Yvette K. Centeno tem, desde a sua estreia em 1961, sido uma das autoras mais prolíferas da literatura contemporânea. Se à primeira vista se poderia dizer que se dividiu entre a poesia, o romance, o ensaio, o teatro e a tradução, eu antes diria que Centeno juntou em si todas estas categorias. Aqui há, antes de mais nada, um universo, um mundo, uma individualidade: estamos perante uma produção que tem as suas leis, definidas e concretas, com um imaginário próprio ligado não raras vezes aos símbolos alquímicos, herméticos e maçónicos, e também uma forma muito marcada, que se prende essencialmente com questões de ritmo, de escolha minuciosa de palavras. Tudo isto talvez explique por que, no fim de contas, a escrita de Yvette K. Centeno não é uma escrita fácil. Nisto não há qualquer tipo de demérito, antes uma característica como outra qualquer. Dela disse, maldosamente, João Gaspar Simões que "não é deste nem daquele país: não é deste mundo", que nos seus romances "Há algo de esperanto, um esperanto altamente trabalhado". No entanto, aquilo que serviu a Gaspar Simões para maldizer a escrita da autora tem sido notado por críticos menos reaccionários como justamente uma das características mais individuais e fascinantes desta escrita.
E se a estreia de Centeno se deu em 1961, com a publicação de "Opus 1", em poesia, foi no ano seguinte que editou o seu primeiro romance, "Quem, Se Eu Gritar". Seguiram-se "Não Só Quem Nos Odeia" (1964), "As Palavras, Que Pena" (1972), que formavam com o primeiro uma espécie de trilogia. A novela cómica "As Muralhas", publicada em 1986 sob o pseudónimo de Barbara Escrava e a que não faltavam alguns elementos mais sérios ligados aos símbolos herméticos é uma história que, de qualquer forma, se desvia um pouco dos primeiros três romances da autora, ainda que se aproxime de alguns momentos da sua bibliografia, como poderia ser a peça de teatro "Será Deus o Dr. Freud?" (2000).
"Matriz", editado em 1988, é um romance que, sob alguns aspectos, dá continuidade ao universo de Yvette K. Centeno, mas, sob outros, não deixa de representar um certo desvio.
Explico-me: tal como acontecia nos primeiros romances, "Matriz" está cheio de símbolos facilmente associáveis à poesia, e à poesia da autora, e não só os símbolos, como a própria linguagem, mostram um conhecimento dos processos mais característicos da poesia, eles representam uma maneira de olhar para o mundo. A questão do ritmo não é alheia à da poesia, mas vale também por si só, uma vez que, em certos trechos do texto é fácil sentir como as palavras vão ganhando uma musicalidade própria, e não é difícil lembrarmo-nos que foi justamente esse ritmo que levou a autora a manter uma série de citações na sua língua original em "As Palavras, Que Pena". Portanto, como vemos, nalgumas questões formais, este continua a ser um romance em que facilmente reconhecemos a voz de Yvette K. Centeno.
Falemos agora do desvio. "Matriz" propõe-se a uma tarefa nada fácil. O que percebemos após algumas páginas, é que não estamos aqui só a ler a história de "Matriz". A construção do romance, o lugar que tem na vida da sua autora e dos que a rodeiam são igualmente parte desta arquitectura.
Imaginemos o projecto de um edifício, primeiro como desenho que sai das mãos de um arquitecto. Depois, o edifício está pronto, e é possível observar no real aquilo que estava no desenho. No entanto, todas as técnicas de construção e de engenharia são mais do que partes integrantes da realização desse desenho: elas tornam-no possível.
É exactamente isto que se passa com "Matriz". Assim sendo, a história constrói-se e nela, vemos também essa construção, passamos a ter uma noção das dúvidas, dos conceitos, dos objectivos e até da leitura que a escritora tem daquilo que escreve. Por isso, neste livro não faltam aforismos, referências culturais, e até referências biográficas, como por exemplo à publicação do primeiro romance, há 26 anos atrás. Este romance é definido pela sua autora como "Narrativa dialogada? Ficção sem descrições, sem personagens-tipo, sem fio regular, sem desenvolvimento" (pag.44). E é esta outra das questões que importa referir: é que "Matriz" vem colocar em causa o objectivo do livro, da prosa; um pouco aquilo que num estilo completamente diferente Maria Gabriela Llansol fez com os seus romances.
A verdade é que é pouco relevante se "Matriz" é um romance. É de facto uma narrativa, que cruza em si a poesia, o romance, o diário, o ensaio, a análise, a filosofia, o aforismo. Portanto, o que interessa é saber se o faz bem. E parece-me que sim. Note-se que esta junção de formas tem toda a probabilidade de resultar mal: poderia ser excessivo, confuso, aborrecido, inconsequente, pretensioso e desregrado. De tudo isto, "Matriz" será apenas um pouco confuso, nalguns dos seus fragmentos: não é o tipo de livro que se possa ler enquanto se ouve música ou se espera por um amigo no café. Requer atenção para ser plenamente entendendido. E dada a mestria, quase obcessiva com que está articulado, a verdade é que este é um romance que nos dá aquele insight sobre o processo criativo da sua autora, e levanta toda a sorte de questões relativas à escrita, ao romance, à leitura, à literatura, aos leitores e à crítica.
Com isto, podemos voltar àquilo que afirmei no início deste texto: é que Yvette K. Centeno não se divide entre géneros, reúne em si os diferentes géneros. O resultado é que os seus romances são verdadeiros momentos culturais, que questionam tudo aquilo que constitui esse mundo a que chamam "literatura", penetram no desconhecido, buscam respostas ou possibilidades.
E mais interessante ainda é que eu tenha lido este livro vinte e dois anos depois de ele ter sido publicado e mesmo assim, tanto do que ali se lê tem ainda completo sentido hoje. Porque ser-se bom é já muito bom, mas resistir-se ao tempo é melhor. E estes livros aí estão, sem envelhecer.
1 comentário:
Amigo,
Que prazer encontrar alguém que nos lê assim!
Se me der a sua morada será um prazer enviar-lhe o meu último livro Do Longe e do Perto
Eis o meu e-mail:
yvettecenteno@gmail.come outra vez obrigada.
Quando se escreve não se sabe para quem, é mais uma coisa pessoal, íntima; mas afinal os livros fazem os seus caminhos e isso é maravilhoso!
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