Terminei a leitura do primeiro romance de Natália Correia. Publicado em 1946, "Anoiteceu No Bairro" é um livro que surpreende ao tratar-se do primeiro romance de uma escritora. E surpreende primeiro pela ousadia na composição e na própria concepção da história, depois pela prodigiosa análise social que parece tocar em todos os tipos de pessoas que nos rodeiam, e por fim pela linguagem poética e acessível de que a escritora açoreana faz uso.
De facto, "Anoiteceu no Bairro" centra-se na personagem de Luísa, mas não se limita a esta, bem pelo contrário. É a gente do Bairro do Quebra-Potes que faz a história. Desde o avarento merceeiro á mãe de família que estupidamente se subordina ao marido, ao vendedor de castanhas assadas á menina de boas famílias que engravida e aborta.
É também, quando visto de uma forma mais atenta, um manifesto feminista e social: se, por um lado, vemos a completa estupidificação de algumas mulheres, por outro vemos a vontade de luta e de independência por parte de outras. E, numa fase mais avançada, e numa dimensão mais profunda, a luta de um povo, o português, que vive de costas para o futuro e virado para as histórias do passado que já se contam sem convicção.
É preciso ter em conta que este romance foi publicado ainda em plena ditadura salazarista, o que certamente tem o seu peso. Mas, há uma enorme ousadia, um atrevimento revolucionário nestas linhas. Há o retrato realista dos podres de pessoas que vivem de aparências, há tudo o que normalmente se quer escamotear.
Natália Correia tem aqui um texto que já demonstra muitas das características que haviam de se fazer notar ao longo de toda a sua carreira: na poesia, que incia no ano seguinte com "Rio de Nuvens", no romance, que retoma nos anos oitenta, e no teatro.
Este é um romance sem poder suficente para competir com "A Madona" ou sem carisma suficiente para competir com "As Núpcias", mas é, certamente, o mais realista de todos, seguindo tanto uma linha ideológica mais queiroziana, mas tambem um pensamento ligado a Nietsze, e uma estrutura narrativa que remete a Dostoyevski ou Tolstoi.
Veredicto: 18/20
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