Não constitui novidade que Manoel de Oliveira adapte ao cinema um romance de Agustina Bessa-Luís. Neste caso específico, trata-se de "A Jóia de Família" que, na sua versão cinematográfica leva o título da trilogia que inicia, "O Princípio da Incerteza".
Os exemplos de "Fanny Owen" ou "O Convento" ou "Inquietude" são bem representativos de como Oliveira tem sabido encontrar-se com o universo de Agustina, aliando a sua identidade à da escritora.
Em 2002, "O Princípio da Incerteza" é a adaptação de um dos romances mais interessantes mas também mais complexos de Agustina, tanto que, para compreendermos verdadeiramente os sentidos de "A Jóia de Família", convém ler as suas duas sequências, "A Alma dos Ricos" e "Os Espaços em Branco". O próprio Oliveira acabou por transformar "A Alma dos Ricos" em "O Espelho Mágico".
"A Jóia de Família" é um romance atípico, até para Agustina. De certa maneira, é como se este livro necessitasse de alguma acção, algum movimento, uma energia narrativa que acompanhe a energia daquilo que é narrado. É esse o maior problema de "O Princípio da Incerteza". É um filme que respeita o tempo a que Manoel de Oliveira nos habituou. E esse tempo, se tem resultado muito bem na maioria dos filmes do realizador, não me parece o mais apropriado para esta história. É que não se trata de querer tecer uma comparação, inútil, entre o romance e o filme: é a própria história que precisa de mais "alguma coisa". "Alguma coisa" que pode ser um pouco de acção, um pouco de frenesi, já que é em frenesi que interiormente vivem as suas personagens.
Esta é a história de António Clara (Ivo Canelas), herdeiro da Casa do Salto da Senhora, que vive excessivamente influenciado pelo seu amigo José Luciano, mais conhecido por Touro Azul (Ricardo Trepa), filho da criada da Casa, Celsa (Isabel Ruth). Esta má influência passa a preocupar Celsa principalmente a partir do momento em que o filho apresenta a António a sua amiga Vanessa (Leonor Silveira), dona de uma discoteca e de uma série de negócios ilícitos que incluem prostituição. Celsa acaba por recorrer à ajuda de Daniel Roper (Luís Miguel Cintra), um velho amigo da família, que acabará por conseguir que António case com Camila (Leonor Baldaque), filha de uma família falida da Régua.
Se facilmente se percebe que o casamento não interessa muito a António, que está mais envolvido com Vanessa numa espécie de contrato amoroso, facilmente se percebe que Vanessa passa a fascinar-se incrivelmente por Camila, ao ponto de descurar todos os negócios e todas as relações, pensando em Camila obcessivamente.
Há que destacar que Leonor Silveira é quem mais surpreende, pela excelente caracterização, parecendo verdadeiramente uma dessas mulheres da noite, que, na descrição de Agustina "não tinha modos nem cultura, só tinha expedientes".
A relação quase autista que existe entre Camila e Vanessa é o aspecto que mais fica a ganhar com esse estilo habitual de Manoel de Oliveira, teatral e pausado, pois é aí que somos confrontados com a estranheza do amor que as une. No entanto, não é difícil perceber que faz alguma falta António Clara, pois é ele quem na prática as une, sendo marido de uma e amante da outra. E no filme, contrariamente ao que acontece no romance, António é um personagem apagado, quase não tem existência. E de certa maneira, o Touro Azul, por quem Camila no fundo sempre esteve apaixonada, e que foi sócio e talvez amante de Vanessa é também um pouco demitido nalgumas situações em que seria crucial.
Outro aspecto que a teatralidade de Oliveira também favorece é o lado analítico da história, que em Agustina é essencial, e que encaixa bem no estilo do realizador, parecendo aquilo que são complexas análises e aforismos no romance, parecer simples diálogos no filme. Mesmo assim, isto torna-se excessivo no que toca à natureza do casamento de António com Camila. Aquilo que nos parece pelas imagens é que é simplesmente um casamento entre pessoas que são distantes uma da outra, e é necessário ouvirmos Camila relatar as sevícias que lhe inflingiram para percebermos a violência em que vive. E penso que essa violência, que não é necessariamente física, ser mais evidente só favoreceria o filme.
É possível que este seja um bom filme de Manoel de Oliveira, mesmo que não seja uma boa adaptação de Agustina. Mas a esse talvez precisamente se chama "O Princípio da Incerteza".
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