O TEATRO DA CRUELDADE
Não é preciso saber muito sobre a Bélgica para saber que, num mesmo país, encontramos duas culturas bastante distintas. Uma francófona, da Valónia, e outra de língua neerlandesa, da Flandres (Sendo Bruxelas região bilingue.). Poucos artistas contemporâneos belgas têm sido conhecidos entre nós. As promessas (Ainda por cima mal cumpridas.) da União Europeia afinal, visavam apenas a fluência da economia, ficando a cultura, por norma, estanque dentro de cada país. Salvo raras excepções, só os mortos de alguns países maiores são traduzidos e/ou publicados, ou então aqueles que são consagrados por prémios que nem sempre fazem laureados todos os que o mereceriam (Já que falamos de livros, a título de exemplo, Agustina Bessa-Luís poderia, tanto como Saramago, ter recebido o Nobel da literatura.).
Amélie Nothomb, escritora belga francófona, foi difundida largamente em França, muitos dos seus livros foram traduzidos para inglês e, por surpreendente que possa parecer, uns poucos também para português (Ainda que, sinceramente, nunca tenha encontrado livro algum dela em nenhum escaparate em Portugal.).
O seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin' foi muito aclamado e rapidamente conheceu várias edições em França. O sucesso internacional de um livro que foi o primeiro de muitos (Nothomb tem publicado mais ou menos um romance por ano.) poderá surpreender sendo a Bélgica um país pequeno mas o facto é que, uma vez tendo contacto com o texto em si, vemos que a sua intensidade justificaria até mais atenção do que a que lhe foi dada.
Num registo seco, directo e declaradamente irónico, Nothomb introduz-nos a Prétextat Tach, um escritor de oitenta e três anos a quem foi diagnosticada uma rara doença, um cancro nas cartilagens, e a quem restam dois meses de vida. Apesar de ter, ao longo da sua carreira, mantido o silêncio face à imprensa, na recta final da sua vida, um tanto pressionando por Ernest Gravelin, o seu assistente, Tach concorda em dar entrevistas a quatro jornalistas, fazendo, no entanto, as mais variadas e inesperadas exigências no que toca aos critérios de selecção dos quatro escolhidos.
Quase todo o texto de 'Hygiène de l'Assassin' é escrito em diálogo, sendo o romance constituído essencialmente pelas entrevistas que os vários jornalistas fazem a Tach e pelas conversas que os jornalistas têm, entre si, num café onde se reunem, em frente da casa do escritor (Localizada, ao que se entende, na zona dos Étangs d'Ixelles.).
As descrições de Prétextat Tach são bastante sumárias: obeso, feio, mal-encarado e antipático. A conversa com o primeiro jornalista vai revelar uma correspondência entre a fealdade física e o trato difícil do escritor. Antipático, arrogante, convencido e mal-criado, Prétextat comporta-se como um sociopata, acabando por escorraçar o primeiro jornalista. No café, este é repreendido pelos colegas, por ter tratado um génio como se fosse um escritor vulgar. No entanto, entrevista atrás de entrevista, Tach vai-se tornando cada vez mais agressivo, fazendo uso de todas as suas capacidades de retórica, enveredando por um discurso cada vez mais abjecto, contraditório e altamente misógino, preconceituoso e cruel. Apesar de ter sido laureado com o Prémio Nobel da literatura, Tach está convencido de que não é lido e muito menos entendido e defende ideias que chocariam o maior dos reaccionários. Ainda que praticamente só a primeira entrevista nos dê alguns detalhes sobre a obra de Tach, fica clara em todas as entrevistas a exacerbada capacidade retórica do escritor, que manipula diversos sofismas e aforismos para, com a sua personalidade retorcida, se evadir às perguntas dos jornalistas. A excepção é a segunda entrevista, em que o jornalista pergunta a Tach como é a sua alimentação: uma vez mais usando todas as suas capacidades discursivas, o escritor descreve aquilo que come, enchendo o discurso de detalhes grotescos e asquerosos, que acabam por fazer o jornalista abandonar a sala para vomitar.
As descrições de Prétextat Tach são bastante sumárias: obeso, feio, mal-encarado e antipático. A conversa com o primeiro jornalista vai revelar uma correspondência entre a fealdade física e o trato difícil do escritor. Antipático, arrogante, convencido e mal-criado, Prétextat comporta-se como um sociopata, acabando por escorraçar o primeiro jornalista. No café, este é repreendido pelos colegas, por ter tratado um génio como se fosse um escritor vulgar. No entanto, entrevista atrás de entrevista, Tach vai-se tornando cada vez mais agressivo, fazendo uso de todas as suas capacidades de retórica, enveredando por um discurso cada vez mais abjecto, contraditório e altamente misógino, preconceituoso e cruel. Apesar de ter sido laureado com o Prémio Nobel da literatura, Tach está convencido de que não é lido e muito menos entendido e defende ideias que chocariam o maior dos reaccionários. Ainda que praticamente só a primeira entrevista nos dê alguns detalhes sobre a obra de Tach, fica clara em todas as entrevistas a exacerbada capacidade retórica do escritor, que manipula diversos sofismas e aforismos para, com a sua personalidade retorcida, se evadir às perguntas dos jornalistas. A excepção é a segunda entrevista, em que o jornalista pergunta a Tach como é a sua alimentação: uma vez mais usando todas as suas capacidades discursivas, o escritor descreve aquilo que come, enchendo o discurso de detalhes grotescos e asquerosos, que acabam por fazer o jornalista abandonar a sala para vomitar.
Estas quatro entrevistas formam uma espécie de primeira parte do livro. A segunda parte, que corresponde mais ou menos a metade do livro, é constituida por uma quinta entrevista, marcada à revelia de Tach pelo seu assistente. A jornalista, Nina, logo no início, é confrontada com a extrema misoginia do escritor. No entanto, em vez de, à semelhança dos seus colegas, ter uma atitude reverente em relação ao laureado do Nobel, Nina assume uma pose intransigente, ameaçando imediatamente sair de Tach não lhe pedir desculpa pelos insultos que lhe dirige. De alguma forma desarmado, Tach acaba por ceder e, daí para a frente, desenvolve-se entre ambos uma espécie de jogo psicológico que, em muitos momentos, não deixa claro quem está a ser manipulado. Pela primeira vez, o escritor parece estar perante um adversário à altura. Nina conduz a entrevista com convicção, mas sem abdicar do jogo de cintura que fará o escritor perder-se nos seus próprios engimas sofismáticos. Assim, a partir de algumas perguntas sobre o último romance de Tach, que fora publicado inacabado, Nina consegue confrontá-lo com as pesquisas que fizera sobre a infância do escritor e, tendo encontrado de entre os vinte e dois livros aquele que é autobiográfico, a jornalista consegue arrancar a Tach detalhes sobre a sua história pessoal, que explicará muitas das ideias perversas do escritor e que, mais ainda, dará acesso àquilo que de obscuro existe nessa história.
Assim Tach desvenda a Nina a sua infância idílica e o seu fim abrupto e violento, que daria origem a toda uma vida de ódio e crueldade disfarçadas, na escrita, de boa-vontade.
Céline é referido ao longo do texto como exemplo de um escritor que escrever grandes barbaridades com excepcional fulgor e o seu eco é, de certa forma, muito claro. Mas, no que toca ao passado de Tach, o eco de Shakespeare, com a Ofélia afogada, surpreende por nos dar, nas mesmas ideias de morte e de barbaridade, a visão oposta, bela, edénica e poética. Cabe a Nothomb o mérito de ser capaz de conjugar, num mesmo texto, duas visões tão antagónicas.
À medida que a conversa se aproxima do fim, torna-se claro que é Nina quem domina Prétextat, conseguindo assim fazer rastejar, literalmente, o homem que, na primeira parte do livro, nos parecera o mais cruel dos homens.
'Hygiène de l'Assassin' é, como disse, escrito quase inteiramente em diálogo. Por isso, não lhe é de todo alheia uma certa ambiência teatral ou cinematográfica, sendo que as poucas descrições que encontramos nos parecem quase indicações cénicas. Amélie Nothomb escreve, então, sem quaisquer subterfúgios, seca e directamente. No entanto, aquilo que na escrita deste romance mais surpreenderá, será a total desenvoltura da autora (Que tinha vinte e cinco anos à data da primeira edição do livro.) no que toca ao jogo que se gera não só entre as palavras, mas também entre as ideias em discussão ao longo das cinco entrevistas. Acontece que, muitas vezes, ainda que possamos escolher uma posição face às conversas, somos obrigados a reconhecer que há um fundo de verdade tanto do lado de Tach como do lado dos seus entrevistadores, em particular de Nina, que é quem mais capacidade tem de efectivamente discutir ideias. Mas claro que é a entrevista de Nina que mais importância tem. A argumentação entre os dois está brilhantemente escrita e a batalha verbal que travam não raras vezes nos parece estar destinada a não ter vencedor justo, uma vez que, por mais que possamos ver Tach como um sociopata, é impossível não reconhecer ao seu discurso argumentos irrepreensíveis. Mais ainda, Amélie Nothomb traça o jogo entre estes dois personagens munida de certas noções de psicologia (Que nunca resvalam para a análise barata de sentimentos.), pois é através dela que Nina consegue confundir o seu entrevistado, obrigando-o a falar, a revelar-se.
No fundo, a grande busca de 'Hygiène de l'Assassin' poderia ser pela identidade verdadeira. O conceito está por demais usado e abusado. Mas, de facto, Nothomb não parece inserir-se directamente neste tipo de escrita. Prétextat Tach surge-nos como um monstro e, a certa altura, quer-nos parecer que o verdadeiro pretexto de Nina será o de encontrar o momento em que Tach se teria tornado um monstro, defendendo um pouco que não seria possível que ele assim tivesse nascido. No entanto, o final do romance vem mostrar-nos uma ideia diferente, pois parece apontar para que, na verdade, não existam monstros ou, pelo menos, que não existam monstros quando inseridos num sistema humano, pois, quando assim é, todos são monstros, de uma forma ou de outra, sendo, portanto, tudo uma questão de perspectiva. E se o acto final de Nina nos parece ser justificado por uma espécie de gesto de justiça, a verdade é que, ao longo do livro, fomos encontrando vários argumentos que nos provam o contrário e que, inclusivamente, deixam subentendido que a própria justiça é uma questão de ponto-de-vista e que, como tal, nunca verdadeiramente pode ser feita.
Texto de uma intensidade impressionante, principalmente para uma autora tão jovem como Nothomb, 'Hygiène de l'Assassin' é um romance como raramente se lê. A densidade das suas ideias e a lucidez dos argumentos que o constituem, em que uns aforismos dão origem a outros e as contradições são dependentes da perspectiva, fazem deste livro um longo ensaio sobre a monstruosidade ou a falta dela, e, colocando em cena a crueldade no seu estado mais nu, Nothomb acaba por sintetizar os grandes assuntos da humanidade: a vida, a morte, o amor, o esquecimento, a maldade, a redenção, a perda, sendo que a soma de tudo isto pode ser tanto a bondande quanto a monstruosidade. E mesmo que um livro tão despido e tão desarmante possa ofender-nos, eu diria que vale a pena.
1 comentário:
Muito interessante, este romance e a sensibilização para ele através das tuas palavras! O título é belíssimo e psicanalítico, pois remete para a "limpeza". As memórias "sujas". A entrevistadora conseguiu falar com o escritor e desvendar o lado escuro da infância do autor!
A higiene, a limpeza que o subconsciente faz para enfrentar o real - a Denegação! Somos todos assassinos!!! De nós próprios e dos outros!
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