terça-feira, 24 de julho de 2012

Dois dráculas, mais dois vampiros

Parece ser quase imperativo que, cada vez que um livro se eleva ao estatuto de clássico, tenha que ser adaptado ao cinema. Aliás, talvez os livros não fossem clássicos se não fossem adaptados ao cinema. O filme é, para muitos, uma maneira de conhecer o livro sem o ler. É meramente ilusório pensar assim, mas não deixa de acontecer. Meramente ilusório porque, para todos os efeitos, um filme será sempre uma interpretação do livro.
Como clássico que é, o 'Dracula' de Bram Stoker já teve numerosas adaptações ao cinema, ou, dito de outra forma, já sofreu de várias adaptações ao cinema.
De duas delas, parece-me importante falar.


Em 1921, F.W. Murnau quis adaptar o romance. Como não conseguiu autorização dos herdeiros de Stoker para utilizar a história, realizou o filme na mesma, seguindo a história, mas mudando o nome dos personagens e alguns dos lugares onde a história aconteceria. O termo vampiro foi alterado para um outro, que dá título ao filme. 'Nosferatu' chega aos cinemas em 1922, e se sobreviveu até aos dias de hoje, foi por um golpe de sorte. Os herdeiros de Stoker processaram Murnau, venceram em tribunal e este ordenou que todas as cópias do filme fossem destruídas. Uma sobreviveu e hoje, temos acesso a um dos filmes mais representativos do Expressionismo Alemão no cinema.
O argumento de Henrik Galeen segue quase inteiramente a premissa de 'Dracula'. O conseguimento maior do filme, mesmo assim, é a sua componente visual. Murnau consegue recriar a atmosfera do romance de Bram Stoker, que beneficia da tendência expressionista. A figura de Max Schreck, enquanto Conde Orlok/Dracula, bem como a sua capacidade de expressão facial são digníssimas representações daquilo que imaginaríamos ao ler o romance. A caracterização é sóbria e eficiente, e fica a cargo de Schreck ser um vampiro (Ou melhor, um nosferatu.) credível.
O facto é que, nos dias de hoje, haveria maneiras de criar um filme mais explícito e violento. No entanto, Murnau parece ter chegado mais longe com os meios da altura do que muitos realizadores actuais com muito mais meios. As unhas compridas e afiadas, os olhos esbugalhados e maquilhados, a silhueta esguia, o rosto branco como cal, tudo isso, faz com que um só esgar de Schrek tenha mais impacto do que qualquer sangramento explícito de hoje em dia.
Mais ainda, Galeen aposta na componente subliminar do romance de Stoker. O não dito, aquilo que é apenas pressentido, tem um papel importante no livro, e Galeen entendeu-o. Assim, Murnau atribui a Ellen/Mina uma série de presságios, e Greta Schröder é perfeitamente capaz de transmitir a ansiedade e o medo que os seus prenúncios lhe causam.
Os cenários estão bem elaborados e, distanciando-se dos ambientes reconhecíveis da Inglaterra Vitoriana, consegue manter toda uma maneira de viver que está presente no romance. Com a minúcia da caracterização dos espaços, Murnau consegue, inclusivamente, que as cenas não pareçam menos conseguidas por serem filmadas de dia, quando deveriam, à partida, ser filmadas de noite. Exemplo máximo disso é a cena a bordo do Dimeter, o navio que transportará os caixões do Conde para a sua nova casa, em o sugir de Schreck na proa do navio, filmado num plano contrapicado se tornaria uma das imagens mais emblemáticas do cinema expressionista.


Esta cena, juntamente com outras que, deste filme, se tornaram como estandartes, ilustra muitíssimo bem aquilo que realmente é o maior conseguimento deste filme. Ironicamente, 'Nosferatu' beneficia de não ter recebido os direitos de autor do romance. Porque, perdendo algumas designações de Stoker e o nome dos personagens, cria-se uma distância, nem que simbólica, entre o romance e o filme. Está assumido que são objectos independentes. O filme afirma-se pela sua dimensão visual profunda e minuciosamente elaborada e a história não é muito mais que um conjunto de linhas mestras que orientam o filme. 'Nosferatu' depende muito menos no romance que lhe dá origem do que da sensibilidade e das ideologias do seu realizador. É um filme que arrepia e comove não pela sua história, que é realmente o menos importante. O Conde Orloc pode ser Drácula como pode ser qualquer personificação do medo, valiosa por si só.


Bastante diferente é o caso de 'Bram Stoker's Dracula' de Francis Ford Coppola. Este filme surge em 1992, exactamente setenta anos depois da estreia de 'Nosferatu'. Ao contrário de Murnau, Coppola pôde usar os nomes dos personagens, e inclusivamente, no título, atribui o seu Drácula ao autor do romance.
Como se disse, um filme que adapta um livro é sempre uma interpretação desse livro. Mas usar no título do filme o nome do autor do livro é perigoso, porque comporta determinadas responsabilidades.  Este filme é referido muitas vezes como uma adaptação fiel do romance, mas isso é falso.
De facto, o filme pode maravilhar pelo seu visual. Os cenários são pensados sem rigor relativamente ao livro, mas com apuradíssimo sentido estético, que passa, inclusivamente pelo genius-loci, no sentido em que Coppola sabe em que espaços inserir os seus actores para criar toda uma ambiência que sirva o espírito do filme. Da mesma forma, o guarda-roupa dos actores está igualmente bem construído. Ele recria perfeitamente a Inglaterra Vitoriana e denuncia também a condição e até a personalidade dos personagens.
O elenco está também cheio de actores conceituados. Gary Oldman dá corpo ao Conde Drácula com bastante desenvoltura, tanto nas cenas em que o Conde é velho como naquelas em que é jovem. Keanu Reeves interpreta Jonathan Harker com a facilidade do costume e Wynona Ryder interpreta uma Mina Harker muito credível. A Anthony Hopkins cabe o papel de Abraham Van Helsing, conseguido com o esplendor a que este actor nos habituou sempre.
'Bram Stoker's Dracula' parece ter tudo para ser brilhante, no entanto, não impressiona. Isto porque, por mais que o filme nos passa maravilhar esteticamente, não podemos esquecer que o título atribuiu este Drácula a Bram Stoker e o que aqui encontramos está muito longe de ter seja o que for em comum com o romance. Aliás, este filme mais facilmente seria credível se se dissesse que é baseado nas personagens do escritor irlandês do que se nos dissessem que é baseado no romance. Porque, mesmo que o argumento de James V. Hart seja uma interpretação do romance, é certamente uma interpretação bastante inusitada. O argumentista teria toda a liberdade para derivar do romance, mas não quando o filme promete um outro tipo de fidelidade.
Este é o Drácula de Coppola, e não o de Bram Stoker. Caso evidente disso é a personagem de Lucy Westenra (Sadie Frost) que só em nome é a mesma do romance, uma vez que a do filme está convertida numa menina de boas famílias obcecada com sexo. O próprio Van Helsing parece ser exageradamente excêntrico e, nalgumas das suas aparições, parece mais um velho tarado do que um médico genial.


E, claro, não esqueçamos o romance de Mina Harker com o Conde Drácula, que é o que mais fere este filme. Isto porque, se no romance fica subentendida uma atracção entre o Conde e a mulher de Jonathan Harker, o filme cria mesmo um caso que, mais do que distorcer completamente o carácter de Mina e a natureza dos seus sentimentos pelo noivo e depois marido, nos prova que este filme não soube sequer ser resistente e não soube ter a excentricidade que inventou para os seus personagens. Porque o romance de Mina com Drácula não deixa de ser, por mais justificações que se possam encontrar, uma cedência: Hollywood parece incapaz de sobreviver sem uma história de amor. E, assim, aquilo que podia ter sido um filme de estética fortíssima e apurada acaba resultando naquilo que parece uma mega-produção de Hollywood, daquelas que alguns realizadores por vezes fazem para darem a ideia de serem independentes. Coppola não o foi neste filme. Não há boa produção estética que compense o facto de se transformar um dos grandes clássicos da literatura num prato-do-dia em Hollywood.
Fiquem as boas interpretações dos actores e realmente a qualidade visual do filme para que dele tenhamos algo de bom a relembrar.


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