De certo ponto de vista, a pintura sofreu, desde os Egípcios e os Greco-Romanos, várias evoluções mas poucas revoluções. Quando a obra de Giotto experimenta nervosamente a perspectiva, sabemos que uma revolução se avizinha mas, ainda antes do Renascimento, essa evolução seria concretizada não por italianos, mas pelo grupo de pintores ligados à chamada Escola de Brugge que hoje conhecemos como Primitivos Flamengos. Para estes pintores, o domínio da perspectiva foi pouco mais que um instrumento técnico para algo bem mais revolucionário, que foi a substituição do realismo pelo real. Mesmo nos frequentes temas religiosos, os trabalhos de Robert Campin/ Mestre de Flémalle, de Rogier Van Der Weyden ou de Jan Van Eyck, inauguram um senso do real, um elogio do quotidiano que mantém a mística em quadros pouco distanciados da realidade do dia-a-dia. Particulamente Jan Van Eyck, com o seu genial 'Casamento dos Arnolfini', virou costas à mitificação e trouxe a atenção sobre a dignidade e a complexidade do quotidiano.
Mas noutros trabalhos, aparentemente mais circunspectos, o pensamento de Van Eyck não se revela menos inovador. Os retratos individuais que fez apresentam-se-nos segundo uma tradição burguesa, mostram-nos pessoas que ora sabemos ora não sabemos quem são, mas que invariavelmente nos são mostradas como pessoas distintas. A partir dessa aparência, Van Eyck sabe manipular elementos e símbolos para uma compreensão do estatuto e ocupação da pessoa, por exemplo. O retrato individual de Giovanni di Nicolao Arnolfini mostra-nos precisamente isso _o traje escuro denuncia o homem abastado por exemplo (uma vez que só os muito ricos conseguiam pagar o dispendioso tecido escuro). Os fundos negros são diferentes daqueles que se popularizariam no Renascimento, em que o retratado surgia em frente de uma paisagem que aludia ao seu poder sobre determinado espaço. Nos retratos de Van Eyck os retratados dispensam a paisagem: têm o poder por si mesmos.
No entanto, os retratos individuais mais interessantes de Van Eyck terá pintado não chegaram aos dias de hoje. Os polémicos retratos de Isabel de Portugal ocupam um lugar especial no conjunto da obra de Van Eyck. Mais do que serem encomendas, eram uma missão diplomática.
Mudando-se de Lille (actualmente pertencente a França) para Brugge, Van Eyck passa a trabalhar para o corte de Filipe III, Duque de Borgonha, do Brabante e dos Países Baixos Borgonheses. O Duque preparava para o ano de 1428 as suas terceiras núpcias, com Isabel de Portugal, filha de D. João I. A viagem de Van Eyck a Lisboa teve portanto esse propósito _o de retratar Isabel, para que Filipe III pudesse ter uma ideia do aspecto físico da sua pretendente.
Seis séculos depois, restam-nos trabalhos de outros pintores, copiados ou pelo menos baseados nos originais de Van Eyck. Nos três, Isabel surge como uma mulher elegante, bem vestida, evidenciando luxo e requinte. Mas nos três, o que vemos é um rosto demasiado alto, um nariz desproporcionalmente protuberante, uns olhos pequenos de olhar conspícuo e um queixo aguçado que evidencia demasiado a boca.
Particularmente o retrato em que a infanta surge de três quartos (e de que temos apenas uma cópia feita na oficina de Van Der Weyden) denuncia uma espécie de sobrecompensação. Isabel parece uma espécie de gafanhoto andrajoso, a beleza diáfana das suas vestes, o brilho rigoroso dos véus parecem tentar compensar o seu rosto que tem algo de insecto. De um insecto sereno de sorriso contido que, apesar de tudo, indica uma mulher escorreita e submissa que conviria àquele início do século XV num casamento entre nobres. O mesmo acontece com o retrato em que Isabel surge quase de perfil (existente apenas uma cópia do século XV), plasticamente menos conseguido, mas igualmente rigoroso em mostrar as características físicas da infanta.
Num outro retrato (de que temos uma cópia coeva), metade de um díptico que, do outro lado, apresenta Filipe III, Isabel parece mais jovem e sorridente, mais virginal quase. Não tem o ar adulto e maduro dos retratos que a mostram até à cintura, mas continua envolvida numa série de véus luxuosos e minuciosamente decorados que, tapando-lhe o cabelo, também afogam o seu rosto numa profusão de ornamentos e decorações que a defendem não de parecer feia, mas de parecer apenas feia.
Não é de assumir que a forma verista como Van Eyck pinta Isabel a tenha prejudicado. Filipe III casaria efectivamente com ela, dando até origem à Ordem do Tosão de Ouro, para assinalar a união entre as duas cortes.
Passada a missão diplomática, fica acima de tudo o significado daqueles retratos. Se Jan Van Eyck e aqueles que reproduziram os seus retratos, foram rigorosos na representação do real, sabemo-lo graças aos retratos de Isabel. Seria de esperar que, naquela missão diplomática, para viabilizar um casamento entre dois desconhecidos, Jan tivesse embelezado a infanta, que tivesse disfarçado os seus defeitos. Mas o pintor não fez isto. Ele mostra uma Isabel digna e elegante, mas não ignora a realidade: o seu rosto tem delicadeza mas é tosco e desproporcional. Ela tem outras qualidades, de gosto, por exemplo, é certamente de uma corte abastada, mas a beleza física natural não a contemplou.
Van Eyck não abdica do real, não o força, ainda que o teatralize. E essa foi a verdadeira revolução que representam os Primitivos Flamengos. O domínio da perspectiva que Giotto inicia em Itália não tem grande interesse por si só. O grande interesse da perspectiva é que a saída do bidimensional para o tridimensional prevê uma maior aproximação ao real. E essa aproximação dá-se na Flandres muito mais do que em Itália, concretiza-se esplendidamente no trabalho de Van Eyck, mais do que noutro qualquer.
A prova disso está nos retratos de Isabel de Portugal, que recusam manipular a verdade, preferem o gafanhoto andrajoso que Filipe haveria de conhecer à princesa endeusada que nunca existiu.