sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Armando Silva Carvalho: Anthero, Areia & Água

CONDENADO À CABEÇA

Uma vez que "Lírica Consumível" (ed. Ulisseia), livro de estreia de Armando Silva Carvalho, só em 1965 veio a lume, é frequente que o autor seja conotado com o movimento Poesia 61. Se partirmos do princípio que tal movimento representava realmente o que de mais original se fazia na poesia portuguesa; a meu ver só dois autores "exteriores" conseguem a mesma modernidade: Yvette K. Centeno e Armando Silva Carvalho.
Se recentemente o segundo voltou a reunir a obra poética, parece-me interessante pois, neste livro, sentimos que lemos algo de realmente novo.


Antero, aliás Anthero de Quental, figura primeira deste livro, já foi objecto de trabalhos técnicos e académicos, bem como de trabalhos literários. Destes últimos, destaco "Antero-Vila do Conde" (1978, ed. &etc) de Nuno Júdice por ser o que tenho mais presente.
No entanto, Armando Silva Carvalho apresenta-nos neste livro uma das visões mais ambiciosas, originais e certeiras alguma vez feitas sobre Quental. "Anthero, Areia & Água" é um livro de uma absoluta maturidade- que é a principal razão por que a ambição da ideia não é traída pela execução.
É pertinente, para entender a génese destes poemas, analisar o primeiro, que dá título ao livro. Nele, imediatamente conhecemos o personagem (Ou a figura?) e o vemos dividido em duas realidades diferentes. Esta divisão pauta a grande maioria dos poemas: entre água e areia, poesia e pensamento, passado e presente, vida e morte, o eu e os outros.
Mas a divisão essencial do poema introdutório, que evidentemente se estende a todos os outros, é a divisão entre Anthero de Quental e o próprio Armando Silva Carvalho:

Por mim, pois sou eu que estou aqui.
(pag.7)


ou seja, o autor assume que este livro é uma leitura estritamente pessoal da obra e da pessoa de Anthero de Quental, afastando-se assim definitivamente da intenção de recriar historicamente. Este é, na verdade, o Anthero de Armando Silva Carvalho, e eis por que a divisão que acima enunciei não vai, neste caso, no sentido de uma oposição, mas da junção de dois carácteres diversos.
No corpo do livro, uma das ideias essenciais é a do tempo. Partindo do princípio de que "Falta futuro a quem tem no presente as ambições/ Passadas" (pag.18), o autor avalia a influência de Anthero noutros poetas e a de outros poetas em Anthero, de uma perspectiva não-académica a que não falta subtileza e uma certa ironia: é um olhar analítico e não raras vezes surpreendente sobre alguns nomes que nos são familiares. Com referências mais directas e menos directas, encontramos aqui Fernando Pessoa, Herberto Helder, Jorge de Sena, Eça de Queiroz, Vitorino Nemésio, Bulhão Pato, Camilo Pessanha, João de Deus, Mário de Sá-Carneiro, Alexandre Herculano, Cesário Verde, Dostoiewski, Baudelaire e o "Sermão do Fogo".
Na justaposição de tempos que é consequentemente operada, percebemos que o tempo é outra questão essencial em "Anthero, Areia & Água". Este Anthero frequentemente ressuscita, dando-nos indicações sobre a sua obra e recebendo-as também em relação ao destino póstumo que a sua obra teve. É portanto por isto que Anthero deixa esta interessante mensagem que refere a um tempo a escrita e a morte:

Puxem por mim até que o tempo
Seja de todos, ó civis, históricos poetas.
(...)
Dizei-me, ó enfermiços, que mais quereis de mim
Senão doença que cura outra doença?
(pags. 30,31)

Parto dos últimos dois versos para outra questão que me parece muito relevante neste livro: o traçar de uma espécie de perfil pessoal de Anthero. Um perfil que frequentemente nos dá indícios de doença (Sem que nesta haja algo de necessariamente pejorativo.) e de desencontro com a vida pessoal e social. Pesam nisto referências à Ilha deixada, à família de Anthero aquando dos seus últimos dias, bem como as realidades sociais da época, de que o poema "A Liquidação Temível do Passado" é um belíssimo testemunho.
Mas não só. Para este adoecer interior contribui em muito a questão do pensamento. Ele surge como algo de complexo e decisivo para a vida e para a morte de Anthero, um verdadeiro "condenado à cabeça" (pag.65) que, no derradeiro momento dispara em si mesmo "dois tiros/ Filósofos." (pag.60).


O pensamento de Anthero parece ser um foco de grande interesse para Armando Silva Carvalho- é, parece-me, um dos elementos mais essenciais a esta construção-, tanto como a poesia. Não ao acaso, lemos no final do livro que estes poemas foram escritos a partir da leitura das cartas de Anthero. Esta visão do pensamento não hesita em assumi-lo drástico, forte e por vezes contraditório. Relembro a peça de teatro de Nuno Júdice, que analisa também as cartas de Anthero, mas de uma perspectiva excessivamente fria, demasiado empenhada emm tornar o pensamento do poeta claro e organizado.
Este Anthero parece-me mais humano. Perturba-se, engana-se, mas nunca pára de pensar. Nesta continuidade alucinante, interessa falar da escrita de Armando Silva Carvalho. Sabemos que ele nunca prescindiu de um certo lirismo, e o realismo dos seus versos surgiu sempre a par com uma linguagem densa e pungente. Neste livro, tudo isso é retomado. Mas, de certa maneira, o poeta parece ter atingido um pico de capacidade lírica. E, portanto, "Anthero, Areia & Água" nunca nos parece nem frio nem imediato, conseguindo fazer com extrema eficácia a carga analítica com uma comunicação forte, de imagens belas e inesperadas. A ironia, sempre apontada como uma das mais importantes características desta escrita, parece tornar-se agora mais incisiva ainda, e Anthero evidencia-nos uma constante crítica à sociedade, a do seu tempo e a do nosso e, mais importante, mostra-nos que a sua obra resistiu ao tempo e às mudanças.
Esse é um dos mais assinaláveis logros deste livro: impede a todo o momento a cristalização da obra de Anthero, tornando-a um organismo vivo.
E há, claro, uma rebeldia muitíssimo saudável neste Anthero. A certa altura, Anthero deixa de ser personagem ou poeta. Torna-se ele mesmo o próprio poema, com tudo o que este deve conter de sentimentos, pensamentos e sentidos políticos.
E se, então, "Anthero, Areia & Água" é evidentemente um grande livro, parece-me que é também um dos pontos mais altos da obra de Armando Silva Carvalho.

1 comentário:

Graça Martins disse...

Gostei muito da tua análise/leitura do Armando Silva Carvalho sobreo seu livro Anthero, Areia & Agua aliás acho o título do livro fantástico.
A personalidade de Antero é fascinante e fascina quem também é um criativo. O pensamento é sempre a companhia que tortura, ilumina, cria vida e mata.