quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

José Saramago: Claraboia

APENAS UM HOMEM QUE PENSA

Que entre a 'Terra do Pecado' (1947) e 'Os Poemas Possíveis' (1966) existia um outro livro de José Saramago foi coisa que, estando desde há algum tempo dito pelo próprio autor, só recentemente voltou a ser falado. 
Estamos no início de 1953 quando Saramago termina a redacção do seu segundo romance. 'Claraboia' é enviado à Editorial Notícias que só responderá ao autor já nos anos 90, quando o autor já não desejava ver o romance publicado. Deixou, no entanto, a Pilar del Rio, a decisão de, postumamente, editar ou não o livro.

Chegados a 2011, o romance é editado, e dificilmente poderíamos louvar mais a decisão de Pilar. Isto porque, e desde já o afirmo, 'Claraboia' é um grande romance. Escrito aos 31 anos, de imaturidade só poderemos falar de compararmos este romance com os que viriam, principalmente a partir de 'Levantado do Chão' (1980), e apenas de um ponto de vista estilístico. Se 'Claraboia' fica a dever alguma coisa aos romances que Saramago viria a escrever, é apenas no que toca a questões formais, questões de escrita. No resto, e que, a mim, me parece mais importante, este livro é plenamente conseguido e, se lhe faltam aqueles ritmos e aquelas marcas escritas que chegariam depois, 'Claraboia' é escrito com uma simplicidade desarmante, que em muito poderá ser uma excelente introdução a uma obra magnífica, que inclui romances tão importantes como 'Memorial do Convento' (1982), 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo' (1991), 'Ensaio sobre a Cegueira' (1995) ou 'Ensaio sobre a Lucidez' (2005).
'Claraboia' abre com a seguinte citação de Raul Brandão

Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido.

e este aforismo, de certa forma, é a génese deste livro. José Saramago apresenta-nos um prédio modesto em Lisboa, com seis apartamentos, e, como se operasse um corte no edifício, mostra-nos aquilo que acontece dentro de cada apartamento, e as relações que se tecem, mais intensas ou menos, no espaço comum, ou seja, entre os vários inquilinos. Um sapateiro e a sua mulher, um casal conflituoso constituído por um caixeiro e a sua mulher espanhola, mais o filho de seis anos, uma viúva velha que vive com as suas duas filhas e a irmã, uma bela mulher, amante por conta de um empresário rico, um casal que se odeia e se despreza, marcado pela morte da única filha e um último casal mais aparentemente funcional, que vive com a filha de dezanove anos, os três algo perdidos numa série de delírios pretensiosos.
Um dos aspectos que mais impressiona neste 'Claraboia' é o seu extraordinário arranque. O primeiro capítulo deste romance funciona como uma espécie de curta-metragem, em que Saramago parece seguir, com uma câmara, desde o rés-do-chão, o começar do dia de cada um dos apartamentos, fazendo as transições sempre a partir do espaço comum das escadas, não inserindo, portanto, um corte abrupto de um apartamento para o outro. Este efeito é fortíssimo e, num movimento contínuo, dá-nos uma primeira visão do que se passa naquele prédio.
O que se segue serão vários capítulos, centrando-se cada um, alternadamente, sobre o que sucede dentro de cada um dos apartamentos. Com uma lucidez que não pode deixar de ser notada, Saramago analisa problemas que, começando numa dimensão familiar, se estendem a uma análise que se prende com uma série de questões sociais, tornando-se o livro, discretamente, uma profunda reflexão sobre a vida daquelas pessoas, e o que, nelas, é símbolo de um grupo maior. Assim nos parece tão pungente o ódio entre Justina e  Caetano, gerado possivelmente pela incapacidade de fazer um luto saudável por Matilde, a filha morta, cujo retrato sorridente parece observar a casa e de alguma forma comprometer o que nela se vive; ou então os conflitos entre Emílio e Carmen, ele inerte e indefinido, e ela irascível ao ponto da histeria, junção que só pode confundir o pequeno Henrique, que não parece capaz de compreender a natureza real dos afectos que o ligam aos pais ou ou a sensação de que dentro da casa de Amélia, Cândida, Adriana e Isaura, o tempo pára, como se a casa fosse uma espécie de organismo fechado e autónomo em relação ao mundo.
No entanto, a narrativa é praticamente iniciada quando Silvestre, o sapateiro, e Mariana, a sua mulher, decidem alugar um quarto que têm vazio. Abel é o jovem que se muda, e que, com Silvestre, estabelece um diálogo sobre a utilidade e a finalidade da vida. Estas discussões que os dois mantém parecem ser como fulcros, à volta dos quais irradiam os efeitos práticos dessa vida que ali é discutida.
Os personagens surgem sempre dentro das suas casas, existindo o exterior apenas em conversas ou memórias dos seus habitantes. No entanto, nada em 'Claraboia' é claustrofóbico. Se assim é, é porque o que Saramago criou neste prédio é uma espécie de mundo, a que nada mais faz falta do que, neste caso, o que existe dentro das suas paredes, talvez porque mais importante de tudo seja esse interior escondido de que falava Raul Brandão e que Saramago aqui expõe. O facto de este prédio não ser nunca especificado, ou seja, de nada sabermos quanto à sua localização precisa -sabemos apenas que é na grande Lisboa- nem das suas características arquitectónicas, só vem reforçar essa ideia de que este prédio é um mundo, é um exemplo do mundo, que poderia ser qualquer prédio em qualquer lugar. Afirmar isto sobre um romance que, apesar de só agora vir a lume, foi escrito em 1953, significa ainda dizer que este romance não envelheceu e que nada, nem nos seus assuntos, nem na sua escrita, realmente envelheceu até aos dias de hoje. Bem pelo contrário, neste romance ressoam uma série de dificuldades económicas que se fazem sentir precisamente nos dias de hoje. O essencial, mesmo assim, de 'Claraboia' são os aspectos das relações humanas e Saramago escreve decididamente sobre elas, sem distracções. Ora, se as relações humanas, como sabemos, se vão mantendo sempre, é o facto de Saramago escrever sem distracções que garante ao romance o seu não envelhecimento, pois o que envelhece, nas melhores obras, são os ornamentos e as distracções que essas, já se sabe, vão e vêm. Mas não podem envelhecer coisas como os sentimentos contraditórios entre as pessoas, a sensação de que se vive sem saber porquê, a procura do nosso lugar no mundo, o despertar da sexualidade, as aspirações que temos para a vida, as pretensões de ascender de determinado estrato social, a noção de que não nos inserimos na maioria, ou as formas de dependência que temos pelos outros.


As vidas de cada um dos inquilinos vão seguindo o seu curso e, discretamente, vão-se criando condições para que alguns deles se vejam enredados numa espécie de intriga, que culmina no final do livro, e que vem abalar, de certa forma, o estado em que, no início, encontramos o prédio. Esta intriga, no entanto, parece também ela ser secundária àquilo que é o mais importante do romance, é que é o revelar daquilo que está escondido, e que nos mostra como, efectivamente, as casas são um prolongamento das próprias pessoas. De facto, em parte nenhuma nos é dito sequer que o prédio tem uma claraboia, mas essa claraboia, seja como for, existe, e ela é a escrita, pois é no exercício da escrita que o autor revela aquilo que são estas personagens.
No diálogo do último capítulo, Silvestre, que parece ocupar nesta narrativa um lugar algo central, aquele que observa a vida e lhe destrinça os sentidos, descreve-se como apenas um homem que pensa (p.394). Se não noutros aspectos, pelo menos neste, Silvestre é uma projecção do próprio José Saramago, já aos 31 anos. E isso lhe bastou para escrever um romance que, apesar do estranho destino que teve, é um romance maduro, nítido e edificante. Como uma casa, de resto.

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