quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Hélia Correia: Soma

A SOMA DE TODOS OS MEDOS

Depois de vários anos a publicar dispersamente poemas em revistas e antologias, em 1981 Hélia Correia publica “O Separar das Águas” (ed. Regra do Jogo, reed. Ulmeiro), uma novela. A ficção foi, para todos os efeitos, a escolha da autora, que até hoje deu à estampa novelas, contos, romances e teatro- contra apenas dois pequenos livrinhos de poesia, “A Pequena Morte/ Esse Eterno Canto”, com Jaime Rocha; e “Apodera-te de Mim”.
É sobre a sua quinta publicação que hoje me debruço.
Seria talvez interessante fazer um paralelismo entre esta novela de Hélia Correia e o mítico texto de PlatãoA Caverna”.
O texto filosófico grego mostra-nos vários homens desde sempre encerrados numa caverna aparte do mundo, colocando depois a hipótese de um deles dali ser evado para o mundo. A conclusão é que, uma vez no mundo, esse homem não seria capaz de voltar a viver na caverna.
Soma” (ed. Relógio d’Água) publicado em 1987, coloca-nos perante uma situação similar: António Elísio, velho professor de História, com um passado politico ligado à esquerda radical, cruza-se por acaso com uma jovem rapariga, a quem decide chamar Bárbara, jovem que “surgiu entre os seus olhos e o mar” (pag.15). Decidido a conhecê-la, António acaba por ficar a viver com ela, que afinal se chama Teresa, e com os seus dois amigos, Jonas e Carinhos. É neste espaço pequeno e pobremente dividido, num certo ambiente comunitário, onde também o sexo livre se pratica que António percebe que os ideais que uma vez defendera lhe são de alguma forma estranhos, talvez pela idade ou talvez pela distância em relação ao tempo em que tudo isso tinha um sentido realmente político.
Um ponto de grande interesse nesta parte da narrativa é a relação, posta em causa pela idade, do indivíduo cm os seus valores éticos¬: como perecem, consoante a perspectiva. António parece-me representar o tipo de indivíduo que seguiu por arrasto certos ideais, apesar da sua vida se ter desenrolado à margem deles. Quando, já venho, António se cruza com a prática deles, sente esse dilema que talvez seja causado pela divisão das crenças pessoais e dos códigos da maioria: ainda que, pelo menos a principio, ele permaneça com Teresa-Bárbara e os amigos um pouco por inércia, sentindo-se estranho àquele ambiente e um tanto incapaz de aderir a ele, com o passar do tempo, percebe que seria incapaz de dali sair, pois, de certa forma, tudo lhe é familiar.
Talvez aqui se pudesse falar um pouco de conflito de gerações: o tema não é estranho à prosa de Hélia Correia, pois já de certa forma o encontrávamos no seu “Montedemo” (1983, Ulmeiro). Mas aqui, se essa questão chega realmente a sê-lo, vai mais longe do que as relações sociais: o conflito dá-se a um nível íntimo, dentro do próprio individuo que, sentindo o tempo passar se questiona a si mesmo e aos seus anteriores valores.
Assim, à medida que António começa a ganhar o seu lugar naquele espaço e no contexto daquelas relações, já não consegue regressar à sua anterior vida comum. Neste ponto é que me parece que a novela de Hélia tem alguma convergência com o texto platoniano.
E portanto assumindo que António não pode regressar, vemo-lo partir, por força das circunstâncias, para um outro espaço, em algo parecido ao de Teresa-Bárbara.
Trata-se de uma velha quinta isolada na serra, conhecida como Pontão, onde habitam três mulheres: Moira, Carma e Beatriz.

Simbolicamente, António passa a habitar a Loucura: “uma ‘Folie’ de inspiração francesa, um desses intrincados pavilhões cheios de falsas saídas e efeitos ilusórios com que a velha nobreza espicaçava os sentidos…” (pag.75). Ao longo dos seus dias, António apercebe-se que se sente continuamente torpe e dormente. A certa altura, Carma mostra-lhe uma plantação onde crescem Nepentes, “essa bebida mágica a que os antigos gregos recorriam, se queriam afastar a tristeza” (pag.95). Na mesma plantação cresce ainda o Soma. Sobre o Soma, Aldous Huxley, citado no pórtico desta novela, afirma que aos bebedores “os seus corações enchiam-se de coragem, de alegria e de entusiasmo, os seus espíritos enchiam-se de lucidez” (pag.7), apesar de ser uma droga “tão perigosa que até o grande deus dos céus, Indra, adoecia às vezes, por tê-la bebido.” (pag.7).
A narrativa culmina com a experiência de António com o Soma.
O que me parece ficar claro com os acontecimentos do Pontão é o quotidiano de António que se vai tornando gradualmente mais arcaico, ao ponto da total selvajaria. Os perigos dessa vida, no entanto, só se tornam claros para António depois do Soma. E é aí que Hélia nos coloca perante uma surpreendente situação: a da impossibilidade de recuar.
Nesta história há um certo timbre de fatalidade, quase de predestinação, o que nos faz sentir que António é uma espécie de homem encurralado num total desespero cuja resolução lhe escapa. Se tentarmos analisar a facilidade com que ele se torna dependente dessas vidas mais arcaicas, mais desorganizadas, poderemos deparar-nos com esta interessante questão: a de que António atravessava um vazio na sua vida vulgar, talvez por causa dos resíduos deixados pelos seus valores antigos. Só isso o tornou dependente de situações precárias e quase desumanas, mas que estão de acordo com os seus ideais. E se trouxermos de novo o texto de Platão, notemos que, nele, a vida realmente precária é a da Caverna, pelo menos à luz da nossa sociedade. Se partir do princípio que, ao criar um paralelismo entre os dois textos, a Caverna corresponde à vida de António antes de conhecer Teresa-Bárbara, então essa é a vida verdadeiramente precária: a que não coincide com os valores pessoais.
E também não consigo evitar perguntar-me até que ponto, apesar do Soma surgir só no final da narrativa, não há neste livro uma profunda dependência, como se determinado tipo de vida não fosse, de certa maneira, uma droga.
A escrita propriamente dita está de acordo com o imaginário fantasista de Hélia Correia. Ainda que aqui tudo pareça mais ligado a um universo urbano ou a assuntos mais facilmente associados a um espaço urbano, a força telúrica que brota nos personagens e nas suas relações e as descrições quase grotescas traçam facilmente a ponte para as restantes histórias de Hélia. É também uma escrita com algo de viciante, que nos dá a vontade de ler mais e mais e que talvez seja impulsionada pela estrutura de capítulos curtos e sem desperdícios de tempo com detalhes irrelevantes.
Mais ainda, a escrita de Hélia Correia tem esse poder de repercutir dentro de nós, perpetuando a história, mesmo depois de terminada.

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