domingo, 17 de outubro de 2010

Luísa Dacosta: Corpo Recusado

EXERCÍCIOS DA (CRUEL) REALIDADE




Ao longo dos últimos cinquenta e cinco anos, a escrita de Luísa Dacosta tem-nos dado conta de um imaginário original e coeso que soube fazer o melhor uso dos ensinamentos da prosa na linha de Eça e Aquilino e de uma linguagem a um tempo simples, densa e apaixonante.




Corpo Recusado” (ed. Figueirinhas), volume de contos que surge em 1985 e até hoje nunca conheceu reedição, surge trinta anos depois da estreia literária da autora, em 1955 com um outro volume de contos, “Província” (ed. Minerva, reed. Figueirinhas, 1984). A bibliografia que preenche estes trinta anos de diferença inclui notas de leitura, antologias literárias, livros infantis, ensaios e um livro de poemas. Na área da ficção, que adopta maioritariamente a crónica e o conto, dera apenas à estampa mais dois livros: “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” (ed. Portugália, 1969, reed. Figueirinhas, 1983) e “A-Ver-o-Mar” (ed. Figueirinhas, 1981).
Se ao fim de trinta anos Luísa Dacosta publicara apenas quatro livros de ficção, talvez tenha interesse pensar o porquê desse espaçamento tão grande, qual a necessidade que leva os seus livros a demorarem tanto.
“Corpo Recusado” pode muito bem explicar porquê. Neste livro é muito evidente todo um cuidado de construção, de organização: não só temática mas também de linguagem, obedecendo o conjunto a uma espécie de fio condutor. Por isso mesmo “Corpo Recusado” nos parece ter uma respiração tão evidente e, apesar de este ser um livro de contos- textos em si auto-suficientes e com estrutura autónoma- a sua sequência está longe de ser gratuita, seguindo ela mesma um percurso lógico, que algo tem a ver com a ordem da vida.
Visto no contexto da bibliografia, este livro consegue facilmente mostrar-nos que tudo o que é humano é eterno. E as preocupações de Luísa Dacosta sempre foram acima de tudo humanas: no sentido em que o ser humano, com os seus complexos esquemas psíquicos, emocionais e políticos, foi sempre o assunto central desta obra. E um assunto inesgotável, portanto.
Assim sendo, não deve causar estranheza que, ao lermos nestes contos sobre a mudança da província para a cidade, sobre a traição, sobre a solidão, sobre a memória, ainda descubramos algo de realmente novo.

Não será por acaso que os primeiros dois contos deste livro se referem à relação entre duas pessoas: se em “Antecipação de Outono” sentimos uma certa tensão entre os personagens, “Exercícios de Imaginação”, escrito inteiramente em diálogo, termina com a seguinte ideia

_Ambos temos o poder da destruição, um de nós o fará nascer.
_Tu?
_Tu.
(pag.33)

Após este final premonitório e desencantado, em “Reflexos na Água” encontramos a solidão, para no conto que dá título à recolha encontrarmos já um frio abandono. “Corpo Recusado”, o conto, será dos textos mais desoladores e pungentes da prosa portuguesa. O que lemos nele é um retrato implacável da solidão de uma mulher, recolhida às suas memórias, único e ténue fio que ainda a une à vida e ao mundo, um mundo onde não há "Nem mais ninguém nem mais nada" (pag.45).
Os restantes contos, oscilando entre relatos mais íntimos, onde um pendor profundamente estético serve, no fundo, a descrição dos sentimentos, e registos do real e do quotidiano onde percebemos esse olhar atento e incisivo que é o de Luísa Dacosta, há algo de comum: a ideia da solidão. E esta ideia surge-nos não da forma mais imediatista, que seria a de nos apresentar personagens isoladas: pelo contrário, Luísa Dacosta prefere mostrar-nos pessoas que frequentemente estão rodeadas de outras: é nessas pessoas que a escritora opera uma espécie de arqueologia íntima, mostrando-nos como é na intimidade que uma pessoa realmente tem uma dimensão do quão sozinha está na vida.
É a esta arqueologia que devemos contos com o sarcasmo impiedoso de “Infidelidades, Pulseiras e Agências de Viagens” ou “O Bom Nome das Famílias”; bem como outros, cuja sinceridade, tão drástica e tão bela, nos fere, como “Na Biblioteca, Com Rosto Desconhecido”, “Notícia no Jornal de Amanhã” ou “_Até Segunda! Bom Fim-de-Semana”.
Mais ainda, em termos de organização, penso ser de referir uma característica que me parece presente em todos os livros de Luísa Dacosta: a questão da linguagem. Ela é um dos elementos que mais decisivo se torna na respiração dos livros da autora: note-se que encontramos aqui tanto contos de registo mais ligado ao real quotidiano e outras de um maior relevo para a exploração do mundo interior das personagens. Isso define muito a estrutura deste livro. Ele nunca se torna aborrecido porque sabe intercalar esses dois tipos de linguagens.
Mas esses momentos, como “Angústia” ou “Oceanos Interiores”, bem como o prefácio, “Palavras e Mito”, fazem mais do que alterar o ritmo do livro. Eles relembram-nos que Luísa Dacosta não abdica de uma linguagem poética e densa e que esta linguagem é precisamente aquilo que a demarca da prosa vulgarizada.
Falta-me ainda referir a questão da mulher. “Corpo Recusado” vem confirmar que as preocupações feministas não passaram ao lado de Luísa Dacosta. Não lemos nestas crónicas qualquer tipo de benevolência, mas sim uma incisiva denúncia das diferenças que ainda existem entre homens e mulheres.
O maior defeito de “Corpo Recusado” será provavelmente nunca ter sido reeditado, desde há 25 anos. Mas isso diz mais do mercado livreiro português do que da escrita de Luísa Dacosta.

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