A par de um
percurso literário bastante intensivo, em particular na poesia, Vasco Graça
Moura tem sido conhecido também, ou nalguns casos principalmente, pela sua
participação na política portuguesa e pelo seu trabalho ligado a várias
instituições como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a Gulbenkian e, mais
recentemente, o CCB, entre outras.
Da sua
bibliografia, poder-se-iam destacar vários títulos, mas a atenção, por norma,
recai sobre livros como ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’ (1987), ‘Uma Carta no
Inverno’ (1997), ‘Poemas Com Pessoas’ (1997) ou ‘Laocoonte, Rimas Várias,
Andamentos Graves’ (2005), livros mais recentes para um autor que publica os
seus primeiros livros a partir do princípio da década de 60.
Uma leitura
de livros mais recentes de Vasco Graça Moura revela-nos alguns fios condutores
na poesia do autor: uma reinvenção das estruturas clássicas, a utilização
simultânea de léxicos eruditos e quotidianos, o diálogo constante com as artes
plásticas e a música, o rigor rítmico, a preocupação política e um jogo
obsessivo com o real, que passa pela sua transformação, pela sua reinvenção e
pelo processo denso e complexo que liga o real ao poético.
Em 2013
assinalam-se os 50 anos de produção literária de Vasco Graça Moura, assinalados
tanto pela edição em dois volumes da sua ‘Poesia Reunida’ como pelo livro de
ensaios ‘Discursos Vários Poéticos’. Será uma boa ocasião, talvez, para
revisitar o primeiro livro do autor, ‘Modo Mudando’, cuja primeira edição, do
autor, de 1963, é recordada num dos melhores poemas de ‘O Concerto Campestre’
(1993).
‘Modo
Mudando’ é um conjunto de 40 poemas (38 dos quais estão presentes no primeiro
volume da ‘Poesia Reunida’.) que abrem com uma citação de T.S. Elliot:
So here I am (…)
(…)
Trying to learn to use words (…)
ideia que é
talvez tutelar neste primeiro livro. Tutelar porque, dela, se podem extrair
dois conceitos básicos, ambos muito presentes nestes poemas: por um lado as
palavras, enquanto elementos específicos de valor próprio, e, por outro, as
experimentações com esses elementos e com os seus valores.
Os poemas,
ora longos e torrenciais, ora breves e contidos, contêm imagens fortes e
contundentes que se conseguem, essencialmente, pelo isolamento de certas
palavras, que ficam como que suspensas num verso, ganhando significação própria
e, com ela, um poder transformador sobre a imagem de que falam.
imprevista magnética
elástica
como novelos
surgiste com novo ser
do sábio jogo dos membros
lemos em a contorcionista. Outro exemplo deste
isolamento transformador pode encontrar-se em tu, entre poemas:
refluem como alíseos ou gaivotas
esvoaçam como folhas ou cabelos
lisos ovais
a seixos
se assemelham
Neste
aspecto, a poesia de Graça Moura nos pareceria, em 1963, perfeitamente alinhada
com as experiências do ‘Poesia 61’, bem como com as experiências que, na década
de 50, surgiram com o Surrealismo e a Poesia Concreta. No soneto nova meditação sobre a palavra,
encontramos esta ideia que pode confirmar essa herança
assim a palavra se prestasse
ao jade ao jogo
ao jugo de uma toda
arte poética e nunca ripostasse
em golpes repentinos de judoka
assim nunca o poema se traísse
na trama aleatória de uma aposta
perdida no seu hábil mecanismo
traria o juro ao artesão que o
monta
trata-se, de facto, de uma herança e não de uma
filiação. Isto porque a poesia de Graça Moura, nesta altura ainda em fase
inicial, parece aceitar uma certa estranheza e a justaposição de imagens e
linguagens aparentemente opostas, mas sabe evitar os excessos em que muitas
vezes caíram as experiências da poesia Surrealista e, talvez mais ainda, da
Concreta. Ao longo de ‘Modo Mudando’ sente-se vários ecos mais eruditos, não só
através da reincidência na forma do soneto, como também numa série de pequenos
detalhes em que há uma espécie de piscar de olhos a um certo classicismo
(Exemplo disso são poemas como para a
poesia da água guardada, still life and
da vinci ou mordaz mordendo.).
Este conhecimento profundo da história da poesia, que haveria de proporcionar
livros tão impressionantes como ‘Quatro Sextinas’ (1973), as ‘Sequências
Regulares’ (1978) ou os ‘Sonetos Familiares’ (1995) só para citar os exemplos
mais evidentes, é precisamente aquilo que impede Vasco Graça Moura de, nestes
poemas, se deixar levar pelo erro do non-sense
abstracto que votou ao fracasso as experiências de vários autores nas correntes
já citadas.
Anos depois deste livro, em um cão para pompeia do livro ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’, diz o
autor, com refrescante ironia:
«você é um cerebral», disse-me cloé,
flava e enervada.
«sim», disse-lhe eu com
prudência, «mas há tantos,
e o amor e a morte sempre foram
pensáveis».
e é
interessante constatar como, no primeiro livro, estes princípios são já
notórios. Já nestes primeiros poemas, Graça Moura, ainda que por vezes
apaixonado, se revela também extremamente cerebral e, diga-se, também bastante
irónico por vezes. Não falta a ‘Modo Mudando’ uma carga emotiva (Leia-se um
poema como substância.), mas a todo o
momento ressalta dos poemas uma carga intelectualizada, muitas vezes conseguida
através da aspereza das próprias palavras que tornam a leitura quase agreste, e
também uma carga algo sarcástica, uma espécie de desvio em relação àquela
emotividade, quando esta parece prestes a aproximar-se do sentimentalismo (O
caso do poema to a murdered girl é um
dos mais claros.).
Para
finalizar esta nota, penso que seria interessante pensar no poema inaugural de
Graça Moura, chamado precisamente poema,
silenciosamente aproximo-me do
poema
circundo-o duma palavra faço nela
uma incisão deliberada
e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique
de resina ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce ramifica-se
comovidamente do cerne para a
casca
inteiro liso
adstringente sinuoso
mas
todo o poema é perfeitamente
impuro
funciona
como uma espécie de arte poética cujos princípios são ainda os da poesia do
autor, mesmo da mais actual que, afinal, tão distante parece estar deste
primeiro livro. No entanto, nestes poucos versos, está presente a ligação do
real com a escrita poética, a infecção que esta sofre e que vai ampliá-la, e
essa impureza que faz parte do poema e cujos sentidos parecem variar de texto
para texto mas que, no geral, parece ser um símbolo de como o poema se encontra
entre duas realidades: uma a do real propriamente dito e outra a do real
poético. Impuro, o poema pode ser, então, o lugar entre os dois, que nos permite
oscilar de um para o outro. Não nos esqueçamos que, ao infectar, a ferida que
vem do poema frutifica, enriquece-nos.