Não menos do que quarenta e um anos nos separam de “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu”, segunda incursão de Luísa Dacosta no domínio do conto, que, em 1969 sucede a “Província”, a estreia em 1955. Editado pela Portugália, e reeditado pela Figueirinhas em 1983, este volume poderá muito bem ser um elo decisivo no percurso da autora. Acima de tudo porque é ele quem mais toma a génese de “Província” e a transporta para outros espaços e outras temáticas, sendo portanto uma espécie de charneira.
“Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” abre com “Para Um Retrato”, um pequeno texto de carácter intimista pouco ou nada divergente do poema em prosa, que introduz a leitura:
Não foste tu a lançar a aliança de oiro, rito que deveria garantir-me a felicidade para todo o sempre, na água do meu primeiro banho. Já então estavas morta.
(pag.9, 2ª ed.)
É de um luto, mas principalmente de uma ausência que estamos a tratar, então. E a forma de chegar a um discurso sobre a ausência parece, neste livro, ser o retrato. Não necessariamente um retrato fotográfico- ainda que encontremos alguns- mas o retrato construido com palavras.
O prefácio é imediatamente uma boa síntese da ideia do tipo de retrato que iremos encontrar neste livro. Como tem vindo a acontecer com todos os livros de Luísa Dacosta, este prefácio demonstra uma enorme carga poética, pela linguagem e pela situação descrita; mas faz mais do que isso: dá-nos uma espécie de localização da sua narradora em termos espaciais e emocionais e dá-nos uma forte noção do movimento que esta escrita assume: ela faz uma espécie de travelling pela paisagem geral e, em certos momentos, detém-se; pára numa espécie de close-up para observar alguém: acima de tudo alguém, pois ainda que Luísa Dacosta não deixe de criar ambientes e paisagens, é acima de tudo nas pessoas que se fixa.
Portanto, além de nos mostrar uma espécie de viagem pela cidade, onde, se olhássemos com atenção, poderíamos encontrar estas pessoas- os “retratados” nos contos- o Prefácio mostra-nos também qual o movimento que a autora faz sobre os retratos: a primeira observação, geral e mais vaga; e um olhar depois mais atento e penetrante.
A maioria destes contos coloca-nos na cidade de Lisboa, a ser vivida não pelo seu lado turístico ou monumental, mas do lado do habitante: um habitante que não raras vezes dá por si mesmo “perdido” e atolado de dificuldades que o sufocam e o fazem enfrentar a grande solidão que é além de dolorosa, irresolúvel e, de certa forma, fatal.
Estando a falar de um livro editado em 1969 e com as características que aponto no parágrafo anterior, será talvez oportuno fazer um pequeno parêntesis para reflectir sobre se se pode ou não falar de neo-realismo a propósito de Luísa Dacosta. Se é sabido que, historicamente, o neo-realismo era “a arte ao serviço do povo”, está visto que tal ideologia várias vezes serviu de móbil a projectos que eram mais partidários do que literários- o rebentar do 25 de Abril, após alguns anos de entusiasmo, não foi parco em mostrar-nos o desaparecimento de muitos “escritores”, bem como o envelhecimento precoce de muitos livros. É interessante constatar que Luísa Dacosta publica o primeiro livro em 1955, sete anos depois da estreia de dois dos mais pertinentes percursos da literatura portuguesa, curiosamente de duas mulheres: refiro-me a Agustina Bessa-Luís e a Ilse Losa, ambas iniciadas em 1948, com “Mundo Fechado” e “O Mundo em Que Vivi”, respectivamente. Com ambas e com Luísa Dacosta passa-se algo de muito parecido (Ainda que as respectivas obras se distingam consideravelmente.): há nelas um olhar profundamente desencantado e por vezes até miserabilista que poderia aproximá-las do neo-realismo. Mas acontece que o desencanto nestas mulheres nada tem de panfletário: debruçam-se sobre problemas humanos, intemporais e imutáveis- ou quase imutáveis-, não sendo, portanto, discursos de defesa e elogio de classes desfavorecidas –podem contê-los, mas não fazem disso motivação- mas sim sinais de uma sociedade em urgência de reformulação.
Estamos, portanto, perante um olhar que é mais político do que partidário, como víamos acontecer com outro caso, também de uma mulher: o de Irene Lisboa. Para que fique registado, não estou aqui a tentar criar algum tipo de manifesto de girl-power, mas a expor um ponto de vista que é o meu –que até sou homem- e que considero, para todos os efeitos, isento que preconceitos sexistas.
Quis explicitar esse lado –o social –da obra de Luísa Dacosta, para que não pareça estranho que, neste livro (Bem como noutros da autora que não tenho agora sob o microscópio.), encontremos relatos quer de pessoas que vivem numa quase miséria, quer pessoas da alta burguesia. Não se trata, reafirmo, de querer evidenciar diferenças de vida entre classes sociais. Pelo contrário, Luísa Dacosta mostra-nos como todas estas pessoas, independentemente de tudo, partilham revoltas e frustrações, arrastando-se por uma Lisboa que sorri aos turistas mas afoga o seu habitante. Se neste aspecto quisermos encontrar antepassados próximos, refiro dois, desta vez e por acaso, homens: Cesário Verde e Fernando Pessoa.
Separações, zangas, solidão, ausência, traições, destinos tristes e, acima de tudo, a impossibilidade de controlar a vida, pautam estes contos. A resignação e o silenciar dos dramas pessoais são, por isso, a situação mais frequentes. Estas pessoas vivem na tristeza de serem capazes de comunicar totalmente consigo mesmas e de perceberem que os que lhes são mais próximos não conseguem entrar completamente nos seus sentimentos e muitas vezes nem com isso se interessam, havendo um irreversível silêncio entre as pessoas.
É neste ambiente que, na maioria das vezes, surge o retrato. Por exemplo no conto “Burguesia”:
“Pegou na moldurinha clara e sorriu ao seu retrato de adolescente. (…) Mas de repente ficou presa nos olhos mortiços do seu rosto anguloso, actual (…)”
(pags. 93-94, 2ª ed.)
Interessa este caso em particular para explicitar outra ideia que me parece essencial sobre este volume: se o título nos aponta para a ideia de retrato, quase nos parecendo legenda de um; “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” é também testemunho da passagem do tempo, através da passagem de gerações. Neste livro, e particularmente no conto “Burguesia”, o tempo fica fixo na superfície da fotografia, mas observá-la é comprovar a dolorosa passagem desse tempo. E se, nesse conto, encontramos a dor de uma personagem que verifica que envelheceu, o último conto “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” vai definitivamente mais longe, criando um jogo em que o tempo ora se anula pela observação dos retratos, ora se faz sentir evidenciando o desaparecimento de duas das retratadas, culminando o conto num pungente e inesperado final.
Se houve “grupo” mais defendido por Luísa Dacosta foram as mulheres. São elas as personagens centrais da maioria dos contos, e aqui as encontramos como figuras brutalizadas física e/ou psicologicamente, mas também como seres de uma outra capacidade de expressão de sentimentos, possivelmente mais sincera. “Maria Vai, Maria Vem, Romance de Mulher-a-Dias” é um excelente exemplo disso, bem como um conto perturbador- que algo tem de crónica- e que é um dos mais pungentes textos da obra de Luísa Dacosta.
Que nestes contos há frequentes incursões da poesia e da crónica, parece-me evidente. Mas acima de tudo parece-me evidente que a leitura de “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” confirma a capacidade singular de Luísa Dacosta de nos contar histórias que sempre parecem tão cruelmente reais, mas de as contar de uma forma bela e arrebatadora, muito capaz de nos marcar e de nos maravilhar.
3 comentários:
Luisa Dacosta é com ternura e saudades que pergunta por esta srª, eu vivi e passei alguma da minha infância, no meio desta família,em vila real, lembro perfeitamente da vovó do avó , da Nucha e todos.eu sou a filha da empregada Maria, a mais nova das filhas da empregada a Carlotinha,que passava os dias ,no balouço do quintal a espera do lanche da vovó.gostaria de obter este livro ,como gostaria de rever de novo está bela família, será que me podem ajudar? agradecia o meu contacto carlotapassos@gmail.com
Cara Maria,
infelizmente, este livro de Luísa Dacosta já se encontra esgotado nas suas duas edições, tanto a de 1969 como a de 1983. Há uns tempos, a Asa tinha ideias de editar a obra completa, mas parece que afinal isso não vai para a frente. É pena, porque se trata de um grande livro. Talvez o consiga em alfarrabistas.
Boa sorte!
já consegui comprar obrigado
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