O percurso de Rui Lage tem-se traçado um tanto ao largo das tendências da década em que começa a publicar. Depois de um primeiro livro de sonetos, estrutura canónica que abandonou posteriormente, Rui Lage marcou-se por uma poesia depurada, descritiva, simples e fixa no poder da imagem e no captar de um momento que, não sendo fotográfico, é breve, mas significativo. Disto é um excelente exemplo "Revólver" (2006, ed. Quasi), terceiro livro do autor e definitivamente um dos mais conseguidos a todos os níveis.
"Corvo" (ed. Quasi), editado em 2008, vinha trazer-nos poemas ligados a um universo específico, o de um Portugal rural ou quase, abalado por uma série de questões. A presença dessa ruralidade, particularmente de Trás-os-Montes na poesia de Rui Lage, existia desde o inicial "Antigo e Primeiro" (2002, ed. Quasi), e foi uma presença que, independentemente de evoluções e transformações sofridas, nunca desapareceu.
Este "Um Arraial Português" (ed. Ulisseia), editado em Abril deste ano, centra-se numa temática que está quase umbilicalmente ligada a esse universo do interior português, que tem, goste-se ou não, características muito específicas.
Particularmente, neste livro lemos sobre o chamado querido mês de Agosto, em que os emigrantes regressam à terra. Encontramos então os arraiais, a música popular, os cafés, as roulottes, os namoricos, os engates, os desacatos, enfim, toda a celebração dessa altura do ano em que o que era quase desértico se torna subitamente habitado, festivo e, à sua muito particular maneira, quase cosmopolita. Mas mais do que fazer uma mera descrição ou recriação destes eventos e destes comportamentos, Rui Lage sabe como usar tudo isto para arquitectar uma análise facetada de Portugal -e não só da província- e dos portugueses. É isso que sentimos no poema de introdução, Ultimato, onde lemos:
O país dança? Pois dance agora
ou cale-se para sempre
e decida-se depressa
enquanto a música não cessa
(p.13)
Não é, como se vê, o Portugal de um tempo qualquer que aqui está a ser falado. É este, de agora, afogado e miserável, incapaz de se decidir sobre coisa nenhuma. Que faz então este país? Prepara-se para o arraial. Esta ideia aparece subentendida ao longo de "Um Arraial Português" mas, em vez de enveredar por um discurso de insistente e excessivo rebaixamento do país que acaba por resultar pior do que melhor (A prová-lo ficam alguns textos de Jorge de Sena, de Joaquim Manuel Magalhães, etc.) por mais que até possa esse discurso ser realista; Rui Lage prefere olhar atentamente os intervenientes dessa espécie de fuga à realidade que representam as festas do emigrante, entre outras do mesmo género.
É esta uma das questões que penso ser mais pertinente neste livro. A maneira como estas pessoas são olhadas, de novo em momentos curtos e subtis, faz delas uma espécie de pequena mitologia. Não estamos perante a tentativa de criação da personagem-tipo, mas de um olhar a um tempo minucioso e vago, que torna estas personagens reconhecíveis a qualquer um que já tenha presenciado este tipo de eventos. Às descrições também não falta ironia, sem nunca, no entanto, cair no desprezo; e assim estas figuras nos surgem como uma espécie de deuses de uma religião específica. Daí a mitologia.
Talvez a esta ideia da religião específica, ou mitologia específica, não esteja de todo desenquadrada para falar de "Um Arraial Português". Isto porque, uma religião, à partida, conta com, além dos seus ídolos, com os seus rituais. E esses rituais são o momento de muitos destes poemas. O arraial em si parece representar o ritual principal, mas há também os outros ritos menores e os seus espaços, como sejam os bailes, os cafés de aldeia, as procissões, as juntas de freguesia, etc. Estas ideias, a meu ver, formam quase uma estrutura, subliminar, que se sente ao longo de todo o livro; inclusivamente na própria organização dos poemas por capítulos: os primeiros três formam uma espécie de introdução; e os três capítulos marcam os "Dias Antes do Arraial", o primeiro; e o próprio arraial, os outros dois.
É neste universo assim estruturado que encontramos, também, as ideias que estão imediatamente associadas a ele. Deles, sobressai em vários dos poemas uma espécie de desfasamento. Parece-me ser essa uma ideia crucial para entender de que gente e de que universo estamos a falar. Esse desfasamento passa, essencialmente, por uma questão cultural, mais até do que temporal ou espacial (Até porque o cultural inclui o espacial e o temporal.). Disso é exemplo As Colchas Ricas Formando Troféus:
(...)
pintam as unhas, alheias à rua
que entre nimbos e pedras levada
do adro aos metais do coreto,
com vagar de alimária
tocada de sombras hirsutas,
vai passando a trote de andor
à frente o compasso
atrás a fanfarra.
Fechadas em casas de banho
dedilham telemóveis
com destreza de pianistas.
Em vez de flores no cabelo,
auriculares.
(p.26)
Este é um exemplo desse desfasamento, entre aquilo que se passa na rua, ou seja, no lugar onde aquelas raparigas vivem, e que aponta para as tradições e os espaços ligados à província; em contraste com os actos dessas raparigas, que pintam as unhas, dedilham telemóveis e usam auriculares. Mais ainda, note-se a subtileza dos últimos dois versos, esses sim realmente sintomáticos do desfasamento, onde lemos a transformação que se dá entre essa tradição de flores no cabelo e a actualidade dos auriculares.
O mesmo acontece, por exemplo, em Vale mais um mês aqui (Que um ano lá):
Tua mãe sempre soubera
que levarias contigo o burro fiel,
a horta onde corre abundante
da tua pele o íntimo regato,
que não saberias desatar-te do laço
armado com esmero no trilho
(...)
(p.31)
mas aqui fala-se especificamente do emigrante e de uma questão que é forçosamente cultural, e que passa pela tentativa reiterada mas falhada de amputação das raízes. Neste poema, o emigrante "Na cave de um subúrbio de Paris/jaze[u] enroscado em saco-cama" (p.31), mas não foi capaz de realmente deixar o burro fiel, a horta, o "laço/armado com esmero no trilho", o que nos poderá explicar o porquê da mistificação do regresso à terra. Porque é esse momento, o do regresso à terra, que constitui a crença desta religião, se é que nestes termos se justifica realmente falar.
Outra das características que penso serem essenciais para uma leitura do quinto livro de poesia de Rui Lage, é a questão da linguagem. Acima disse que esta poesia se marcou sempre por uma linguagem depurada e simples; encadeada em estruturas de ritmo contundente.
Em "Um Arraial Português", voltamos a sentir uma grande atenção ao ritmo dos poemas, por norma escritos em versos curtos, de onde, por vezes, surge um verso um tanto maior que desconcerta. No entanto, a nível de linguagem, alguma alteração aqui se opera na escrita de Rui Lage. A linguagem continua depurada; mas desta vez surge-nos como um processo extremamente elaborado, que funde um tom coloquial com um tom muito popular. Exemplo:
(...)
Nunca lhes temi a navalha
e as promessas, terríveis,
de tripas ao sol:
ternas criaturas de raros dentes,
a soco fendidos, ou dourados,
em carroças de estrelas dormiam
(era no espelho do rio que as via
estacionadas.)
Conforta-me vê-los no recinto,
ainda que já não lhes saiba o nome
como soube de certos outrora,
a uns supondo vivos
a outros assassinados.
(p.50)
neste poema vemos nítida essa fusão que acontece entre dois registos de linguagem, onde expressões como tripas ou socos surgem com outras como fendidos, ternas criaturas de raros dentes, como soube de certos outrora. As palavras mais ligadas ao popular apontam-nos para uma oralidade descontraída, nos poemas elas vão sendo sugadas para uma linguagem claramente escrita e com notórios sinais de erudição não só nas próprias palavras, mas também na sua ordenação na frase. Ora, essa fusão só pode causar estranheza, o que muito favorece "Um Arraial Português". E, claro, há ainda que referir alguns momentos em que essa escrita erudita começa a ser versejada de uma forma que quase faz lembrar uma cantiga ligeira ou uma ladainha: nesses momentos, essa estranheza vai ao extremo, e deixa-nos a certeza de estarmos realmente perante uma poesia em que tudo está verdadeiramente pensado.
Isto porque, para criar um ambiente, uma espécie de argumento credível, Rui Lage soube usar com inteligência e sensibilidade todas as cambiantes que a poesia exige, no percurso que vai do conteúdo à linguagem. Essa é a razão pela qual terminamos "Um Arraial Português" com a sensação de que poderá muito bem ser o melhor livro deste poeta.
2 comentários:
Passado o deslumbramento da entrada na Europa, repara-se agora na contaminação desses valores. Nos anos 90 quando Isabel de Sá estava a ver o NAUFRÁGIO, a intelectualidade crítica achou-a reaccionárioa ou, então, com ideologia comunista. Agora que o olhar já não pode fugir às evidências gritantes, só AGORA, para os "deslumbrados",o poema "O NEGRO PÓ DA CIDADE" será entendido...
"Os hoteis/ de luxo repletos de turistas/da Comunidade. Vestem calções,/calçam chinelos de piscina, sentem-se/ à vontade na pátria de Camões."
Outro fragmento do poema ENSAIO GERAL:
"Civilização e barbárie são dois partidos./ O ódio, a rivalidade estão na origem/da tragédia. Imprevisíveis as consequências/das lutas tribais em todos/os cantos do planeta."
Ambos os fragmentos do livro Erosão de Sentimentos, 1994-1996, Editorial Caminho, Lisboa, 1997
Bom complemento.
Enviar um comentário