A meia-dúzia de pessoas que eventualmente vá lendo este blog já deve ter percebido que eu sou fã de Björk a um nível bastante extremo. Quer isto dizer que, por um lado, estou bastante por dentro daquilo que tem sido o percurso dela, que é bastante desafiante, mas também que, por outro lado, me falta algum distanciamento em relação a esse mesmo percurso. Não creio que me falte sentido crítico, mas, de certa forma, talvez tenha para Björk uma predisposição, um estado de open mind, que possivelmente não terei em relação a outros projectos. Ao mesmo tempo, acho que não tiver essa capacidade de open mind, de qualquer forma nunca irá conseguir apreciar verdadeiramente o trabalho desta islandesa.
Pensemos, portanto, no que tem sido o percurso de Björk, desde 1993 (Deixemos para trás os álbuns 'Björk', de 1977 -tinha ela, portanto, 12 anos- e 'Gling Gló', de 1990, que não contém originais e se situa ainda na área do jazz.). Onde o álbum 'Debut' parecia reinventar a música de dança, 'Post' (1995) vinha revelar um lado mais polido, oscilando entre a agressividade de canções como Army of Me ou I Miss You, e a serenidade de outros como Hyperballad ou Isobel. Em 1997, 'Homogenic' vinha trazer um lado novo à musica de Björk, mais denso, fazendo a síntese entre a electrónica e o acústico. 'Vespertine' (2001) levava a experiência do álbum anterior a um novo extremo, focando-se no lado melódico das composições, particularmente através da inclusão de instrumentos como a harpa, a celesta e as caixas de música. Em 2002 e 2003, Björk parece ter-se interessado por fazer uma retrospectiva do seu percurso que, não sendo longo, era já bastante complexo: assim surgem, em 2002, o 'Greatest Hits' e a caixa 'Family Tree' e, em 2003, a 'Live Box' com registos ao vivo de cada uma das digressões.
Segue-se em 2004 um dos álbuns mais polémicos de Björk, 'Médulla', gravado parcialmente a-capella e que não caiu bem a muita gente, incluindo fãs desta artista completa. Em 2005, em tempo record, surge ainda a banda sonora para 'Drawing Restraint 9' de Matthew Barney, um trabalho ainda mais complexo e mal-entendido por ainda mais pessoas, e que já nada tem a ver com 'Selma Songs' (2000) que continha algumas das canções de 'Dancer in the Dark' de Lars Von Trier.
O álbum seguinte, 'Volta', veria a luz do dia em 2007 e, em muito, recuperava a pujança de alguns dos primeiros momentos da discografia de Björk, acrescentando-lhes uma dimensão algo ancestral que não dispensava alguns sentidos políticos bastante eloquentes em canções como Earth Intruders ou Declare Independence.
Chegados a 2011, e depois de alguns breves atrasos, tivemos finalmente acesso ao novo álbum de originais, o nono. Apresentados os conceitos e feita a primeira audição, pensa-se deste 'Biophilia' que é provavelmente o projecto mais complexo que Björk já concretizou até hoje. Depois, lembramo-nos que foi exactamente isso que pensamos no momento em que ouvimos qualquer um dos álbuns. Esta é uma das características que eu mais admiro na minha querida islandesa: parece completamente incapaz quer de se cansar quer de se resignar. Com uma carreira fulgurante como a que tem tido até agora, seria de esperar que já se tivesse repetido, ou que já tivesse acalmado a inquietude que tem originado a grandeza dos seus conceitos. Nada disso. Muito pelo contrário, a criatividade de Björk parece estar cada vez mais espicaçada e mais irrequieta. Acho que é isto que faz um grande artista, sem dúvida.
Entre a criação de apps originais para estas canções, o fabrico de instrumentos especificamente inventados para estas composições e as múltiplas investigações sobre as mais variadas e inesperadas formas de vida do nosso planeta, 'Biophilia' dificilmente poderia chegar com mais promessa. O conceito deste álbum vem colocar uma série de questões que convém não esquecer. Por exemplo, na questão do apps para as canções, podemos perguntar-nos se estas canções ficam empobrecidas sem eles (E isto interessa quando sabemos que um álbum difícil como era 'Drawing Restraint 9' era apreciado de uma forma totalmente diferente quando acompanhado das imagens do filme de Barney.). Ou então se a pesquisa sobre a biofilia (Entenda-se, o amor por tudo o que vive.) e sobre as formas de vida do planeta não seria, de certa forma, uma proposta difícil de resolver liricamente.
Começamos a ouvir Moon e percebemos que, de facto, não só não há razões para alarme, como não nos faltam razões para, mesmo tratando-se de Björk, ficarmos surpreendidos com a desenvoltura como ela resolve as dificuldades de um projecto tão ambicioso. Esta primeira faixa parece recuperar alguns aspectos do álbum 'Medulla' onde, de uma composição perfeitamente serena, subvem, de repente, uma certa violência, conseguida através da inclusão dos coros e de um trabalho bastante elaborado e subtil com a voz. A letra, escrita por Björk, é feita de um discurso proferido pela lua, acerca dos ciclos lunares, e, fazendo uso de uma dimensão algo mitológica e transfiguradora, não lhe faltam qualidades poéticas. A ideia dos ciclos lunares é aumentada no esquema instrumental, onde sequências de harpa, que contam com a habitual participação de Zeena Parkins, são repetidas, ciclicamente, mais ou menos como acontece com a lua.
Segue-se uma das melhores canções do álbum, Thunderbolt, verdadeiro momento de um romantismo dramático, tanto pela letra, que nos fala de um amor universal
my romantic gene is dominant
and it hungers for union
universal intimacy
all embracing
como pelo esquema instrumental, onde a electrónica ajuda a criar uma sonoridade grave e pesada, mas sóbria apesar de tudo, a fazer um contrapeso perfeito para a voz, sensual e exacerbada, contrapeso esse que confere à canção um equilíbrio perfeito. A questão da pausa é também bastante importante nesta canção, que várias vezes pára para respirar, o que representa o tempo de espera entre o momento em que vemos um relâmpago e o momento em que o ouvimos.
Crystalline parece trazer de volta algumas questões que existiam já num álbum como 'Post', e que em muito se prendem com um lado mais expansivo, quase dançavel, da música de Björk. Neste caso, os sons estridentes do gameleste (Uma nova versão da celesta, concebida na Islândia para este 'Biophilia'.) que começam a canção vão criando uma estrutura bastante definida com a voz, que nos canta sobre a formação de cristais, e o esquema instrumental vai crescendo e acrescentando alguns elementos de percussão e alguns momentos de pausa. Este jogo é colmatado, no final, com um segmento de percussão e electrónica bastante mais pesado, que, tal como acontecia em Army of Me, nos faz pensar um pouco em drum'n'bass ou até em rock, universos que, de resto, Björk soube sempre incorporar na sua música.
Segue-se Cosmogony, outro dos temas a que tivemos acesso ainda antes do lançamento do álbum, e que, de certa forma, tem a letra que melhor poderia ser a génese de 'Biophilia', centrando-se sobre a questão da origem da vida e do universo, dando-nos uma espécie de imagem geral, dentro da qual cada uma das restantes canções se centra num pormenor. Musicalmente, a canção é construída em torno dos arranjos de sopro, um pouco como já vinha acontecendo desde 'Drawing Restraint 9', acabando a canção por ser uma das mais despidas do álbum, fazendo a voz uma espécie de discurso sereno.
Dark Matter segue mais ou menos a mesma lógica, ainda que deposite na dimensão electrónica um papel importante, acabando no entanto a canção por se fazer valer da sua leveza, como que remetendo-nos para a impossibilidade de ver a matéria negra.
Sobriedade é ainda a lei que parece reger a canção seguinte, Hollow, que, de certa forma, quase faz uma síntese entre 'Medulla' e 'Volta'. A utilização do arranjo de órgão com os coros resulta numa canção de certa forma assustadora, ou tenebrosa mesmo, e o som dos coros atrás da voz de Björk parece ser a melhor maneira de ultimar o tema da letra, que se prende com a presença dos nossos antepassados no nosso corpo, através do ADN. Os coros que ressoam atrás da voz principal parecem dar voz a esses antepassados. Quase no final da canção, a linha de electrónica parece ocupar o lugar desse 'colar' que é o ADN, movimentando-se entre todas as vozes e o órgão.
Um pouco a recuperar o dramatismo lírico de Thunderbolt, mas bastante diferente dessa canção em tudo o resto, surge Virus, uma interpretação romântica da relação entre um vírus e a célula que ele ocupa. A letra, no mesmo tom quase fatalista de Thunderbolt, narra esta história de um ponto de vista invulgar, fazendo da fusão parasitária do vírus uma forma derradeira de amar o corpo a que se agarra, como se quisesse juntar-se-lhe para sempre. Já musicalmente, a utilização da gameleste, num registo bastante diferente de Crystalline, começa por orientar a canção sem se fazer ouvir demasiado e, no decorrer desta, vai dominando tudo, sobrepondo-se, no final, à própria voz, ou seja, recriando um pouco o efeito que um vírus tem numa célula.
Canção de excelência é também Sacrifice, que nos apresenta outro instrumento original, o sharpsichord, espécie de cravo modificado, que é o acompanhamento perfeito, dramático mas não sentimental, para a história de auto-sacrifício de que fala a letra. A voz sibila sobre o som deste instrumento, num tom que está entre o acusatório e o comovido. No final, as percussões electrónicas vêm dar algum movimento mais à canção, como se as exigências feitas pelo narrador, dirigidas ao Homem em nome da Terra, começassem a ser cumpridas.
O órgão regressa em Mutual Core, num registo consideravelmente menos lúgubre do que o de Hollow. A composição é bastante discreta e harmónica, surgindo quase como pano de fundo à voz que, neste caso, tem o protagonismo. A meio, a electrónica vem recuperar aquele sabor a drum'n'bass que Crystalline também já continha, e assim uma canção perfeitamente discreta se transforma num momento explosivo e emotivo, que recusa completamente a simetria, preferindo a todo o momento recuar, avançar de novo, oscilando entre as duas facetas extremas que a canção parece conter. Mutual Core é outra das grandes canções de 'Biophilia'.
A fechar o álbum, temos Solstice, uma letra de Sjón, outra colaboração já antiga, musicada por Björk. O poema, apesar de ser o único escrito por outra pessoa que não Björk, adequa-se perfeitamente aos conceitos do álbum. A análise do solstício, em relação com o efeito da gravidade, é legitimada no esquema instrumental pelas harpas-de-gravidade, que funcionam segundo uma estrutura pendular. É outro caso em que o que é realçado é a voz, numa espécie de diálogo com o fundo instrumental bastante simples e harmonioso, recriando, nalguns aspectos, aquilo que acontecia com Moon, como se o álbum se reiniciasse na sua última faixa.
Acima de tudo, 'Biophilia', independentemente do seu alinhamento, parece funcionar como uma espécie de universo próprio. Não é inteiramente analítico, pois isso implicaria um certo distanciamento face ao que é analisado, ao passo que estas canções são escritas não raras vezes na primeira pessoa. 'Biophilia' é todo um projecto complexo e profundamente intelectual mas que, de certa forma, para ser experienciado precisa, acima de tudo, de ser sentido. É um álbum emotivo e exacerbado, que não negligencia o pressuposto do amor por todas as formas de vida. Os seus pontos de vista são frequentemente surpreendentes e insólitos. Como seria de esperar, Björk não esgota na escrita das letras o tema da natureza. Isto porque está longe de ser gratuita a criação dos novos instrumentos para este álbum. Pelo contrário, nota-se o objectivo de encontrar novas sonoridades, sons que tenham algo de telúrico e de orgânico e que se esquivem de criar para as letras fundos instrumentais que nada tenham que ver com elas. Pelo contrário, todas as composições e todos os esquemas instrumentais são pensados ao pormenor para servirem o tema que tratam, e é por isso que tudo, nestas canções, canta esse amor pela natureza.
Como parece ser seu hábito, Björk excede as expectativas e excede-se a si mesma, provando que um conceito desta polivalência e desta densidade não é demasiado ambicioso para as suas capacidades criativas. Este é um álbum realmente novo, que dificilmente poderíamos aproximar muito de qualquer outro dos álbuns passados, ainda que, deles, 'Biophilia' vá colhendo um ou outro aspecto, no sentido de o reinventar e ampliar.
Mais ainda, este não é um álbum que possamos definir com as diferenças entre o acústico e o electrónico, porque muito nele é completamente inédito, e recusa categorizar-se por aquilo que essas definições habitualmente comportam. Björk faz-se acompanhar de uma equipa bastante competente, que conta com algumas participações nada recentes, como é o caso de Zeena Parkins, mas também dos Matmos, de Mark Bell, de Damien Taylor, Leila Arab ou Matthew Herbert. Esta questão está longe de ser secundária, uma vez que é muito importante quando se trabalha com conceitos desta delicadeza, fazê-lo com aqueles que melhor conhecem a dinâmica de trabalho de Björk.
Uma vez mais, Björk apresenta-nos um disco entusiasmante e assombroso, que apetece ouvir repetidamente e nos deixa bastante curiosos sobre o que fará ela a seguir.
Entre a criação de apps originais para estas canções, o fabrico de instrumentos especificamente inventados para estas composições e as múltiplas investigações sobre as mais variadas e inesperadas formas de vida do nosso planeta, 'Biophilia' dificilmente poderia chegar com mais promessa. O conceito deste álbum vem colocar uma série de questões que convém não esquecer. Por exemplo, na questão do apps para as canções, podemos perguntar-nos se estas canções ficam empobrecidas sem eles (E isto interessa quando sabemos que um álbum difícil como era 'Drawing Restraint 9' era apreciado de uma forma totalmente diferente quando acompanhado das imagens do filme de Barney.). Ou então se a pesquisa sobre a biofilia (Entenda-se, o amor por tudo o que vive.) e sobre as formas de vida do planeta não seria, de certa forma, uma proposta difícil de resolver liricamente.
Começamos a ouvir Moon e percebemos que, de facto, não só não há razões para alarme, como não nos faltam razões para, mesmo tratando-se de Björk, ficarmos surpreendidos com a desenvoltura como ela resolve as dificuldades de um projecto tão ambicioso. Esta primeira faixa parece recuperar alguns aspectos do álbum 'Medulla' onde, de uma composição perfeitamente serena, subvem, de repente, uma certa violência, conseguida através da inclusão dos coros e de um trabalho bastante elaborado e subtil com a voz. A letra, escrita por Björk, é feita de um discurso proferido pela lua, acerca dos ciclos lunares, e, fazendo uso de uma dimensão algo mitológica e transfiguradora, não lhe faltam qualidades poéticas. A ideia dos ciclos lunares é aumentada no esquema instrumental, onde sequências de harpa, que contam com a habitual participação de Zeena Parkins, são repetidas, ciclicamente, mais ou menos como acontece com a lua.
Segue-se uma das melhores canções do álbum, Thunderbolt, verdadeiro momento de um romantismo dramático, tanto pela letra, que nos fala de um amor universal
my romantic gene is dominant
and it hungers for union
universal intimacy
all embracing
como pelo esquema instrumental, onde a electrónica ajuda a criar uma sonoridade grave e pesada, mas sóbria apesar de tudo, a fazer um contrapeso perfeito para a voz, sensual e exacerbada, contrapeso esse que confere à canção um equilíbrio perfeito. A questão da pausa é também bastante importante nesta canção, que várias vezes pára para respirar, o que representa o tempo de espera entre o momento em que vemos um relâmpago e o momento em que o ouvimos.
Crystalline parece trazer de volta algumas questões que existiam já num álbum como 'Post', e que em muito se prendem com um lado mais expansivo, quase dançavel, da música de Björk. Neste caso, os sons estridentes do gameleste (Uma nova versão da celesta, concebida na Islândia para este 'Biophilia'.) que começam a canção vão criando uma estrutura bastante definida com a voz, que nos canta sobre a formação de cristais, e o esquema instrumental vai crescendo e acrescentando alguns elementos de percussão e alguns momentos de pausa. Este jogo é colmatado, no final, com um segmento de percussão e electrónica bastante mais pesado, que, tal como acontecia em Army of Me, nos faz pensar um pouco em drum'n'bass ou até em rock, universos que, de resto, Björk soube sempre incorporar na sua música.
Segue-se Cosmogony, outro dos temas a que tivemos acesso ainda antes do lançamento do álbum, e que, de certa forma, tem a letra que melhor poderia ser a génese de 'Biophilia', centrando-se sobre a questão da origem da vida e do universo, dando-nos uma espécie de imagem geral, dentro da qual cada uma das restantes canções se centra num pormenor. Musicalmente, a canção é construída em torno dos arranjos de sopro, um pouco como já vinha acontecendo desde 'Drawing Restraint 9', acabando a canção por ser uma das mais despidas do álbum, fazendo a voz uma espécie de discurso sereno.
Dark Matter segue mais ou menos a mesma lógica, ainda que deposite na dimensão electrónica um papel importante, acabando no entanto a canção por se fazer valer da sua leveza, como que remetendo-nos para a impossibilidade de ver a matéria negra.
Sobriedade é ainda a lei que parece reger a canção seguinte, Hollow, que, de certa forma, quase faz uma síntese entre 'Medulla' e 'Volta'. A utilização do arranjo de órgão com os coros resulta numa canção de certa forma assustadora, ou tenebrosa mesmo, e o som dos coros atrás da voz de Björk parece ser a melhor maneira de ultimar o tema da letra, que se prende com a presença dos nossos antepassados no nosso corpo, através do ADN. Os coros que ressoam atrás da voz principal parecem dar voz a esses antepassados. Quase no final da canção, a linha de electrónica parece ocupar o lugar desse 'colar' que é o ADN, movimentando-se entre todas as vozes e o órgão.
Um pouco a recuperar o dramatismo lírico de Thunderbolt, mas bastante diferente dessa canção em tudo o resto, surge Virus, uma interpretação romântica da relação entre um vírus e a célula que ele ocupa. A letra, no mesmo tom quase fatalista de Thunderbolt, narra esta história de um ponto de vista invulgar, fazendo da fusão parasitária do vírus uma forma derradeira de amar o corpo a que se agarra, como se quisesse juntar-se-lhe para sempre. Já musicalmente, a utilização da gameleste, num registo bastante diferente de Crystalline, começa por orientar a canção sem se fazer ouvir demasiado e, no decorrer desta, vai dominando tudo, sobrepondo-se, no final, à própria voz, ou seja, recriando um pouco o efeito que um vírus tem numa célula.
Canção de excelência é também Sacrifice, que nos apresenta outro instrumento original, o sharpsichord, espécie de cravo modificado, que é o acompanhamento perfeito, dramático mas não sentimental, para a história de auto-sacrifício de que fala a letra. A voz sibila sobre o som deste instrumento, num tom que está entre o acusatório e o comovido. No final, as percussões electrónicas vêm dar algum movimento mais à canção, como se as exigências feitas pelo narrador, dirigidas ao Homem em nome da Terra, começassem a ser cumpridas.
O órgão regressa em Mutual Core, num registo consideravelmente menos lúgubre do que o de Hollow. A composição é bastante discreta e harmónica, surgindo quase como pano de fundo à voz que, neste caso, tem o protagonismo. A meio, a electrónica vem recuperar aquele sabor a drum'n'bass que Crystalline também já continha, e assim uma canção perfeitamente discreta se transforma num momento explosivo e emotivo, que recusa completamente a simetria, preferindo a todo o momento recuar, avançar de novo, oscilando entre as duas facetas extremas que a canção parece conter. Mutual Core é outra das grandes canções de 'Biophilia'.
A fechar o álbum, temos Solstice, uma letra de Sjón, outra colaboração já antiga, musicada por Björk. O poema, apesar de ser o único escrito por outra pessoa que não Björk, adequa-se perfeitamente aos conceitos do álbum. A análise do solstício, em relação com o efeito da gravidade, é legitimada no esquema instrumental pelas harpas-de-gravidade, que funcionam segundo uma estrutura pendular. É outro caso em que o que é realçado é a voz, numa espécie de diálogo com o fundo instrumental bastante simples e harmonioso, recriando, nalguns aspectos, aquilo que acontecia com Moon, como se o álbum se reiniciasse na sua última faixa.
Acima de tudo, 'Biophilia', independentemente do seu alinhamento, parece funcionar como uma espécie de universo próprio. Não é inteiramente analítico, pois isso implicaria um certo distanciamento face ao que é analisado, ao passo que estas canções são escritas não raras vezes na primeira pessoa. 'Biophilia' é todo um projecto complexo e profundamente intelectual mas que, de certa forma, para ser experienciado precisa, acima de tudo, de ser sentido. É um álbum emotivo e exacerbado, que não negligencia o pressuposto do amor por todas as formas de vida. Os seus pontos de vista são frequentemente surpreendentes e insólitos. Como seria de esperar, Björk não esgota na escrita das letras o tema da natureza. Isto porque está longe de ser gratuita a criação dos novos instrumentos para este álbum. Pelo contrário, nota-se o objectivo de encontrar novas sonoridades, sons que tenham algo de telúrico e de orgânico e que se esquivem de criar para as letras fundos instrumentais que nada tenham que ver com elas. Pelo contrário, todas as composições e todos os esquemas instrumentais são pensados ao pormenor para servirem o tema que tratam, e é por isso que tudo, nestas canções, canta esse amor pela natureza.
Como parece ser seu hábito, Björk excede as expectativas e excede-se a si mesma, provando que um conceito desta polivalência e desta densidade não é demasiado ambicioso para as suas capacidades criativas. Este é um álbum realmente novo, que dificilmente poderíamos aproximar muito de qualquer outro dos álbuns passados, ainda que, deles, 'Biophilia' vá colhendo um ou outro aspecto, no sentido de o reinventar e ampliar.
Mais ainda, este não é um álbum que possamos definir com as diferenças entre o acústico e o electrónico, porque muito nele é completamente inédito, e recusa categorizar-se por aquilo que essas definições habitualmente comportam. Björk faz-se acompanhar de uma equipa bastante competente, que conta com algumas participações nada recentes, como é o caso de Zeena Parkins, mas também dos Matmos, de Mark Bell, de Damien Taylor, Leila Arab ou Matthew Herbert. Esta questão está longe de ser secundária, uma vez que é muito importante quando se trabalha com conceitos desta delicadeza, fazê-lo com aqueles que melhor conhecem a dinâmica de trabalho de Björk.
Uma vez mais, Björk apresenta-nos um disco entusiasmante e assombroso, que apetece ouvir repetidamente e nos deixa bastante curiosos sobre o que fará ela a seguir.
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