segunda-feira, 23 de julho de 2012

Richard Neutra

DA ARQUITECTURA À PSICOLOGIA E À SOCIOLOGIA

A escola é o local onde ouvimos falar de factos que são novos para nós, onde nos regeneramos, onde cultivamos a nossa mente, os nossos pontos de vista e as nossas convicções sociais... Podemos alegrar-nos junto de aberturas simpáticas para zonas verdes ao ar livre ou sofrer com cantos descontrolados e inquietantes, por trás de móveis atravancados... e milhares de outros componentes, matizados psicologicamente. Não foi feita até hoje nenhuma avaliação empírica da extensão e das características destes elementos principais de influências do meio ambiente, mas por vezes somos perseguidos, alegrados ou atormentados nos sonhos por impressões que regressam do tempo da infância, que surgiram a partir desses [elementos] de há muito tempo através de medos ou de alegrias precoces.

neste fragmento de um artigo publicado na Trend Magazine de Outubro de 1934 é o arquitecto Richard Neutra, enquanto trabalhava no projecto da Escola de Corona. Este texto, escrito possivelmente enquanto Neutra trabalhava nas primeiras ideias para o seu projecto, desenhadas a aguarela, é bastante significativo, no sentido em que denuncia aquilo que, pelo menos para este arquitecto, mais do que fazer parte do processo projectual estava antes do próprio processo projectual. São as suas preocupações, as suas noções de Arquitectura que estão em questão neste texto.
Nascido em 1892 em Viena de Áustria, Neutra era filho de um casal culto perfeitamente inserido nos meios intelectuais da época. Um dos amigos da família era Sigmund Freud. Esta amizade, em si, é menos significativa do que o contexto que nos oferece. Mesmo tendo feito a sua carreira essencialmente nos Estados Unidos, para onde emigrou em 1923, em muito, Neutra formou-se cultural e ideologicamente numa Europa em plena reformulação cultural, com a entrada em vigor dos valores plurais do Modernismo, do questionar da cultura instituída e também do nascimento da Psicanálise. Discípulo de Frank Lloyd Wright e de Adolf Loos, Neutra frequentou a Universidade Técnica de Viena. Todos estes elementos acabarão por ser preponderantes para o desenrolar de uma Obra tão apreciada quanto polémica.
Neutra foi seriamente favorecido por uma natureza preocupada ao ponto de ser obsessiva. A grande ambição do arquitecto era criar casas perfeitas. Esta questão talvez escape a um olhar menos atento, que se prenda com o aspecto dos edifícios, mas a perfeição que Neutra perseguia com afinco era a da utilização dos edifícios.
Num livro sobre o arquitecto, nota Barbara Lamprecht, não ao acaso: Neutra até chegou a desenhar as fábricas para produção de placas Diatalum; os esboços foram publicados em revistas de comércio especializado de arquitectura. Planeou também os horários e o programa de produção, as transportadoras de correias, os carregamentos... Neutra até se preocupou com qual o sindicato a que os trabalhadores da fábrica deveriam pertencer e questionava-se sobre o que iria dizer o sindicato tradicionalista dos carpinteiros! [LAMPRECHT, 2006:18] Se este episódio nos mostra, por um lado, o optimismo e a consciência social(ista) de Neutra, por outro também nos revela como o arquitecto pensava em todas as questões relativas ao edifício. Talvez isto precisamente distinga uma obra boa de uma obra assinalável: o arquitecto não vê o seu edifício como um elemento isolado, estanque, que vale por si só. Ao pensar em questões de trabalho ou em problemas sindicais, Neutra está a inserir aquele edifício num sistema e, assim, na vida que nesse edifício acontecerá.
Um dos mestres de Neutra, Loos, defendia que Apenas uma parte muito pequena da arquitectura pertence à arte: a pedra tumular e o monumento. Tudo o resto, que serve um fim, é para ser excluído da arte. Se lermos esta frase com um sentido muito estrito, ela tem alguma razão de ser, no sentido em que a Pintura ou a Escultura não têm a obrigação de condicionar a vida das pessoas, ao passo que com a Arquitectura não é assim.



Apesar de, eventualmente, Neutra se ter afastado ideologicamente dos seus dois grandes mestres, a verdade é que algumas características comuns continuaram a uni-los. Uma delas poderia ser precisamente essa ideia. Entre 1925 e 1930, Neutra fez vários projectos, muitos deles utópicos, pelo menos para o seu tempo, para a Rush City Reformada. Nestes projectos, o arquitecto demonstra grande preocupação com as estruturas familiares, com os espaços de trabalho, as redes e os tipos de transportes, a circulação interna e externa de pessoas na cidade e também a dignidade das condições de vida.  Projectos evidentemente não construídos, os planos para a Rush City têm o valor de ensaios de Neutra sobre arquitectura. E, desenvolvidos entre os 33 e os 38 anos do arquitecto, eles demonstram já uma preocupação com o sistema em que a Arquitectura se insere, e que vão além do Urbanismo. Por assim dizer, e esta ideia poderá, de certa forma, chegar daquela de Loos, Neutra compreende como a Arquitectura é um profundo exercício sociológico, porque onde o projecto pensa os modos de vida, o edifício construído irá afectá-los, incitando-os ou educando-os.



É em 1935 que são concluidas as obras da Escola de Corona, na Califórnia. Vimos acima, no texto escrito pelo próprio Neutra, como ele pensava o impacto da Arquitectura na vida. Nesse texto, além da dimensão sociológica que está presente já nos planos para a Rush City Reformed, Neutra vai mais além, e entra no domínio da própria psicologia. Como se disse, Neutra cresceu numa Europa onde o eclodir da Psicanálise se fez sentir com estrondo, dando até origem a um movimento modernista como o Surrealismo. A descoberta de Freud de que a infância era determinante na vida de uma pessoa, podendo inclusivamente traumatizar o indivíduo ao ponto deste não conseguir, enquanto adulto, ter uma vida normal, não passou ao lado de Neutra.  Como parece ser ideia do arquitecto desde cedo, a Arquitectura deverá orientar-se para uma incitação ou educação do modo de vida. Assim, ao projectar a escola de Corona, Neutra parece não ter atendido meramente às necessidades práticas imediatas do espaço, mas também ao poder de auto-sugestão daqueles que nele se movimentassem: o impacto que terá a percepção psicológica desse espaço marcará. Assim, Neutra quase psicanalisa a própria Arquitectura: ao falar, no seu texto, dos sonhos que trazem de volta cenários da infância, o arquitecto demonstra a sua preocupação em criar um espaço que, ao ser relembrado, arraste consigo memórias de conforto. Assim, Neutra cria salas altas, bem iluminadas e bem ventiladas, aconchegadas e com uma ligação forte com um jardim exterior (Conseguida com  paredes inteiramente feitas em vidro.) e, pensando nos problemas de visão que poderiam advir aos alunos que se sentassem nas filas de trás, concebeu a organização das carteiras em semicírculo em volta do professor. A planta do edifício é organizada em L, ficando as cinco salas seguidas num dos eixos, e as duas salas de jardim-de-infância num outro eixo perpendicular. Os jardins organizavam-se para o seio desse L, criando um espaço live e amplo, mas que mantém o intimismo que caracteriza o projecto.
A obra de Neutra é muitas vezes exemplo de uma busca pela forma, pela composição assimétrica mas controlada, e é interessante verificar como a formação do arquitecto na Universidade Técnica o orientou para um interesse incessante pela tecnologia e pelos métodos de construção, sem no entanto o afastar das preocupações formais, uma vez que Neutra estava longe de concordar com Sullivan sobre se a forma seguia a função, pois estava acima de tudo convencido de que a forma exerceria um poder considerável sobre os modos de vida e de percepção. Mas, mais do que isto, os dois exemplos citados, a Rush City e a Escola de Corona, são bons exemplos do profundo pensamento de Neutra, que não entendia a Arquitectura enquanto um elemento fechado sobre si mesmo. Talvez em Arquitectura não exista um em si e, assim, Neutra preocupou-se, obsessivamente, com o sistema em que os edifícios se inseririam e, mais do que a criatividade formal ou técnica, será essa obsessão pela forma de viver que torna a Obra de Neutra tão forte e, na maioria dos seus aspectos, moderníssima mesmo para os dias de hoje.


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LAMPRECHT, Barbara: Richard Neutra- Formas criadoras para uma vida melhor, 2006, ed. Taschen, Koln
LOOS, Adolf: Trotzdem. Gesammelte Schriften 1900-1930, 1982, Viena

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