quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Travelling III


Limpei os óculos a uma mulher a quem esqueci o nome.
Nunca lho perguntei. Foi um acto de amor. Falámos e de tudo o que dissémos
nada foi importante.
Jamais senti desejo de revê-la.
Despedi-me de seu corpo
rasguei-o sem perder-me.

Tudo isso e o ladrar de um cão
ficará na memória.
Talvez renasça um dia numa saga. Comigo
passa-se com os animais o mesmo que se passa com as pessoas.
gosto deles mas temo aproximar-me. Sinto-me tão exterior às coisas.
Uso-as com o máximo de desonestidade
mas isso não me preocupa,
tenho a vida inteira à minha frente para sentir remorso.


Eduarda Chiote
Travelling
1983, ed. O Oiro do Dia (com "Quem Não Vier do Sul" de Helga Moreira)
pintura de Vanessa Chrystie

1 comentário:

Graça Martins disse...

absolutamente incrível!!!
A Eduarda era um homem noutra reencarnação, não duvido. Claro que estou a brincar, porque na poesia dela não existe o pinga amor. Só lucidez...