domingo, 14 de novembro de 2010

Wanda Ramos: Que Rio Vem Forçar a Entrada Desta Casa

O TEMPO, O CORPO E A FALA

Eis-me de novo aqui a exprimir a minha opinião sobre um livro de Wanda Ramos. Aparentemente, o acesso à sua poesia tem-me sido estranhamente simplificado. Neste caso, a “Que Rio Vem Forçar a Entrada Desta Casa?”, publicado no mesmo volume de “A Jovem Poesia Portuguesa” (ed. Limiar) que “Estilhaços” de Eduarda Chiote e “Ruído Fino” de João Camilo em 1979.
A publicação desta sequência surge apenas dois meses depois da plaquete “E Contudo Cantar Sempre” (ed. Inova), a estreia, se não considerarmos a edição de autor “Nas Coxas do Tempo


“Que Rio Vem Forçar a Entrada Desta Casa?” revela-se, no entanto, um conjunto muito coeso e muito denso, mais até do que os seus predecessores. E também mais consciente no que toca às difíceis relações entre o sentimento e a criação ou, de outra forma, entre o sujeito biográfico e o sujeito poético.
Em epígrafe, Wanda Ramos escreve “desminto a tua forma e o teu fundo, tornando tu embora razão próxima desta fala.” (pag.61). Uma frase esclarecedora no que toca a este assunto.
De facto, ao longo deste livro, vamos percebendo como a fala se torna uma forma de perpetuar os sentimentos e anular o tempo. São estas duas vertentes muito claras do curto percurso poético da autora. Por um lado, a fala, as palavras, que surgiriam mais à frente até em título, “Intimidade da Fala” (1983, ed &etc), a necessidade de encontrar uma maneira de não deixar escapar o que fica atrás no tempo, “Nas Coxas do Tempo” (É um título péssimo, mas tudo bem.), o tempo, essa constante que nos empurra para o esquecimento do passado.
Relativamente ao livro anterior, este mantém ainda uma atmosfera de depressão e de tristeza. Por assim dizer, a poesia de Wanda Ramos não procura a “alegria do passado” (Luís de Camões), não tenta relembrar a luminosidade da vida. Antes se depara com uma necessidade de falar mormente do lado sombrio dos sentimentos, como aliás, lemos logo no primeiro poema, “Inaptidão”, mais precisamente na sua quarta secção: “E esta fermentação no percurso de mim/ que o dia impõe à noite e a noite à manhã./ Oponho-lhe o ritmo. Prossegue ainda./ Mas tão raramente me fala de alegria.” (pag.65)

A escrita surge, então, como uma necessidade biográfica, mesmo que tão raramente fale de alegria, ela é uma imposição da própria vida, independentemente do tempo. Porque “Incompletas são as horas em que atento” (…) “E prevejo o nevoeiro oblíquo/ das mãos que escrevem e o desperdício/ do meu corpo em tanto papel incólume.” (pag.66)
Surge também neste conjunto uma presença do corpo mais forte e mais cortante do que em “E Contudo Cantar Sempre”. Uma noção de corpo enquanto elemento efémero e perecível, que, acima de tudo, é um recipiente de todas as experiências da vida. É de referir que, entre os finais dos anos 70 e durante os anos 80, uma série de poetas, entre os quais podemos citar Isabel de Sá, Luís Miguel Nava, Fátima Maldonado, Paulo da Costa Domingos, Rosa Alice Branco, Joaquim Manuel Magalhães ou Helga Moreira, contrariam a tendência mais “espiritualista” de um certo tipo de poesia que era apreciada até então, e enveredam por um caminho em que este “espírito” assume o corpo como sua casa, numa vertente mais característica, uma vez mais por exemplo, de Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge, Natália Correia ou Gastão Cruz. Wanda Ramos não escapa a esta tendência, e escapa ainda menos neste volume do que nos anteriores. Não é isto um defeito, pelo contrário.
Mas, assim sendo, o corpo vem dar uma espécie de dimensão física ao que é vivido. Na própria frase “Tão sem mácula esta imobilidade/ à espera de que a mágoa em mim estilhace.” (pag.67) evidencia um tratamento mais físico da própria tristeza, essa que advinha e se revelava na fala, e que agora se torna também corpórea. Corpórea como se tornará a própria fala, mais à frente. No poema que dá título ao livro (pag.80), lemos “monólogo que necessariamente em mim recai/ com a língua árdua”. Não só a fala e o discurso assumem um corpo, uma personificação, como também se assumem dolorosos, “árduos” ou até mesmo forçados porque “enquanto a memória não cede. enquanto se projecta.// digo: que rio vem forçar a entrada desta casa?”. Parece-me, então, que este será o aspecto maior e mais marcante na poesia de Wanda Ramos: a fala e a escrita (Que podem ser um só.) como única forma de subsistência a uma vida que tem mais de deprimente do que de feliz ou eufórico; ainda que mesmo assim sejam, por vezes, insuficientes, porque “não servem as palavras este desafio”. Talvez por isso nunca lemos aqui um tom de queixume, antes um relato interiorizado e interior, de alguém a quem “nem já nada agora me urge senão o despedir dos dias” (pag.90).

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