pouco interessada em aprender a viver porque a vida dava um empurrãozinho e nós íamos atrás, e quando te disse que aprender a morrer me interessava, a ética está aí, completamente. Eu aprendo a morrer. Porque, para mim a vida não tem sentido nela mesma. É uma coisa aleatória, é uma coisa que acontece. E o sentido, eu tenho que o dar. Sou eu que decido. Não posso decidir da dor, porque se não tiver dor, estou sempre anestesiada. Não posso decidir da consciência, porque não sou sujeita a uma anestesia contínua, porque a anestesia corta a consciência. Mas, se calhar, sou senhora da minha convicção de como quero morrer. E eu quero morrer como entendo que eticamente devo ser. É isso... para mim a morte é uma coisa fundamental. Fundamental. Porque tu podes dizer que as incertezas são probabilidades que não se podem reconhecer. Se calhar! Mas há uma constatação que é uma evidência: é a mortalidade. Somos seres mortais. Até os universos morrem, o sol morre – está velhíssimo – as estrelas morrem... há o colapso da morte até numa partícula! Eu tenho este espaço e eu só posso decidir como quero viver se eu entender como quero morrer. Para isso temos que despir-nos: confrontarmo-nos com as convicções, com os preconceitos, com os medos. É mais fácil às vezes agarrarmo-nos a uma certeza qualquer, um termo, e viver tranquilo. Mas quando uma pessoa decide perder todos os medos, atinge a solidão, sabes? E então confronta-se. Confronta-se com o sentido da vida. E ela própria tem que dar o sentido. Esse sentido pode ser imposto, eu não posso exercê-lo livremente, mas dentro de mim, eu posso ter um sentido. A morte, para mim, é de uma seriedade absoluta.


Mas «O meu lugar à mesa» começa com a morte de um amigo: “Não encontrei – e não há solidão maior! - com quem chorar/ A morte de um amigo”. A Eduarda falou de uma aprendizagem da morte própria, a que queria que voltássemos mais tarde, mas aqui é outra situação...
Sem teorizar, sem teorizar: eu vivo numa cultura. Quando eu penso que estou a dizer qualquer coisa que me pertence, não pertence, não, eu sei que não. Também, se nada me pertencesse eu era louca, mas não sou, total não sou. Tenho momentos de loucura, mas total não sou. Vivo numa cultura, e essa cultura ensinou-me a dor da perda, a dor da morte, ensinou-me o luto. Noutras culturas festeja-se, é diferente. Mas eu tenho esta cultura. E é uma cultura que eu experimentei. A perda, o luto, a morte... e eu acho que a perda é o sinal positivo do amor. Não é negativo: a perda é o sinal positivo do amor. Se calhar, isto pode parecer-te um paradoxo, mas tu entendes. A pessoa que tem um amor, e que nunca se sente aterrada por perder qualquer coisa, ela não ama! Ela não ama, vive num estado que eu não sei definir. Não é bem um estado massificado, mas não é amor. O amor é um sentimento que se constrói com muitas coisas, e uma delas é a perda. E eu acredito muito pouco nos sentimentos, porque acredito muito neles. E um sentimento autêntico é para mim uma corda ao pescoço, porque eu era capaz de dar a vida. Eu gosto de pessoas que têm sentimentos autênticos, há nelas uma tensão verdadeira, como se isso fosse uma espécie de transcendência. A dor é um sintoma benéfico. Sem masoquismo. Mas é um sintoma benéfico, uma coisa extraordinariamente positiva.


Sem masoquismo, mas com crueldade...
Sem masoquismo! Mas, o que é crueldade? A crueldade é uma manifestação extrema de dor. Quando dizemos Aquela pessoa é cruel!, falando de coisas que fazem, coisas reactivas... às vezes não é bem assim... não é bem crueldade.


Digo isto, no sentido em que é um livro feito de rememorações e de imaginações sobre alguém que desapareceu, coisas violentíssimas que se abatem sobre o eu...
Crueza. Acho que é mais crueza. É um livro muito cru. Vai até ao osso. A «Branca Morte» também ia. Mas... crueza e crueldade são gémeos. São gémeos, nunca andam muito longe. E é uma faceta da paixão, a crueldade.


E o tema da crueldade é muito importante no livro que a Eduarda publicou em 2008, «Não é preciso gritar», que é um regresso à ficção. Mas é quase estranho falar de regresso, porque são contos tão diferentes dos d'«A décima terceira ilha»... Como é que mudou a relação da Eduarda com a ficção entre estes dois livros?
Olha, eu acho que esse livro é muito bom! Tem uns erros terríveis que eu deixei passar, e fiquei aflitíssima, mas fui sempre assim, tenho uma dislexia muito particular em relação a nomes, acho que tem erro em Llansol e noutras coisas... Mas esse foi um livro em que eu acreditei profundamente no que estava a fazer. Acreditei profundamente na crueza das relações humanas, na impiedade. Trata-se de praticar acções maldosas, terrivelmente maldosas, das simulações em que vivemos, das máscaras. É um livro que eu considero irrepetível, que tem a minha própria respiração e o meu próprio ritmo e foi o primeiro livro que eu defendi. Disse ao editor: Eu venho apresentar um livro porque eu sei que vale a pena Primeira vez que disse isto a um editor. E essa editora... desapareceu...


A Campo das Letras...
É, eles publicaram o livro, foi uma coisa rapidíssima. E eu gostei muito de escrever esse livro.


É uma escrita muito cinematográfica. São quase curtas-metragens...
São sinopses. Eu pensei Será que ninguém olha para mim no cinema? Ninguém é capaz de ver o génio que aqui está? [risos] E então escrevi isto assim. Porque há coisas escusadas. É verdade que era prosa mas... Entra em casa, ó minha senhora posso entrar, olhe a temperatura se está bem... Não! Entra em casa: Entra. Está frio: Frio. É óptico, é visual.


A Eduarda já escreveu argumentos para cinema.
Ah! Coisas pequeninas, mas sim...


Mas o cinema tem aqui muita importância, já no «Travelling» tinha.
Tem, tem muita importância mesmo. A imagem é muito importante. Sabes porquê? Porque no cinema tu vês, escreves também, mas vês. Muitas vezes, eu falei de uma escrita cega, não é literatura, mas a pessoa quando está a escrever as palavras tem que as usar de uma outra maneira. É diferente de quando estamos numa empresa ou num banco a levantar um cheque. Uma pessoa procura uma linguagem adaptada, não sei se é boa se é má. É aquela de que dispomos. E eu pensava por que escrevia uma escrita cega. Eu queria ver e não via! Só depois de escrever é que via. Tratava-se de uma coisa de... presentificação. Era como se eu fosse buscar qualquer coisa ao futuro. E só via depois, posteriormente. É um campo da visão, que sempre me fez companhia.


Mas procura qualquer coisa que está para lá ou está antes da linguagem? Através da escrita, é possível chegar a qualquer coisa que esteja fora da linguagem?
Eu acho que a linguagem é uma coisa limitadíssima. Li-mi-ta-dí-ssi-ma! Por exemplo, tu podes escrever muitas páginas a dizer “ela comoveu-se com...”, mas isso não te dá um impacto daquele momento instantâneo, às vezes de um olhar. Podes escrever que uma pessoa te está a prestar atenção. E tu escreves que a pessoa prestou atenção, que estava sossegada, estava quieta, estava a ouvir mas... a imagem é muito mais poderosa. Nós não sabemos olhar, é verdade. Estamos saturados com tantas imagens. Mas a imagem é poderosíssima. Podemos descrever, mas uma coisa não dá necessariamente na outra. Mas também te digo uma coisa: se eu conseguir que a escrita tenha visibilidade, eu sei que ela é boa. Se ela tiver opacidade, se ela conseguir adentrar-me, ela é boa.


Em relação ao seu livro seguinte, os «Órgãos epistolares»... sei que é um dos seus preferidos...
É o meu preferido!


Um livro que fala da doença, que é íntima e política, trágica e irónica... há uma série de dualidades, sobre a doença, sobre a aproximação da morte. A poesia é um meio de resolver estas contradições?
Como eu disse, temos códigos. Vocês são de arquitectura: uma casa tem janelas, tem portas, tem luz. Esteticamente isto pode ser trabalhado, mas não se pode fugir aos códigos da arquitectura. E os suportes da poesia não são os mesmos que os suportes da prosa. Uma das coisas que eu me perguntei foi: o que é que o envelhecimento traz ou pode trazer na escrita poética? Li recentemente uma entrevista do António Lobo Antunes, em que ele diz que teme muito a ossificação. Com a idade as pessoas ficam ossificadas, não é? O que é que se perde? Eu penso que não há uma perda em si, cada pessoa perde as suas coisas, embora haja coisas que parece que são comuns. O que eu quis foi, servindo-me de uma mulher que está a morrer, cancerosa, através da proliferação das células cancerosas... ver o que é que morre, e por que morre, quando já não podemos ter aquela escrita que tinha leveza, que apelava à ternura, à sinceridade, às emoções. O que se perdera, e por outro lado: o que se ganharia? O que a pessoa podia ainda recuperar como um índice de fulgor. E foi um texto de registo: que tipo de metáforas desaparecia, que tipo de linguagem desaparecia, como era substituida a linguagem, por que era substituída? Por que experiência? Em que medida essa experiência tinha algum valor? Em que medida a podíamos descodificar? E descodifiquei, depois tudo ficava longo e ficava vazio: é um perigo. Em que medida aquilo que chamamos lucidez e reflexividade não é um período de acumulação de experiências desencantadas? Até que ponto não podíamos participar do envelhecimento das coisas? Da capacidade de amar? Que coisas tinham ficado pelo caminho? Se eu pudesse dar este registo por escrito... por mim, estou a dar um testemunho disso. E aliás, tu fizeste-me uma crítica, acho que foste o único, muito bem feita! O que eu quis dar foi um depoimento! É um testemunho. Mas ao prestar testemunho, será que alguma coisa de poético seria recuperável? E como é que eu poderia ainda manusear isso? Primeiramente, era precisa uma grande serenidade, para afastar tudo o que viesse interferir com aquele projecto. Porque havia um projecto! Havia um depoimento que eu podia prestar, que ainda posso prestar hoje. Tudo é um processo evolutivo: estas coisas morrem. Então, o que é que ressuscita, se ressuscita! Se o processo cognitivo pode ou não ser alterado? Como é que as células cerebrais actuam para eu poder ainda desencadear um processo de elaboração da palavra, de transmissão de ideias. E eu creio que esse livro foi o mais serenamente violento que eu já escrevi.


Que se apresenta como um livro de “Cara lavada: rugas à mosta”.
Absolutamente! São coisas terríveis que não têm sentido nenhum mas fazem parte das pessoas. É por isso que falo de uma poesia sem vísceras. Querem palavras, palavras bonitas e isso. Mas isso não interessa! É um joguinho de xadrez! Isso a mim isso não me interessa. Tive que colocar uma frase no fim para dizer que isto não é uma generalização, não tem que dizer respeito às outras pessoas, é a mim. Porque eu estava a jogar com uma realidade muito pungente. E de onde eu tinha que sair com o máximo de dignidade. E acho que consegui. São três livros lúcidos! Três, disso tudo que anda para aí... essas coisas que publiquei. Três: «O meu lugar à mesa», a «Branca morte» e os «Órgãos epistolares».


Os «Órgãos epistolares» terminam com uma frase da Sylvia Plath, “nus parecem dizer: / viémos até tão longe, chegámos ao fim”... há alguma esperança neste final?
Eu sou uma mulher de esperança. Sou uma mulher de esperança e de agradecimento. Esperança é o quê? Eu espero! Eu espero amanhã estar viva, espero jantar bem, espero que tu gostes de mim, espero não ter sido uma coisa detestável. Sim, espero que tenham gostado de mim, porque esforcei-me por ser sincera, e jamais sedutora. A sedução é uma grande impostura, e eu não gosto, pode ter acontecido, mas não por vontade minha. Sou uma mulher de espera. Até porque na minha idade, esperar um dia é esperar muito. [Pausa] A noção do tempo altera-se tanto, que eu penso que as pessoas, com a idade, deviam dizer aos outros, já que as crianças não podem dizer, Pára! Vocês já imaginaram o que é, uma criança, pequenina, de meses, bombardeada com um excesso de informação, com tanta gente a falar à sua volta, de um lado e de outro, e começa a chorar, às vezes só porque quer dizer Párem! Deixem-me com um brinquedo ali numa sala, e não pode... Nós podemos dizer o que se passa connosco para percebermos, e para os outros perceberem. Para percebermos o espectáculo da vida que é muito... cruel. Tiram-nos muito, e dão-nos tão pouco, que a pessoa tem vergonha de pedir mais um bocadinho, de dizer que tem fome...


E a própria metáfora da perda da vida, é uma metáfora sobre a perda da escrita... Como é que se escreve sobre a perda da escrita?
Se é que se escreve! Se é que é ainda escrita aquilo que estamos a fazer. Tem que se ter pontos de comparação. Aquilo que eu tenho, aquilo que eu fiz, tem sempre referentes. Se esses referentes são os melhores? Duvido. Mas são os óbvios. Mas o que eu escrevo o que é? Eu não sei o que é. Por exemplo, essa sequência, o «Fiat Lux», sabes como foi? Eu tinha isso escrito, mas nem tinha pensado em publicar. Mas o editor da revista... a Afrontamento ofereceu-lhe os «Órgãos epistolares». Eu acho que ele tinha lido muito pouco de mim, mas escreveu-me porque leu os «Órgãos epistolares». Eu sabia que aquilo era um testemunho, mas não sabia se aquilo poeticamente ia interessar. Mas interessou!


Há aquela ideia da Susan Sontag, de escrever para a literatura e não para as pessoas, no sentido em que se escreve em confronto com a fasquia deixada pelos escritores que se admira. Nesta fase, trata-se de escrever para a literatura?
Na minha fase de agora não. Eu deixei de escrever. Tenho um livro que está feito mas... deixei de me interessar. Nesta fase eu escrevo para ver se ainda consigo escrever, sabes? E se o meu pensamento ainda se articula. E com muita modéstia, porque já tenho muito medo. Por exemplo, posso levar – e levo – às vezes dois meses a ler um livro. Gosto ou desgosto, não interessa. E escrevo uma coisa a dizer isso, ou o contrário disso. Mas estou a escrever sobre isso ou sobre o livro? Não sei, é para ver se consigo. Como se me perguntasse: O que posso fazer com isto? Actualmente, a escrita é um desafio para ver o que eu ainda consigo fazer. Como andar. O meu limite é até ali, mas como é que eu posso transpôr esse limite? É muito complicado. Se me perguntares: e criatividade? Acaba! Acaba, como acaba o sexo, por exemplo. A determinada altura acaba. Não sei qual é a função da onda sexual ou da onda criativa. O que é que eu podia escrever agora? Nada, se calhar.


No entanto, continuou a escrever depois dos «Órgãos epistolares». Escreveu um romance, «Vira Bicho», e este conjunto que saiu agora, o «Fiat Lux». É possível escrever depois dos «Órgãos epistolares», então...
Talvez se morra muitas vezes. O que é que vocês acham? [Pausa] Quando se fala de ressurreição: eu agora morro e volto num insecto, se calhar, partes nossas estão mortas e outras ressuscitam. E nós pensamos: morri todo! e não, afinal foi só um bocadinho, ficou outro bocadinho...


Mas parece-me que há uma continuidade muito grande entre os «Órgãos epistolares» e o «Fiat Lux»... A morte e o corpo que sofre a erosão do tempo são novamente os assuntos centrais. Mas «Fiat Lux» é escrito com tal segurança, com tal acutilância, que quase se diria ser uma espécie de tratado sobre a morte do corpo, algo escrito de consciência plena, e não durante o processo em si, como nos «Órgãos epistolares». Acha que podemos falar de uma espécie de clarividência a propósito destes poemas novos?
[Pausa] Posso dizer uma coisa que é mesmo o que eu sinto? Eu sinto que isso foi o melhor que escrevi até hoje!


O «Fiat Lux»?
Sim.


Parece-me sem dúvida o mais complexo. Apesar de ser, em comparação, um conjunto pequeno, é extremamente complexo...
É complexo sim, mas... Mas agora passo para ti: o que é que tu achas dele? É que eu não sei! Isto é como se eu tivesse estado à beira da morte, fui enterrada e... de repente levantei a tampa! Mas o que é que tu achas?


Eu concordo, é um pouco assim. E há aqui uma coisa que me chama muito a atenção: já acontecia no terceiro capítulo dos «Órgãos epistolares» e acontece na totalidade do «Fiat Lux»: é o problema da ironia. Aparecem todos os grandes temas: o amor, a morte, a sexualidade, a ética, o corpo, mas é tudo destruído por uma espécie de ironia que está em tudo.
Em tudo! Em tudo!


Acho que o «Fiat Lux» é uma destruição pela ironia. Por isso eu falava em clarividência. É nesse sentido, em que é como se fosse uma escrita... eu não quero dizer póstuma...
Mas podes dizer!


Então, sim, uma espécie de ironia póstuma, face aos fenómenos humanos... talvez aqui tivéssemos que entrar na antropologia...
E bem! Quando eu comecei, na altura dos «Esquemas», estava lá isso tudo, a biónica, a electrónica, a quântica, a antropologia, coisas que agora estão aqui na berra: os criacionistas, os evolucionistas, mas já naquela altura isso era uma ironia. Para mim! Roubar é mais que dar! Pronto: roubar é mais que dar! E a ironia, para mim, é o esqueleto de tudo. Podem não me dar amor, mas dêem-me humor! Porque nós sem amor, sem comida... até passamos, mas sem humor não. O humor é sinónimo de bem-estar e de inteligência. É sinal das pessoas não se levarem a sério e de poderem errar. É sinal de vida e de vitalidade, e sem humor, para mim, não há nada. É algo que te digo que faz parte da minha própria estrutura, da minha maneira de ser. Havia um trovador, que o Arnaldo [Saraiva] estudou, que dizia a mesma coisa, Guilherme da Quitânia, no século IX. Gosto que tudo passe pelo humor, sabes, para perder essa dimensão...


A dimensão trágica...
A dimensão trágica... que é uma coisa, do corpo, o corpo sente dor. São necessidades. Estamos mal, estamos com fome... e é preciso humor para perder isso. É tudo muito triste...


A não ser que se tenha humor?
Com humor tem mais piada. Às vezes, se me dói uma perna e pergunto-lhe: Olha lá, o que é que eu tenho a ver contigo? O que é que eu te fiz para me estares a apoquentar? Depois tropeço. E penso: Olha, não parti a cabeça! E se bato com a testa, penso: Que bom não ter cornos! Eu vivo a minha vida num contínuo de humores permanentes.


Mas é uma ironia sua ou das coisas? É preciso inventar essa ironia?
Eu acho que é preciso impor. Se eu estou a cozinhar, e ao mesmo tempo estou a escrever, depois esqueço-me, a panela queima... Quer dizer: a panela não tem culpa! Mas eu também não tenho culpa de gostar mais da escrita do que da panela! De quem é a culpa? Então chego à panela e digo: Pois, agora vais para o lixo. E acabou-se. E quem quer viver assim, vive, quem não quer, não vive. Mas eu olho para as coisas e penso: Que grande chatice ter a ver contigo! Isto não é humor?


É curioso porque, ao longo da entrevista, falámos da poesia da Eduarda como tendo várias fases mas agora a Eduarda disse isto, que me chamou a atenção, sobre a permanência da ironia face às coisas sérias, que já vem dos «Esquemas». Acha que esta pode ser uma linha orientadora, não de fases, mas de toda a sua obra?
De toda. É uma constante. Se calhar é uma defesa! Mas lembras-te de uma parte neste mais recente [«Fiat Lux»] sobre Deus não perceber nada de impostos e da natureza dos peixes...? Tudo isso são humores que... Não é desrespeito! É muito mais sacana que isso. Porque o desrespeito é uma coisa sincera! Não é desrespeito, tem um bocadinho de maldade, de malícia. Porque senão, não podia viver! Como é que se aguentava tudo isto? Não sei... Aliás, não te esqueças de dizer aí: que eu sou uma pessoa profundamente ignorante!


Eu discordo...
Profundamente ignorante!


Acha mesmo?
Acho.


[RF] Então porquê?
Porque a nossa cultura – não sei como está agora – mas, eu tive uma cultura académica, como todos os meus amigos... Escola primária, Liceu, por aí adiante... passo depois para um curso de Filosofia que é uma coisa... é polémica, é engraçada, mas que não conhece o quotidiano. E tudo aquilo, trazido para a vida quotidiana, é tão pouco! Às vezes, basta falar com as crianças, o sol dá luz, e percebemos que não é precisa tanta coisa. Reduzimos tudo a termos conceptuais. Que aldrabice! E nós vivemos com um ensino teorizante que não nos diz nada. Por exemplo, nas antigas Civilizações: havia construções brutais, há 10.000 anos. Então os tipos não sabiam cozer uma batata e fizeram isto? Como é que é possível? Ninguém me dava respostas para isto, mas há respostas! É o ensino que nos prepara assim, pelo menos aqui, noutros países não sei se é assim. Pode ser divertido...


Sem perder a seriedade...
Sem perder a seriedade. Mas ligando-se à nossa vivência. Nós precisamos de vivenciar.


Mas esse também é um percurso que acontece na poesia da Eduarda. No início está muito interessada no Estruturalismo, que é uma abordagem essencialmente conceptual, abstracta, e depois parece que há uma desilusão...
Completamente, completamente! Seja o que for que seja a poesia ou a literatura, não se faz só com isso, não se faz com isso. A partir de certa altura, percebi que não. E há muita gente a fazer assim, e estão a fazer muito mal. E há muitos poetas que no fundo, não sabem o que estão a fazer. É preciso que as coisas grandes, intemporais, sejam naturais. São nossas. [Pausa] Sobre eu ser ignorante, digo-te o seguinte: tenho um irmão que é matemático. Fala por fórmulas. É brilhante, e fala assim, por fórmulas matemáticas, faz a vida dele, foi investigador. Durante muito tempo, eu achava que ele tinha um pensamento distorcido. Eu tinha todas as perspectivas da catalogação [psicológica], mas perdia o contacto com o real. Isto [aponta para o esquisso de uma tabela] é um sinal de burrice, de ignorância, não é de sabedoria. Sabedoria foi o que eu adoptei depois, quando passei a falar com ele como ele conseguisse entender-me. Passei para o universo dele. É preciso esquecer esta porcaria toda [risca o esquisso da tabela] que não tem importância. Sou ignorante, porque uma parte esqueço, outra parte quero esquecer.


Então não é uma aspiração à ignorância?
Não, é ignorância mesmo. Olha... eu vi a Casa dos Segredos. Vi, sim, vi um bocadinho! E vi uma miúda profundamente humilhada porque deu conta da sua ignorância. Estava mesmo humilhada, só faltou chorar, dizia «Sou burra!» E depois há lá um indivíduo que vai consolá-la, dizer-lhe que não é burra... aquela coisa machista, não é? A miúda não sabia a capital de um país. Estava humilhada. Foi a primeira vez que eu vi uma pessoa a tomar consciência da sua própria limitação. Uma vez, estava a ler os Prolegómenos de Kant, na Faculdade, e estava a chorar e não percebia pa-ta-vi-na. Não entendia, era o limite do meu entendimento. Passou por mim o [Francisco] Vieira de Almeida e perguntou-me por que estava a chorar. E disse-me: Não fiques triste, filha, não digas a ninguém. Eu estou cá há mais tempo que tu e também não entendo! Mais tarde, vim a saber, quando descobri o tal humor: Kant tem as mãos limpas. E disse: Também eu! Kant não tem mãos, tem cotos! Mas sou muito ignorante... porque para se saber uma coisa, é quase uma vida inteira. Não sou especialista. Mas, como não sou burra, soube dizer que não sei nada.


E acha que é melhor saber? O arquitecto Walter Gropius dizia que “os especialistas são pessoas que repetem sempre os mesmos erros”. É melhor ser especialista, nesse sentido?
Não sei se é melhor, se é pior. Mas retira a angústia de andar sempre a procurar. Porque depois, procura-se como se fosse um pai e uma mãe, alguém que nos dê uma razão para aquilo. Um diz uma coisa, outro diz outra, o outro apodera-se daquele. Mas há mentes brilhantes, mesmo.


Para terminar, uma coisa que me chama a atenção no «Fiat Lux» é o facto de ser publicado numa revista. A Eduarda tem muita colaboração dispersa e, segundo as suas notas biográficas, alguns livros que nunca foram publicados: «Buchenwald», «Os cafés de Paris», «Vala comum», «Mater». O que significam para si, hoje, esses poemas dispersos e esses livros que nunca foram publicados?
É o seguinte: a «Mater» está, inédito, na «Poesia completa» que está por publicar, que já me pediram há uma data de tempo e eu deixei cair... enfim... não tenho paciência para organizar aquilo. Nem tem título. O Armando Silva Carvalho tem o «O que foi passado a limpo», que eu acho lindíssimo, mas não posso roubar o título! A «Vala comum» também está lá. O «Buchenwald» foi uma peçazinha de teatro que me pediu um indivíduo, tradutor, para publicar em Paris, mas creio que não foi publicado. «Os cafés de Paris» ainda está por lá por casa! Tem um extracto, um extracto do início dos «Cafés de Paris» na...


N'«A Décima terceira ilha».
«A décima terceira ilha», exactamente, tem um extracto e ainda está por lá. Não sei se um dia lhe pegue, ou não...


Há uma Eduarda Chiote inédita que possamos encontrar nestes livros?
Na «Vala comum» e na «Mater»?


Nesses todos...
[RF] Se há uma outra Eduarda...?
Mas alguma vez existiu alguma Eduarda? Diz-me lá!


Então, os livros estão publicados, existe de certeza.
Sim, mas, eu acho que há uma nova Eduarda aí no «Fiat Lux», não há? Aqui [nos inéditos], se calhar, é uma nova misturada com aquilo que lá estava [risos].

sábado, 15 de novembro de 2014

Dois poemas de Eduarda Chiote



Altas voam pombas (fragmento)

Todavia, penso que nada tem de temerário a ponte inscrita em corporal silêncio. As horas são uma galáxia branca; enevoada. Participamos da rotação do tempo. Estamos perante o mistério: o insondável.

Nesta evanescência, tudo pode não acontecer. Desventrar, do quotidiano, o rumor: despenharmo-nos pelos passos, a ratoeira do passeio onde negras pombas de luto na calçada agonizam; nada pode comparar-se a esta pegada no infinito.

Estamos no limiar do encontro. O numinoso. O secreto e o segredo. Cúmplices. Espectantes e frágeis. Nus. E violentamente vivos. Que nenhuma fábula pode comparar-se à migração da escrita. Nela, o silêncio é grande medalhão de vidro.

Altas voam pombas
1983, ed. &etc


Fiat Lux 9

A generosidade é má conselheira e péssima
economista. Jesus encarava tanto os filósofos da felicidade
quanto os desencantados eruditos
com muita reserva: uma vez que nem uns nem outros
tinham previsto, no Seu inflacionar os peixes,
ser, da natureza dos peixes, «o devorarem-se uns aos outros».
Tal como da natureza dos vírus o reproduzirem-se
e da natureza da dívida termos estado sempre em dívida
e até mesmo para com a dívida.
E da natureza do homem crescer e multiplicar-se: e da natureza
do bobo o riso, e da natureza do outro, o assombro
do facto _ farto de psicologias, dizes, quero factos.
Curioso, pois, ter sido O que nada entendia
de redução da carga tributária, precisamente quem apelou
para o não pagamento dos impostos, pelo que o modelo de um
paedocypris capaz de engolir
um tubarão ou o inverso,
não importa.
_Queres, então, fazer sexo comigo, tu? Tão disléxico
que nem sequer consegues arrastar-te pelo sono
desfeito das areias _ diria das palavras _ quanto mais por mares
desempregados
e lassas redes móveis?
Deixa para lá! Não te preocupes, que nunca
houve pandemia sem morte.

Fiat Lux
in "DiVersos - Poesia e tradução"
nº20, ed. Sempre em pé, Junho de 2014

imagem: Archigram

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Sobre o rosto da terra (fragmentos)























Sobe da nossa condição uma vontade de brancura. Até ao interior das casas, até à evidência dos rostos. A brancura iguala a liberdade do dia ao ascendermos à planura onde se respira de pé, rosto a rosto, na facilidade do vento.


*
Entre fios luminosos, rasteiros. Perpassa o vento baixo (o solo tem essa rugosidade amorosa que o dedo declina). As narinas respiram a paz na memória longínqua dum galo, fonte de eternidade. Estar, estar assim sobre o rosto da terra.

*
As evidências comovem-se. No acompanhamento do mar, animados pelo sussurro unânime. Os poucos que somos constelamo-nos estrela do mar. Em cada bico geramos um irmão futuro que canta a nossa liberdade.

*
De um quarto quente, corremos a uma varanda, uma praia ou uma janela. O mar visita-nos mesmo no espelho. Ao crepúsculo, um sangue alaranjado aflui ao rosto das casas. Depois do mar, sulcamos a terra, a caminho da noite, viajamos na brisa, na fugitiva liberdade dos nossos sonhos.

*
Escolho a vaga breve, a súbita, que emerge na planura fatigante. A aridez da luz irisa os arabescos móveis. Estendo a rede de sombra, onde os sonhos afluem. O breve tempo de construir a casa de vento onde circula a paz viva entre as clareiras de espaço e corpos libertos.

António Ramos Rosa
Sobre o Rosto da Terra
1961, col. Pedras Brancas
pintura de Howard Hodgkin

sábado, 20 de setembro de 2014

''Anything could happen'': Ellie Goulding/ Floria Sigismondi




Um videoclip de Ellie Goulding, realizado por Floria Sigismondi, fotógrafa e artista plástica que admiro bastante. O feliz encontro entre estas duas mulheres dá origem a um vídeo em que convergem a mitologia clássica (Penélope e Ulisses) e o imaginário cristão (a figura de Goulding a lembrar uma santa). 
O que admiro essencialmente no trabalho de Sigismondi, como fotógrafa e como realizadora de videoclips, é a sua capacidade de, atrás do que parecem meras imagens de inspiração surrealista e simbolista, convocar vários momentos da história cultural europeia, e de reintegrá-las no contexto actual, trabalhando igualmente com a ruptura e com a continuidade. Neste caso, Ulisses e Penélope transformam-se num casal urbano destroçado por um acidente de automóvel junto ao mar onde ela o espera. Por outro lado, Goulding aparece convertida numa andrajosa figura mítica, que não assenta sobre uma nuvem (como no imaginário comum católico), mas que é arrastada sobre o mar por essa nuvem.
A produção visual que acompanha o trabalho de Ellie Goulding já várias vezes invocou estéticas semelhantes, por exemplo no vídeo de Figure 8, realizado por W.I.Z., ou então no vídeo, já mais antigo, de Guns and horses, realizado por Petro.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Memorial temporário #6

Um pequeno apontamento (meu) sobre um poema do livro de estreia de Yvette K. Centeno, aqui.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Ellie Goulding: Ritual



Da edição especial do álbum 'Halcyon' (2012)
Letra de Ellie Goulding / Stannard/ Howes

(...)
We move into the devil’s shoes 
It’s far too late to be rescued 
From highway seas and thunder skies 
We see our fate, you hear our cries 

 They go, oh oh oh oh 
And it won't stop here, echo in my ear 
There's a raging fire, and it burns so near 
But I'm ready now, but I’m ready now 

It’s a ritual, and I know you feel it 
It’s a ritual, and I know you see it
(...)

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Uma promessa do mundo

Urbanização*

Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava 
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.

Neste poema, pertencente à última recolha publicada em vida da autora, Fiama Hasse Pais Brandão escreve no sentido de, através do espaço, abolir o tempo, ou a passagem do tempo, no sentido em que estamos habituados a compreendê-la. Mas o que Urbanização tem de mais intenso é a forma como, logo nos primeiros versos, se recusa a fazê-lo através da colocação do poema no espaço da memória. A fusão entre o passado e o presente dá-se ''no puro espaço/ dos cinco sentidos''. Assim, ''a dupla configuração de um campo'' não é narrada como se se contasse uma história. É facto que primeiro existe ''o mundo, raso/ um campo vazio de tojo seco'' e que depois ''alguém/ urbanizou o vazio''. Mas não se trata de um exercício de memória. Neste poema, a visão é dupla, e só assim pode actuar sobre o mundo que tem diante de si, com o qual se encontra. O que aqui temos, quando o eu do poema nos narra o seu ver, é uma espécie de fenomenologia, uma imaginação sensorial do próprio espaço. A visão dupla (que Fiama reclamara já no poema Do Amor IV, do mesmo livro), é a própria imaginação, que se desenha como uma forma de consciência. É assim que o eu consegue intuir o vazio sob a urbanização, o tojo sob as casas.
Por isso, o poema de Fiama apresenta-nos não menos do que uma verdade elementar sobre o espaço construído: cidade e casa, urbanismo e arquitectura. A acção humana de alguém que urbaniza o vazio opõe-se ao que existe inicialmente. O ''campo vazio de tojo seco'' é uma imagem do deserto. Esse deserto subsiste mesmo quando é preenchido por construção. Não só porque o eu é capaz ainda de o ver, de saber que ele continua ali sob as construções, mas também porque o próprio deserto é, de certa forma, um espaço sempre de ''dupla configuração''. Sabemos disso porque o poema não se faz nem pela memória nem pela linguagem, mas pelos cinco sentidos. Isto significa que é através do corpo do eu que a fusão do passado e do presente ocorre. Nesse sentido, sempre o vazio do deserto e a vastidão do vazio serão espaços privilegiados para a imaginação do mundo. No poema de Fiama, o espaço deserto é uma matriz inicial, uma promessa do mundo, ele contém já a urbanização que nele virá a erguer-se. Essa cidade já existe ali, mas é visível só pelo olhar sensorial e ilimitado da imaginação. Reciprocamente, a urbanização erguida não pode deixar de conter o ''mundo raso'' de onde nasceu.


A linguagem do poema é simples mas enigmática, os versos curtos são fluidos mas tensos. Essa tensão justifica-se nos últimos versos, em que o eu nos diz que assiste ao crescimento da urbanização ''ou a sós em silêncio/ ou narrando esse meu ver''. O poema está assim na tangente entre silêncio e fala. Ele depende de uma imaginação, de uma experiência total que só em parte pode ser resolvida pela linguagem. Daí o tom enigmático do discurso: a experiência é sensível, quase sensual, e só parte dela é transmissível por palavras. O não-escrito, que descobrimos ao ler o poema, pode ser uma forma de acesso ao resto do que foi experienciado. Talvez este poema só possa ser entendido se repetirmos por nós mesmos o movimento que lhe dá origem: se olharmos imaginosamente para o espaço da cidade e conseguirmos sentir o vazio iniciático, que não nos levará ao início do tempo, mas criará uma espécie de experiência simultânea dos tempos. Como a que acontece neste poema.


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*Fiama Hasse Pais Brandão. As Fábulas. ed. Quasi. Vila Nova de Famalicão, 2002. p.32