domingo, 24 de outubro de 2010
Obvisão do Planetário a Descoberto
sábado, 23 de outubro de 2010
Jodoigne, 4 de Maio de 1977.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Armando Silva Carvalho: Anthero, Areia & Água
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Masters of Horror: Pick Me Up de Larry Cohen (1x11)
Luísa Dacosta: Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu
Não menos do que quarenta e um anos nos separam de “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu”, segunda incursão de Luísa Dacosta no domínio do conto, que, em 1969 sucede a “Província”, a estreia em 1955. Editado pela Portugália, e reeditado pela Figueirinhas em 1983, este volume poderá muito bem ser um elo decisivo no percurso da autora. Acima de tudo porque é ele quem mais toma a génese de “Província” e a transporta para outros espaços e outras temáticas, sendo portanto uma espécie de charneira.
“Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” abre com “Para Um Retrato”, um pequeno texto de carácter intimista pouco ou nada divergente do poema em prosa, que introduz a leitura:
Não foste tu a lançar a aliança de oiro, rito que deveria garantir-me a felicidade para todo o sempre, na água do meu primeiro banho. Já então estavas morta.
(pag.9, 2ª ed.)
É de um luto, mas principalmente de uma ausência que estamos a tratar, então. E a forma de chegar a um discurso sobre a ausência parece, neste livro, ser o retrato. Não necessariamente um retrato fotográfico- ainda que encontremos alguns- mas o retrato construido com palavras.
O prefácio é imediatamente uma boa síntese da ideia do tipo de retrato que iremos encontrar neste livro. Como tem vindo a acontecer com todos os livros de Luísa Dacosta, este prefácio demonstra uma enorme carga poética, pela linguagem e pela situação descrita; mas faz mais do que isso: dá-nos uma espécie de localização da sua narradora em termos espaciais e emocionais e dá-nos uma forte noção do movimento que esta escrita assume: ela faz uma espécie de travelling pela paisagem geral e, em certos momentos, detém-se; pára numa espécie de close-up para observar alguém: acima de tudo alguém, pois ainda que Luísa Dacosta não deixe de criar ambientes e paisagens, é acima de tudo nas pessoas que se fixa.
Portanto, além de nos mostrar uma espécie de viagem pela cidade, onde, se olhássemos com atenção, poderíamos encontrar estas pessoas- os “retratados” nos contos- o Prefácio mostra-nos também qual o movimento que a autora faz sobre os retratos: a primeira observação, geral e mais vaga; e um olhar depois mais atento e penetrante.
A maioria destes contos coloca-nos na cidade de Lisboa, a ser vivida não pelo seu lado turístico ou monumental, mas do lado do habitante: um habitante que não raras vezes dá por si mesmo “perdido” e atolado de dificuldades que o sufocam e o fazem enfrentar a grande solidão que é além de dolorosa, irresolúvel e, de certa forma, fatal.
Estando a falar de um livro editado em 1969 e com as características que aponto no parágrafo anterior, será talvez oportuno fazer um pequeno parêntesis para reflectir sobre se se pode ou não falar de neo-realismo a propósito de Luísa Dacosta. Se é sabido que, historicamente, o neo-realismo era “a arte ao serviço do povo”, está visto que tal ideologia várias vezes serviu de móbil a projectos que eram mais partidários do que literários- o rebentar do 25 de Abril, após alguns anos de entusiasmo, não foi parco em mostrar-nos o desaparecimento de muitos “escritores”, bem como o envelhecimento precoce de muitos livros. É interessante constatar que Luísa Dacosta publica o primeiro livro em 1955, sete anos depois da estreia de dois dos mais pertinentes percursos da literatura portuguesa, curiosamente de duas mulheres: refiro-me a Agustina Bessa-Luís e a Ilse Losa, ambas iniciadas em 1948, com “Mundo Fechado” e “O Mundo em Que Vivi”, respectivamente. Com ambas e com Luísa Dacosta passa-se algo de muito parecido (Ainda que as respectivas obras se distingam consideravelmente.): há nelas um olhar profundamente desencantado e por vezes até miserabilista que poderia aproximá-las do neo-realismo. Mas acontece que o desencanto nestas mulheres nada tem de panfletário: debruçam-se sobre problemas humanos, intemporais e imutáveis- ou quase imutáveis-, não sendo, portanto, discursos de defesa e elogio de classes desfavorecidas –podem contê-los, mas não fazem disso motivação- mas sim sinais de uma sociedade em urgência de reformulação.
Estamos, portanto, perante um olhar que é mais político do que partidário, como víamos acontecer com outro caso, também de uma mulher: o de Irene Lisboa. Para que fique registado, não estou aqui a tentar criar algum tipo de manifesto de girl-power, mas a expor um ponto de vista que é o meu –que até sou homem- e que considero, para todos os efeitos, isento que preconceitos sexistas.
Quis explicitar esse lado –o social –da obra de Luísa Dacosta, para que não pareça estranho que, neste livro (Bem como noutros da autora que não tenho agora sob o microscópio.), encontremos relatos quer de pessoas que vivem numa quase miséria, quer pessoas da alta burguesia. Não se trata, reafirmo, de querer evidenciar diferenças de vida entre classes sociais. Pelo contrário, Luísa Dacosta mostra-nos como todas estas pessoas, independentemente de tudo, partilham revoltas e frustrações, arrastando-se por uma Lisboa que sorri aos turistas mas afoga o seu habitante. Se neste aspecto quisermos encontrar antepassados próximos, refiro dois, desta vez e por acaso, homens: Cesário Verde e Fernando Pessoa.
Separações, zangas, solidão, ausência, traições, destinos tristes e, acima de tudo, a impossibilidade de controlar a vida, pautam estes contos. A resignação e o silenciar dos dramas pessoais são, por isso, a situação mais frequentes. Estas pessoas vivem na tristeza de serem capazes de comunicar totalmente consigo mesmas e de perceberem que os que lhes são mais próximos não conseguem entrar completamente nos seus sentimentos e muitas vezes nem com isso se interessam, havendo um irreversível silêncio entre as pessoas.
É neste ambiente que, na maioria das vezes, surge o retrato. Por exemplo no conto “Burguesia”:
“Pegou na moldurinha clara e sorriu ao seu retrato de adolescente. (…) Mas de repente ficou presa nos olhos mortiços do seu rosto anguloso, actual (…)”
(pags. 93-94, 2ª ed.)
Interessa este caso em particular para explicitar outra ideia que me parece essencial sobre este volume: se o título nos aponta para a ideia de retrato, quase nos parecendo legenda de um; “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” é também testemunho da passagem do tempo, através da passagem de gerações. Neste livro, e particularmente no conto “Burguesia”, o tempo fica fixo na superfície da fotografia, mas observá-la é comprovar a dolorosa passagem desse tempo. E se, nesse conto, encontramos a dor de uma personagem que verifica que envelheceu, o último conto “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” vai definitivamente mais longe, criando um jogo em que o tempo ora se anula pela observação dos retratos, ora se faz sentir evidenciando o desaparecimento de duas das retratadas, culminando o conto num pungente e inesperado final.
Se houve “grupo” mais defendido por Luísa Dacosta foram as mulheres. São elas as personagens centrais da maioria dos contos, e aqui as encontramos como figuras brutalizadas física e/ou psicologicamente, mas também como seres de uma outra capacidade de expressão de sentimentos, possivelmente mais sincera. “Maria Vai, Maria Vem, Romance de Mulher-a-Dias” é um excelente exemplo disso, bem como um conto perturbador- que algo tem de crónica- e que é um dos mais pungentes textos da obra de Luísa Dacosta.
Que nestes contos há frequentes incursões da poesia e da crónica, parece-me evidente. Mas acima de tudo parece-me evidente que a leitura de “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu” confirma a capacidade singular de Luísa Dacosta de nos contar histórias que sempre parecem tão cruelmente reais, mas de as contar de uma forma bela e arrebatadora, muito capaz de nos marcar e de nos maravilhar.
domingo, 17 de outubro de 2010
Maria Gabriela Llansol: Depois de Os Pregos
Durante onze anos não houve livro de Maria Gabriela Llansol. “Os Pregos na Erva” (ed. Portugália) editado em 1962 valeu-lhe a inclusão em várias antologias de contos e a publicação dispersa por jornais e revistas, mas só em 1973 o segundo livro viria a lume. Título genérico: “Depois de Os Pregos na Erva”; subtítulo: “E Que Não Escrevia/ Dez anos de Escrita” (ed. Da autora para Afrontamento). A explicação para a contradição suscitada pelo subtítulo surge particularmente no primeiro texto aqui apresentado, “E Que Não Escrevia”.
Ao abrir este volume encontramos, na página de rosto a indicação dos três “livros” que o constituem e respectivas datas:
Lovaina, 1968- Lovaina, 1971
E QUE NÃO ESCREVIA
Lisboa, 1964- Lovaina, 1968
UM TEXTO DECADENTE
Lisboa, 1961- Lisboa, 1963
O ESTORVO
São portanto três textos ordenados do mais recente para o mais antigo; escritos em 2, 4 e 3 anos, cobrindo realmente dez anos de escrita. Portanto não pode deixar de nos parecer estranho o subtítulo que é também título do primeiro livro.
“E Que Não Escrevia” parece ser um livro auto-biográfico (As datas, os nomes, os factos, coincidem com o que conhecemos da vida de Llansol.), mas não se trata propriamente de uma narrativa, de uma auto-biografia no sentido vulgar do termo. Este texto passa pela reconstrução obsessiva e não linear da vida da narradora, através de memórias, diários, cartas, postais, protestos e de uma relação intrínseca com o poder da imagem.
A figura central é antes de mais uma figura em constante mutação, sendo o aspecto mais evidente o do sexo, ao ponto de chegarmos a ler
“Sinto-me mal. O meu sexo acaba de ser determinado.”
(pag.51)
após várias referências a uma “irmã uterina” (Vejamos que o útero é um lugar de decisão do sexo e, em última análise, de morte e vida.) que será parte integrante dessa indefinição sexual.
As questões da sexualidade, que abrangem a figura central e a do pai, são das mais relevantes, mas a questão da morte tem também um peso decisivo, que passa do pai para a/o filho/a, já que o pai é “centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas” (pag.54), uma ideia que não é de todo estranha à obra posterior de Llansol, com particular incidência em “Um Beijo Dado Mais Tarde” (1991, ed. Rolim).
Entre a sexualidade indefinida ou ambivalente e a morte, esta criança, pois é de uma criança que se trata, escreve, embora admitindo que “sei escrever, amanhã não sei escrever” (pag.70). E, nesta difícil relação com a escrita, a criança concentra-se na pintura: na imagem, portanto. A escrita é, para todos os efeitos, algo de estranho a esta criança, é uma pertença, uma vez mais, do pai, que lhe dedicara contos, que lhe escrevia postais pedindo-lhe que respondesse- e que ouvia os seus protestos escritos. E eis aqui um dos mais interessantes aspectos de “E Que Não Escrevia”: é que a presença contínua do pai não parece expressar qualquer tipo de Complexo de Electra, mas sim uma relação que se prende essencialmente com os livros e, daí, a escrita. E isto é relevante porque, apesar desta criança assumir a pintura como vocação, ambiciona a escrita.
Esta transição dá-se quando a criança descobre na casa uma figura de braço decepado. Se se podia dizer que o braço pode representar a sexualidade, é certo que também pode representar o acto de escrever. É esta figura, na sua simultaneidade entre sexo e escrita que incita a criança a escrever. Porque se antes ela pensava “livro, os frutos que tu dás estão maduros, mas tu não estás maduro para os teus frutos” (pag.71) será a seguir que a própria criança percebe
“sou uma figura”
(pag.72)
A “figura” é então uma forma de manter presentes os vários elementos: masculino, feminino, vida, morte. Unindo o sexo e a morte, Eros e Thanatos, a figura representa a escrita, a escrita llansoliana como a conhecemos de “Causa Amante” (1984, A Regra do Jogo) ou “Contos do Mal Errante” (1986, Rolim). É numa cena pungente, abarrotante de sexo, que o texto termina com o nascimento da escrita.
E assim se pode explicar, tendo a figura como charneira, essa contradição entre “E Que Não Escrevia” e “Dez anos de escrita”: segundo a ideia da diferença entre tentar escrever e começar a escrever que Marguerite Duras definiu.
O que há, entre “Os Pregos na Erva” e “E Que Não Escrevia” é esses textos de “tentar escrever”. “O Livro das Comunidades” (1978, ed. Afrontamento) é então o verdadeiro “começar a escrever”.
Mas o assunto do nascimento não está, de todo, ausente em “Um Texto Decadente”. O texto inicia com uma citação de S. João da Cruz, “a ascese da memória/ leva à esperança”. Segundo a pequena nota de Llansol, “esta recitação decadente de um texto inspira-se no episódio bíblico de Tobias que foi levado a Gabelo em Reges por um homem que não sabia que era um anjo." (pag77). A esta história sobre um grupo de prisioneiros a ser levado para uma prisão não será também alheia à história do próprio S. João da Cruz, que como sabemos, será uma das futuras figuras de ”Geografia de Rebeldes”- a segunda em, mais particularmente, “O Livro das Comunidades”.
De certa forma, mesmo intuindo que os personagens se preparam para a morte é também certo que vemos que aqui algo se prepara para nascer. E apesar de já perto do final, uma criança nascer de Maria, sem ter sido concebida (O que volta a remeter-nos para a questão do texto bíblico.), parece-me que este nascimento é outro, significando a escrita, provavelmente.
Quando uma personagem, Ávila, sofre uma morte fictícia, é esta a descrição:
“Ela, fossem quais fossem as máscaras de que se servia para esconder como era, no íntimo tinha um desinteresse profundo por tudo o que apaixonava os outros, ou o que deveria apaixoná-la segundo as numas sociais; recusou comunicar autenticamente com alguém; estava na posse das suas ideias e da sua verdade. Havia construído uma solidão defensiva e gostava de deixar vagabundear o seu espírito sem freio ou leis (…)
(pags.154,150)
Não poderá, penso eu, estar mais de acordo com a escrita de Maria Gabriela Llansol, ou com a escrita que neste tempo se desenvolvia, se a própria Llansol, colocando-se num mundo de linguagens diz que “não posso, não podemos, ir mais além do que a linguagem que vou descobrindo, vamos descobrindo.” (pag.106)
O texto, dividido em Tempos de extensão irregular, aborda vários textos bíblicos, transformando-os de acordo com o que é narrado, dando-lhes novas leituras, pautadas de uma pormenorização obsessiva, que consegue atinge o grotesco. No fundo trata-se de conceber um mundo onde a fealdade reina (Repare-se que no Tempo 3 o desenho do arcanjo é apagado da parede da prisão mas deixam-se ficar desenhos de pénis.), um mundo onde a escrita possa nascer porque tem um sentido, uma razão de ser.
Finalmente, “Um Texto Decadente” parece-me sofrer de múltiplas fragilidades, tornando-se em muitos dos seus fragmentos, confuso e excessivo, nomeadamente por questões de pontuação (Que chega a não existir.), o que pode contribuir para tornar o texto mais denso; mas também mais confuso.
Os textos bíblicos serão também uma presença muitíssimo relevante em “O Estorvo”, conjunto de contos que encerra o volume.
E, se em termos formais, “O Estorvo” se encontra mais próximo de “Os Pregos Na Erva”, a verdade é que em relação ao livro de 1962, estes textos marcam uma considerável evolução, ao mesmo tempo que também contribuem para, em muitos aspectos, podermos ver, nestes, mais definido o punho de Maria Gabriela Llansol.
Assim, “O Estorvo” volta a colocar-nos perante personagens anónimas, ou quase. E é na sua forma de viver absolutamente comum que acontecem os mais surpreendente casos. O texto bíblico é não raras vezes suporte deste imaginário (Sendo “Os Imitadores” o caso mais flagrante.), não no sentido em que Llansol os recria, mas que os questiona. Questões de sexualidade, de posse, de perda e de morte incluídas. Destes 11 contos, aquele que me parece mais relevante será “Cordeiro Negro”, que possivelmente nos aponta a questão do sacrifício, mas vai mais longe: não o trata como oferenda propriamente dita, mas como serviço aos desejos do Homem, aniquilando o sentido do homem que mata para se provar a deus.
E é curioso, porque mesmo em “O Estorvo”, há um conto que volta a abordar a questão do nascimento. E aqui justamente este conjunto de demarca de “Os Pregos na Erva”: ao passo que no primeiro estávamos perante um acontecimento prestes a acontecer e nos deixava a angustia de não chegarmos a vê-lo, em “O Estorvo” assistimos mesmo a essa contínua transformação, a esse acontecimento. A questão da violência, tão patente- a meu ver- em “Os Pregos na Erva”, mantém-se aqui, portanto, mas de forma mais acentuada.
Neste “livro” estamos perante um mundo em que os pequenos presságios se concretizam, onde pequenos acontecimentos se vão dando, principalmente nessa trama a que chamamos “as relações humanas”. Mas a sensação que “O Estorvo” nos deixa é a de que alguma coisa maior se aproxima. E é essa urgência que em nós causa maior eco.
No geral, “Depois de Os Pregos na Erva” é efectivamente a sobreposição de “três momentos de uma escrita a braços com uma história que, em português, é a da expropriação inexorável de um presente que não pode ser gerido pelo indicativo” (hors-texte) - é portanto um presente que se constrói pela convocação dos tempos passado e futuro-não só pessoais, mas também colectivos. Ainda que entre os três textos possamos encontrar várias diferenças as de uma escrita em rápida construção -podemos encontrar-lhe essa principal unidade, que não é nada estranha à escrita de Maria Gabriela Llansol.
Luísa Dacosta: Corpo Recusado
Se ao fim de trinta anos Luísa Dacosta publicara apenas quatro livros de ficção, talvez tenha interesse pensar o porquê desse espaçamento tão grande, qual a necessidade que leva os seus livros a demorarem tanto.
“Corpo Recusado” pode muito bem explicar porquê. Neste livro é muito evidente todo um cuidado de construção, de organização: não só temática mas também de linguagem, obedecendo o conjunto a uma espécie de fio condutor. Por isso mesmo “Corpo Recusado” nos parece ter uma respiração tão evidente e, apesar de este ser um livro de contos- textos em si auto-suficientes e com estrutura autónoma- a sua sequência está longe de ser gratuita, seguindo ela mesma um percurso lógico, que algo tem a ver com a ordem da vida.
Visto no contexto da bibliografia, este livro consegue facilmente mostrar-nos que tudo o que é humano é eterno. E as preocupações de Luísa Dacosta sempre foram acima de tudo humanas: no sentido em que o ser humano, com os seus complexos esquemas psíquicos, emocionais e políticos, foi sempre o assunto central desta obra. E um assunto inesgotável, portanto.
Assim sendo, não deve causar estranheza que, ao lermos nestes contos sobre a mudança da província para a cidade, sobre a traição, sobre a solidão, sobre a memória, ainda descubramos algo de realmente novo.
Não será por acaso que os primeiros dois contos deste livro se referem à relação entre duas pessoas: se em “Antecipação de Outono” sentimos uma certa tensão entre os personagens, “Exercícios de Imaginação”, escrito inteiramente em diálogo, termina com a seguinte ideia
_Ambos temos o poder da destruição, um de nós o fará nascer.
_Tu?
_Tu.
(pag.33)
Após este final premonitório e desencantado, em “Reflexos na Água” encontramos a solidão, para no conto que dá título à recolha encontrarmos já um frio abandono. “Corpo Recusado”, o conto, será dos textos mais desoladores e pungentes da prosa portuguesa. O que lemos nele é um retrato implacável da solidão de uma mulher, recolhida às suas memórias, único e ténue fio que ainda a une à vida e ao mundo, um mundo onde não há "Nem mais ninguém nem mais nada" (pag.45).
Os restantes contos, oscilando entre relatos mais íntimos, onde um pendor profundamente estético serve, no fundo, a descrição dos sentimentos, e registos do real e do quotidiano onde percebemos esse olhar atento e incisivo que é o de Luísa Dacosta, há algo de comum: a ideia da solidão. E esta ideia surge-nos não da forma mais imediatista, que seria a de nos apresentar personagens isoladas: pelo contrário, Luísa Dacosta prefere mostrar-nos pessoas que frequentemente estão rodeadas de outras: é nessas pessoas que a escritora opera uma espécie de arqueologia íntima, mostrando-nos como é na intimidade que uma pessoa realmente tem uma dimensão do quão sozinha está na vida.
É a esta arqueologia que devemos contos com o sarcasmo impiedoso de “Infidelidades, Pulseiras e Agências de Viagens” ou “O Bom Nome das Famílias”; bem como outros, cuja sinceridade, tão drástica e tão bela, nos fere, como “Na Biblioteca, Com Rosto Desconhecido”, “Notícia no Jornal de Amanhã” ou “_Até Segunda! Bom Fim-de-Semana”.
Mais ainda, em termos de organização, penso ser de referir uma característica que me parece presente em todos os livros de Luísa Dacosta: a questão da linguagem. Ela é um dos elementos que mais decisivo se torna na respiração dos livros da autora: note-se que encontramos aqui tanto contos de registo mais ligado ao real quotidiano e outras de um maior relevo para a exploração do mundo interior das personagens. Isso define muito a estrutura deste livro. Ele nunca se torna aborrecido porque sabe intercalar esses dois tipos de linguagens.
Mas esses momentos, como “Angústia” ou “Oceanos Interiores”, bem como o prefácio, “Palavras e Mito”, fazem mais do que alterar o ritmo do livro. Eles relembram-nos que Luísa Dacosta não abdica de uma linguagem poética e densa e que esta linguagem é precisamente aquilo que a demarca da prosa vulgarizada.
Falta-me ainda referir a questão da mulher. “Corpo Recusado” vem confirmar que as preocupações feministas não passaram ao lado de Luísa Dacosta. Não lemos nestas crónicas qualquer tipo de benevolência, mas sim uma incisiva denúncia das diferenças que ainda existem entre homens e mulheres.
O maior defeito de “Corpo Recusado” será provavelmente nunca ter sido reeditado, desde há 25 anos. Mas isso diz mais do mercado livreiro português do que da escrita de Luísa Dacosta.