terça-feira, 17 de agosto de 2010

Maria Gabriela Llansol: Uma Data em Cada Mão (Livro de Horas 1)

"NO CORAÇÃO PASSA UMA IMAGEM"

A questão do diário está longe de ser trivial num país como o nosso, acima de tudo porque ainda é uma prática um tanto estranha publicar-se o diário de um escritor. Não porque não se faça- temos acesso a vários, neste momento- mas porque se faz de uma forma acima de tudo ocasional, e parece-me que o próprio universo de leitores não tem ainda, por várias razões, uma sistematização de leitura de diários da mesma forma que tem de romances ou de livros de poesia. Além destas questões que são acima de tudo paralelas aos livros, há ainda a questão interna: no fundo, perceber-se qual a pertinência da publicação de um diário no contexto da obra do autor. Se realmente o diário acrescenta alguma coisa à própria obra, ou se, não acrescentando, ajuda à sua compreensão, ou então se pelo menos dá uma visão sobre o contexto das obras na vida do autor; parece-me que tem todo o interesse a leitura do diário. Se, por outro lado, o diário se limita a levantar o véu sobre a vida privada do autor, parece-me que a leitura se justifica apenas no caso do autor ter tido uma vida invulgaríssima, partindo do princípio que isso existe.
Já tivemos exemplos de bons diários, no sentido em que eles aumentam a obra e a esclarecem: recordo os diários de Fernando Pessoa (“Páginas Íntimas e de Auto-Análise”), de Luísa Dacosta (“Na Água do Tempo” e “Um Olhar Naufragado”), de Luiz Pacheco (“Diário Remendado”), só por exemplo. Por outro lado, a série dos “Cadernos de Lanzarote” de José Saramago, além de extensíssimos, nem sempre existem nessa lógica de surgirem para esclarecer ou acrescentar a obra, sendo muitas vezes relatos da vida do autor. É uma opção, apenas não me parece a mais interessante.
No caso de Maria Gabriela Llansol, a publicação de um diário não constitui novidade. Recuemos até 1985, e encontramos a publicação de “Um Falcão no Punho” (ed. Rolim, reed. Relógio d´Água), que levava como subtítulo “Diário 1”, depois em 1987, “Finita- Diário 2” (ed. Rolim, reed. Assírio e Alvim), em 1996, “Inquérito às Quatro Confidências- Diário 3” (ed. Relógio d´Água). Percebemos que os seus diários cumprem a um tempo todos os aspectos que acima enumerei e que considero fundações para um diário, a meu ver, pertinente.

No final de 2009, pouco mais de um ano após a morte de Maria Gabriela Llansol, a Assírio e Alvim lança “Uma Data em Cada Mão: Livro de Horas 1”, que sucede o último original publicado da autora, "Os Cantores de Leitura" (2007). Antes de partir especificamente para o texto, julgo ser importante falar da edição. Trata-se de uma edição póstuma e, já se sabe, sempre essas edições oferecem toda a sorte de dúvidas e escolhas discutíveis, nas quais não me vou lançar agora. Há no entanto alguns detalhes que não deixaram de me chamar a atenção:
João Barrento e Maria Etelvina Santos estão desde já de parabéns, pois tiveram a seu cargo uma tarefa nada fácil, e na qual só inicialmente tiveram a ajuda de Maria Gabriela Llansol: trata-se da transcrição dos cadernos, das várias anotações que muitas vezes se revelam quase essenciais para uma boa compreensão do texto e das suas múltiplas referências, quer à obra da própria Llansol quer a outras obras, além das folhas soltas que foram anexadas aos cadernos. Além disso, tiveram também o cuidado de inserir algumas páginas fac-similadas dos manuscritos, que nos permitem formar uma ideia relativamente a essas questões aparentemente menores como são a caligrafia, os doodles, os desenhos e outras coisas afins que Llansol inseria nos seus cadernos. Mais ainda, há que felicitá-los pela escolha do título deste volume: se a designação de serie “Livros de Horas” foi escolhida pela autora ainda em vida, o título de cada volume é escolhido por Barrento e Etelvina Santos e “Uma Data em Cada Mão” parece-me, além de muito adequado, muito bem localizado entre os títulos que habitualmente Llansol escolhia para os seus livros- a expressão é colhida do documento.
No entanto, algumas coisas deveriam acontecer: para começar, dever-se-ia explicitar a relação deste livro com os três diários previamente publicados: podemos comparar as datas, e vemos que este livro contém textos escritos de 1972 a 1977, e "Finita" incluia textos de 1974 a 1977 (E ainda um único texto escrito em 1939.).  Assinala-se, a 8 de Dezembro de 1976, a passagem do segundo para o terceiro caderno, mas, por alguma razão, a 19 de Julho de 1976 não há qualquer indicação de se passar do primeiro para o segundo caderno, o que conviria. Uma última falha na edição dos cadernos, e se calhar a menos importante: lemos nas notas que foram excluídas todas as passagens que já tivessem sido incluídas noutros livros de Llansol; no entanto, parece-me que seria interessante, pelo menos em nota de rodapé, dar uma indicação de que, em determinado lugar existia uma passagem que foi retirada, mesmo que se não especificasse qual (Poderia tornar as notas demasiado longas e/ou confusas.). Não são propriamente falhas graves, mas são o que falta para a edição ser mesmo irrepreensível.


Agora o texto.
O que encontramos em “Uma Data em Cada Mão” é, acima de tudo, um livro de Maria Gabriela Llansol, com todas as características que nos habituámos a encontrar nos restantes, ainda que, estranhamente, aqui a escrita pareça, de alguma forma, menos encriptada.
Este é um diário em que entendemos o quotidiano de Maria Gabriela Llansol: completamente consumido pela escrita, pela leitura, e acima de tudo, por um profundo pensamento que a ligava, enquanto ser humano, a elas.
A obsessão pela escrita é de facto pungente. E se na entrada de 30 de Abril de 1972, Llansol escreve
“Alheamento da vida de trabalho de todos os dias: actividade da Escola, compras, preparação da comida. Esqueço-me de tudo isso, e só vivo conduzida pelas vozes destas páginas (…)”
em 21 de Abril de 1976, ela escreve já
“(…) mal passava a ferro, mal lavava os pés (qualquer trabalho) tinha que pegar com a mão livre na caneta, deixar sempre a outra mão livre para escrever.”
É muito claro por que o diário de Maria Gabriela Llansol não tem, de longe, tantos detalhes sobre outras coisas como tem sobre leitura e escrita. Porque Maria Gabriela Llansol era verdadeiramente dependente dos livros, dos que lia e principalmente dos que escrevia. E é isso que mais encontramos neste livro: como se, ao remover as “paredes” dos restantes livros fôssemos encontrar este livro: é ele a estrutura que sustenta os livros que Llansol foi publicando ao longo da sua vida, em particular, neste volume, “O Livro Das Comunidades” (1977) e “A Restante Vida” (1983). Se poderia parecer estranha a quase completa ausência de referências a “Os Pregos na Erva” (1962) e “Depois de Os Pregos na Erva: E Que Não Escrevia” (1973), isso poderá talvez ser explicado com a diferença que, neste espaço de 11 anos se operou na escrita llansoliana. E mesmo assim, ainda lhe lemos sobre esses dois livros, em 13 de Julho de 1976 “Aqui, quase não se fala do que escrevo, publica-se e fala-se de outras coisas, coisas úteis, compreensíveis, exigidas ao momento presente.” (pag.170) E, ainda sobre os livros que aqui parecem ter a sua raiz, (Se é que não têm todos, directa ou indirectamente, uma vez que toda a obra de Llansol tem uma continuidade, uma comunicação entre todos os livros.), aqui estão muitas “figuras”, muitos “pensamentos” que afinal vamos reencontrar em “Contos do Mal Errante” (1986), “Da Sebe ao Ser” (1988) ou “Um Beijo Dado Mais Tarde” (1990). E até ao lermos “Vida e morte de Augusto e Gabriela, desejo de, quando esta forma humana nos deixar, a mim e ao Augusto, perspectivar nossa época nos confins de um livro” (pag.157) é fácil pensar em “Amigo e Amiga: Curso de Silêncio em 2004” (2006).
A esta tendência devemos a grande quantidade de imagens que Llansol convoca, que parecem construir um texto sobre os dias, descartando-se de lhe narrar os pormenores, e preferindo a imagética a que podemos atribuir uma tremenda vida interior. A que originou os livros.
Esta comunicação entre livros está longe de ser gratuita e imponderada. Pelo contrário, é em 1976 (Quando Llansol publicara apenas os primeiros dois livros.) que ela escreve “Todos estes textos integram o texto do meu livro. Livro único, que aparece publicado em lugares, datas, textos ou volumes diferentes.” (pag.115). É esta ideia que melhor sintetiza os livros de Maria Gabriela Llansol: ela escreveu um livro apenas, todos os seus textos formam um longo longo livro, que a todos os momentos se evoca a si mesmo e a outros, que é a sua história e a forma como essa história foi escrita, é o resultado e o acto de escrever. E se é verdade que são os diários que mais contêm a parte respeitante ao acto de escrever, a verdade é que também o resultado passa por aqui, da mesma maneira que nos ditos romances o acto de escrever não está ausente, sendo por muitas vezes ele próprio um tema. Como se Llansol decidisse expor quais os seus processos, as suas ferramentas, para construir um livro, incluindo-os no próprio livro.
Além dos livros, outra questão que me parece relevante referir é a do “exílio” em que Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim viviam, ao tempo na Bélgica, entre Lovaina e Jodoigne. Essa questão do exílio, que Llansol aborda vezes sem conta, mas com particular interesse no texto escrito em folhas avulsas inseridas neste diário “A Vocação do Exílio” (pag.158). Além do problema do exílio propriamente dito, há ainda outro, que a escritora aborda de uma forma a um tempo analítica e emotiva: Portugal. A sua relação com Portugal é, além de duma perspectiva biográfica, vista também da perspectiva da escrita. É assim que encontramos Gabriela Llansol visitando Lisboa ao fim de dez anos de exílio, meditando “As expressões usadas são imutáveis, as de há dez anos. (…) Como poderá opor-se à linguagem dos detentores do poder (esses sismos do poder), pessoas para quem a linguagem e os gestos não mudam? Como poderá inventar formas de comunicação de um grupo sem espaço?” (pag.89)
De certa forma, Llansol sabia que Portugal não estaria pronto para a sua “estranha forma de escrita”, que o foi de vida também. Talvez por isso, em 28 de Março de 1976 ela escreve “Foi uma desolação, em Portugal. Talvez nem sequer houvesse um país, era um estado, um lugar insignificante.” (pag.133). Não só a escrita, mas também a perda do quotidiano e dos locais e talvez dos afectos, nos vão dando conta do desfasamento que, pelo menos nesta fase da sua vida, Llansol sentia em relação ao país.
Sobre a questão do diário propriamente dita, Llansol escreve a 12 de Novembro de 1974, “Os bons escritores fazem os maus diários. Aceito fazer um mau diário.” (pag.61). Pensei em Henry Miller que dizia no seu “Sexus" que “mais vale um livro medonho que uma vida medonha.” Mas a única razão que encontro para que entre os livros e a vida haja esse jogo de contrários é se a escrita for oposta à vida, a renegar para se construir sobre outras bases. O caso de Maria Gabriela Llansol não é um desses casos. Este diário é o sintoma de uma vida que respirava pela escrita e pela leitura, onde tudo pode passar do mundo empírico para o mundo da escrita, onde ambos se confundem e, na verdade, formam um só. Por isso me parece que Llansol acertou na mosca quando escreveu em “A Raiz de Qualquer Livro”, que serve de prefácio a estes diários:
“___________a primeira imagem do Diário não é, para mim, o repouso na vida quotidiana, mas uma constelação de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras. Qualquer aprendiz imagético, quando sobe ao meu quarto e atravessa o meu escritório, tem o sentimento de que «um belo lixo de imagens se criou aqui». Se for menos inocente dirá: «que belo luxo de imagens». Eu diria: aqui está a raiz de qualquer livro.”
E está mesmo.



(As imagens correspondem à capa do terceiro caderno e ao armário dos diários da autora, e foram retiradas do blog do Espaço Llansol.)

2 comentários:

Graça Martins disse...

Gostei muito destas palavras. Estou a lembrar-me dos Diários do Virgílio Ferreira, obsessivos na anotação do quotidiano vulgar, rígido e sem graça. Os diários da Llansol e de outros autores (Virginia Woolf) obececem a outra estrutura. São a semente, o embrião da criação. Revelam que não há distância entre o acto criativo da escrita e a vida, pelo contrário - sem o acto da escrita NÃO HÁ VIDA. E no caso da Llansol -A vida foi sacrificada para a ESCRITA. Cada um vive a sua criatividade de acordo com a sua estrutura mental, sem dúvida. Os diários são sempre uma fonte inesgotável para o público, porque despertam o lado Voyeur que o ser humano encerra. Penetrar nessa intimidade é excitante. Conheci a Gabriela Llansol, realizei várias capas para os seus livros e observei que a sua relação com os outros era meramente utilitária, a vida sacrificada para a escrita. Há autores mais humanos, generosos, dão-se um pouco e existe uma troca com o mundo e há outros igualmente criativos mas autistas na relação com os outros.
Parabéns pela análise.

Supermassive Black-Hole disse...

Os diários do Vergílio foram escritos a pedido da editora, são calculados e pouco espontâneos.
Claro que há diários de autores interessantíssimos estrangeiros, a Virginia Woolf de que falas, a Katherine Mansfield, o Kafka, e saiu há pouco tempo o diário da Susan Sontag.
Mas em Portugal é raro.
Todas essas coisas de que falas a propósito da Gabriela Llansol estão muito presentes no diário dela, e é isso o interessante. O convívio que parecia dar-lhe realmente gosto era o convívio com os livros, com as suas "figuras".
Obrigado pelo comentário!