terça-feira, 17 de maio de 2011

Christina Rossetti: O Mercado dos Duendes e outros poemas (Versão de Margarida Vale de Gato)

É já de 2001 esta edição, organizada e prefaciada por Ana Rosa Nobre, de alguns poemas de Christina Rossetti, em versões de Margarida Vale de Gato.

Daquela que me parece ser a mais importante poeta Pré-Rafaelita existe, além deste livro, apenas uma outra selecção de poemas, na antologia "Os Pré-Rafaelitas: Antologia Poética", organizado por Helena Barbas e editado em 2005 pela Assírio e Alvim. É pena que assim seja, pois, como de resto acontece frequentemente com a publicação de poesia estrangeira no nosso país, isso gera uma lacuna considerável num dos períodos mais ricos da cultura britânica, neste caso.

Foi em 1862 que, depois de alguma publicação dispersa, Christina Rossetti lançou o seu primeiro livro: "Goblin Market and Other Poems", ilustrado com gravuras do irmão da poeta, o pintor e também poeta Dante Gabriel Rossetti, foi um sucesso, aliás, o primeiro grande sucesso da poesia Pré-Rafaelita, de tal maneira que Christina, como nos é explicado no prefácio, sempre temeu não ser capaz de igualar a qualidade do poema inicial, "Goblin Market".





O volume português, "O Mercado dos Duendes e outros poemas", leva o mesmo título do primeiro livro de Christina, mas não é uma tradução integral dele, preferindo fazer uma selecção de poemas colhidos da obra completa de Christina. A opção parece-me interessante dado que, na altura, era a primeira vez que esta autora era publicada em Portugal.

Abre então com o poema mais conhecido de Christina, "O Mercado dos Duendes". Ainda que, pessoalmente, me pareça que a intensidade da escrita de Christina Rossetti atinge o seu pico noutros poemas, mais íntimos, percebe-se o porquê do destaque dado a este poema. De facto, em muito, ele representa um culminar de várias características do Pré-Rafaelitas. Trata-se de um muito longo poema narrativo que nos conta a história de duas irmãs, Lizzie e Laura, que observam a passagem de um bando de duendes em direcção a um lugar onde venderão frutas que haviam colhido dos seus pomares. O poema inicia com os pregões dos duendes, em versos curtos, criando um ritmo viciante e muito musical. Laura sente-se tentada a ir ter com eles e comprar-lhes fruta ainda que Lizzie, mais cautelosa, a alerte para o perigo de comer a fruta vinda de criaturas "malditas"



"Não", disse Lizzie, "Não;

Suas ofertas não nos devem tentar,

Suas prendas do demo mal nos farão."

(p.33/35)



Como seria de esperar, certa noite, Laura foge de encontro aos gnomos e come dos seus frutos. Depois disso, lentamente começa a definhar. Lizzie, levada pela urgência de salvar a irmã, irá também de encontro aos duendes, para lhes comprar fruta, acabando por ser atacada por eles. Ainda assim, com o corpo sujo do sumo das frutas, consegue salvar a vida de Laura. Esta passagem é, de facto, assinalável, em vários aspectos: revela-nos, a um tempo, a dimensão poderosa do amor fraternal, mas também uma grande carga erótica (Ou homo-erótica, como se preferir.), assinalável se tivermos em conta que este poema foi escrito em 1859:



Gritou "Laura", assomando ao jardim,

"Sentiste falta de mim?

Anda, beija-me.

Não te apoquentes com minhas feridas,

Abraça-me, sorve das minhas seivas

Para ti espremidas dos frutos dos duendes,

Polpa de duende, orvalho de duende.

Come-me, bebe-me, ama-me.

Laura, faz de mim o que te aprouver,

Por teu amor ao vale eu desci

E c'os anões me tive de haver."

(p.61)



A modernidade deste poema está, não só na ousadia com que muitas vezes se manifesta, mas também nalguns detalhes técnicos, particularmente na métrica: apesar de seguir sempre esquemas rimáticos, estes vão-se alterando; e a métrica também se muda, como que para servir a energia do próprio poema: se inicialmente os pregões dos duendes eram escritos em versos curtos, à medida que o poema avança e se centra na relação entre as duas irmãs e o que se passa nas suas vidas, os versos vão-se tornando mais longos e mais densos. Ou seja, dentro da regularidade, Christina consegue tornar o esquema deste poema irregular.

A língua inglesa será uma das mais difíceis de traduzir para português. Logo porque as duas línguas pouco se equivalem e raramente sequer se aproximam, mas também pelas diferenças na contagem de sílabas e, no caso da poesia, da organização das estruturas, como Margarida Vale de Gato nos explica na sua nota final. Parece-me, no entanto, que "O Mercado dos Duendes" terá sido o poema mais difícil de traduzir precisamente por esta característica de tornar a regularidade irregular. Mesmo assim, sacrificando muitas vezes a exactidão das palavras de Christina, Margarida Vale de Gato consegue satisfatóriamente dar uma ideia do poema, tanto da sua mensagem como também da sua estrutura, ainda que, muitas vezes, a tradutora seja obrigada a torcer um pouco a estrutura original. O que é certo é que numa tradução há sempre alguma coisa que tem que ser sacrificada. Se compararmos a versão de Margarida Vale de Gato com a de Helena Barbas, veremos isso. Neste livro, a tradutora preferiu dar-nos uma noção aproximada da forma e da estrutura, e penso que a sua versão será suficiente para que essas duas questões sejam bem entendidas.

A nível temático, como dizia, este poema em muito vai de encontro aos interesses pré-rafaelitas. Para começar, a própria ideia do mercado dos duendes é muito medievalista e fantasiosa, e essas eram duas das linhas-mestras da ideologia deste grupo; e também a ideia dos frutos e da maneira como eles são descritos, cheia de colorido e de lirismo, vão muito de encontro a esta estética tão particular. E os conceitos mais gerais deste poema, que serão a tentação (Gerada pela beleza.) e a salvação (Resultante do amor.) são conceitos nada estranhos ao trabalho, quer plástico quer poético, da Pre-Raphaelite Brotherhood.

Meticulosa e inquieta, Christina, enquanto ia publicando outros livros, reeditou este seu primeiro cinco vezes, sendo que William Michael Rossetti o editou uma vez mais ainda, depois da morte da poeta, sua irmã.

Ainda sobre os poemas escolhidos do primeiro volume da autora, há que dizer que o rasgo de profunda imaginação que pauta em todos os aspectos o primeiro poema nunca é verdadeiramente perdido, ainda que os restantes poemas se afastem da matriz deste primeiro.

Ana Rosa Nobre seleccionou mais 17 poemas de "Goblin Market and Other Poems". Neles, encontramos temas mais intimistas e mais ligados à realidade emocional da autora, sendo que alguns deles se escrevem de uma forma mais reflexiva e outros mantém ainda o lado mais narrativo, como acontece com "The Convent Thresold/ No Limiar do Convento".

Seguindo estruturas mais definidas e mais clássicas, nomeadamente a do soneto, Christina fala-nos, acima de tudo, da solidão e da perda.

Estas duas noções são traçadas de várias matrizes. A primeira será a perda de uma paixão, de uma relação amorosa: nestes poemas, como "Remember/ Recorda" ou "After Death/Depois da Morte" ou "Echo/ Eco", intervém muitas vezes a morte, outro tema muito caro aos Pré-Rafaelitas. A morte é um assunto presente em quase todos os poemas deste livro. A tonalidade de agonia é essencial para entender a escrita de Christina Rossetti, pois ela parece colocar-nos continuamente perante um apodrecimento lento da vida, e, quando nos coloca em situações de morte, mantém sempre a capacidade de pensar e sentir. Nestes poemas, por assim dizer, Christina traça através de um corpo morto, o seu, uma espécie de espelho, pois é a partir dele que as situações se invertem: que o amor perdido regressa, e que a sua frieza se transforma em choro, como vemos, por exemplo, em "Depois da Morte":


Não tocou na mortalha nem no véu,

Nem p'ra me dar a mão a sua mão se ergueu;

Nem o coxim em que me estendia


Desmanchou; não me amou quando eu vivia;

Mas é bom saber que morta me deu

O seu calor, embora eu esteja fria.

(p.73)


É de notar como, nestes poemas, o olhar de Christina volta a mostrar-se-nos treinado para a atenção ao detalhe: estes poemas vivem muito de imagens, imagens criteriosamente escolhidas, pois são muitas vezes elas que ditam a energia do poema: paradas por vezes, quase mortas; outras vezes imagens de movimento, que nos dão conta de um estado de inquietude. Destas últimas, dou um exemplo, retirado de um dos poemas que leva como título "Song/ Canção":



Duas pombas pousadas num só galho,

Dois lírios gémeos a despontar,

Duas borboletas sobre uma flor:

Felizes os que os podem contemplar.

(p.77)








Christina Rossetti, que Virginia Woolf considerava "um génio" tem sido negligenciada, muito por ser mulher. A consciência desta questão não escapava à poeta. Apesar de ser considerada membro dos Pré-Rafaelitas, ela nunca o foi a tempo inteiro, pois as mulheres, à data, não tinham nem que remotamente, parte dos direitos e da liberdade que tinham os homens, pelo que o seu percurso foi sendo um bastante solitário, o de uma pessoa que se sentia "Morta Antes da Morte (Dead Before Death)"


Mudada e fria, fria e ressequida!

Lábios hirtos, olhar indiferente,

Contudo a mesma, pouco esclarecida;

Foi esta a promessa de antigamente.

(p.91)


Aqui encontramos um certo ressentimento à condição feminina, em que um estado de "pouco esclarecida", afecta o próprio corpo, o aspecto da autora, que, realmente, vemos de uma profunda tristeza nos vários retratos que dela fez Dante Gabriel Rossetti. A questão da mulher vai ser ainda essencial em dois momentos aqui antologiados. O primeiro é "Monna Innominata: Um Soneto de Sonetos", um conjunto retirado do livro "A Pageant and Other Poems", de 1881. No prefácio que escreve a este conjunto de 14 sonetos (Tantos como os versos de um soneto.), Christina fala-nos de Beatriz e Laura, imortalizadas por Dante Alighieri e Petrarca, "heroínas mundialmente famosas [que] foram precedidas por uma hoste de damas não nomeadas, "donne innominate" (...) Se uma dessas damas tivesse falado por si, talvez o retrato que nos deixasse fosse mais terno(...)" (p.145). É pois sobre o silenciamento que existe sobre as mulheres nas sociedades patricarcais e machistas que Christina se debruça nestes catorze sonetos, dos quais aqui temos quatro. A solidão e a imcompreensão são o fio de ariane que une estes textos. Não só as mulheres têm que viver na solidão de não poderem ter voz nem nome, como também têm que viver a condenação de nunca, verdadeiramente, serem entendidas em qualquer matéria. É isso que vemos no soneto 11:



Dirão de ti as gentes do porvir:

_Amou-a! _enquanto de mim, ufanas,

Hão-de dizer que te amei a fingir

Como fazem as mulheres levianas

(p.151)


e quando, no soneto 14, Christina diz


Perdida a beleza e a juventude_

Se é que algum dia o meu rosto foi belo_

Tudo perdido, foi-se a beatitude.

(p.153)



ela está, talvez discretamente, a lançar a mais dura crítica à sociedade patrircal, pois a mulher, quando perde a beleza e a juventude tem "Tudo perdido", ou seja, torna-se inútil e inexistente, pois o que na verdade lhe resta, os sentimentos e a inteligência, não são ouvidos por ninguém, anulando-a assim.

Esta distância entre o que a pessoa, neste caso a mulher, é, e o que dela é visto ou admitido é um assunto retomado em "In an Artist's Studio/ No Estúdio de um Artista", poema escrito em 1856 e só publicado postumamente


De dia e de noite o seu rosto venera,

E ela lhe devolve o olhar risonho

Brilhante como a lua e a claridade,


Sem que nunca a ensombre a saudade:

Não como é, mas como p'ra ele era;

Não como é, mas como surge em sonho

(p.191)


é possível que este poema se refira a Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddal, mas isso é irrelevante para o caso. O essencial deste poema é que o homem que venera o rosto da mulher não é capaz de o representar de acordo com aquilo que essa mulher é, mas apenas de acordo com aquilo que ele sonha (Pensa.) que ela seja. Mais uma vez, a verdadeira personalidade da mulher é anulada por uma falocracia de efeitos realmente assassinos para as mulheres.

Outro tema que é importante referir sobre esta antologia de Christina Rossetti é a do amor místico. Porque aqui, uma vez mais, se entende a modernidade desta poesia, que, recusando uma postura de pura adoração e admiração cristã, se situa muito mais na linha de uma Santa Teresa de Ávila, de uma Hadewijch de Antuérpia ou de um São João da Cruz. Longe de se transformar numa consolação para a vida, o amor espiritual escrito por Christina Rossetti ganha um lado físico, erótico e nem sempre de celebração, servindo muitas vezes como salvação. Assim vemos em "A Better Ressurrection/ Uma Melhor Ressurreição":



Minha vida é uma taça quebrada,

Taça que verte e não pode suster

De minh'alma uma só gota orvalhada

Ou doce néctar, neste frio de tolher;

Deitai ao fogo a coisa sem valor,

Fundi-a e refundi-a até enfim

Ser cálice para o meu Salvador:

Jesus, bebe de mim!

(p.109)


Ainda que a questão do amor místico seja de capital importância nalguma da poesia de Christina Rossetti, para este livro foram seleccionados poucos poemas desta temática.

Voltando às versões de Margarida Vale de Gato, penso que lhes cabe o mérito de nunca adulterarem a mensagem destes poemas, mas a opção de valorizar a forma, que não é errada, custa muitas vezes a perda de algumas subtilezas da poesia de Christina Rossetti, pelo que o ideal seria, como em todas as traduções, de resto, ser-se capaz de ler o original.

A poesia de Christina Rossetti mostra-se, acima de tudo, muito inventiva, particularmente no que toca à criação constante de imagens, trabalhadas a partir do real para uma dimensão mais lírica; que consegue sempre conciliar com estruturas regulares de rimas e de métricas, salvo nalgumas excepções. É de assinalar ainda a capacidade de Christina para o poema narrativo longo, onde, com excepção de "O Mercado dos Duendes", a poeta trabalha sobre situações do real quotidiano, como vemos acontecer um pouco em "The Convent Thresold/ No Limiar do Convento" ou, mais ainda, em "Songs in a Cornfield/ Desfolhada", onde quase se aproxima de uma poesia realista; um pouco por todo o livro "The Prince's Progress and Other Poems" de 1866, livro que parece, realmente, ser todo ele uma espécie de narrativa. É também uma poesia realmente dolorosa e atroz por vezes, que, acima de tudo, nos mostra um ser humano de rara capacidade de observação, que depois se transforma num lirismo cuidado e equilibrado.

2 comentários:

Graça Martins disse...

Muito bem. Mais uma vez fico surpreendida com as tuas análises, desta vez a propósito da irmã poeta do Pré- Rafaelita Dante Gabriel Rossetti. Acho os poemas da Christina Rossetti muito interessantes e fascinantes na sua linguagem metafórica. Tenho de procurar esse livro.

Unknown disse...

vc poderia fornecer um link pra baixar essa obra