sábado, 2 de abril de 2011

Lídia Jorge: A Noite das Mulheres Cantoras

THE SHOW MUST GO ON


Mesmo no início de 2011 surge-nos o décimo romance de Lídia Jorge, o primeiro desde 2007, altura em que editou "Combateremos a Sombra".

Numa autora que começa a publicar em 1980 -com "O Dia dos Prodígios"-, apesar de uma produção relativamente escassa, é o suficiente para que se entendam algumas questões que dizem directamente respeito à escrita de Lídia Jorge. A primeira de todas e, a meu ver, a mais importante, é que estes dez romances desenham, sem sombra de dúvida, um projecto: um projecto, no sentido em que existe uma relação entre todos os romances, os passados, os presentes e, provavelmente, os futuros. Tal coerência é conseguida, acima de tudo, por aquilo que parece ser uma verdade e uma convicção nessa verdade. Trata-se da verdade da autora, daquilo que constituirá o seu mundo, o seu sistema de referências, as suas preocupações e os seus objectivos, as suas obsessões. Precisamente isto faz com que Lídia Jorge seja, afinal, um dos nomes maiores da nossa literatura.

Não é, portanto, de estranhar que em "A Noite das Mulheres Cantoras" venhamos encontrar algumas problemáticas que já antes, ainda que de outras formas, encontrávamos nos romances da autora. Alguns exemplos que me parecem mais significativos: em primeiro lugar, a questão da memória, que tem sido o principal interesse desta escrita e que tem sido directamente abordada em todos os livros. "A Noite das Mulheres Cantoras", tal como "Combateremos a Sombra" abre com uma ideia que aborda directamente a dicotomia memória/esquecimento. O outro exemplo que me parece crucial é o do tempo, da mudança que o tempo implica. Aqui, encontramos o nascimento do "império minuto", focado com a mesma nitidez e a mesma crueza com que era focada a despersonalização de um povo influenciado por culturas estrangeiras em "O Cais das Merendas" (1982). Mais ainda, a análise aos mecanismos que regem a criação artística era um dos assuntos mais importantes em "O Jardim sem Limites" (1995).

Penso que, inclusivamente, o facto de neste novo romance encontrarmos algumas preocupações já expressas em livros tão distanciados no tempo, é prova evidente desse "projecto de escrita" de que falei a propósito de Lídia Jorge.

Este "A Noite das Mulheres Cantoras" abre com uma nota que explica a origem do romance, ou do monólogo que o constitui, ainda que a autora assuma que "não existem verdadeiros monólogos." (p.9): essa origem é o texto de abertura, Noite Pefeita, passado no tempo presente, em que Solange de Matos se encontra assistindo a um concerto de cinco cantoras, uma das quais é Gisela Batista, que, no final dos anos 80, integrara uma banda de que Solange também fazia parte. A noite conta com dois momentos inesperados: o primeiro será o reencontro entre Solange e João de Lucena e o segundo a revelação que Gisela faz, de que Solange havia sido a autora de todas as letras do disco que a banda havia gravado há 21 anos atrás, verdade que só agora acabaria por ser revelada.

Além destas duas surpresas, é deixada no ar a sensação de que há alguma mentira no discurso de Gisela: uma mentira que se relaciona com a ausência de Madalena Micaia, outra das integrantes da antiga banda.

É também ao longo desta noite que nos cruzamos com a noção de "império minuto", um império de "Momentos de tal modo concentrados que, ainda que ocupassem mais de meia hora, na percepção da assistência, cada prestação deveria parecer não durar mais que um segundo" (p.15), em que "tudo o que for eficaz, para ser perfeito, não poderá deixar de ser extremamente rápido." (p.15).

Na verdade, além da descoberta de algumas verdades relativamente ao que havia sido o passado daquelas mulheres, este texto é importante na medida em que, ao longo dos vinte capítulos propriamente ditos, ele será a chave para entender aquilo que une e separa os seus intervenientes mas, principalmente, aquilo que move Solange de Matos.

Os vinte capítulos são narrados por Solange e, linearmente, demonstram-nos a formação da banda das cinco mulheres cantoras, desde que a banda se forma até à gravação de um LP, ao qual se seguiria, em princípio, um grande concerto no Coliseu dos Recreios. No entanto, aquilo que marca a diferença entre uma simples narrativa descritiva ou analítica é precisamente a escolha que Lídia Jorge faz, de manter toda a narrativa entregue à percepção de Solange. É, como já foi dito pela autora em várias entrevistas, um romance psicológico, pois ele depende inteiramente da visão de Solange sobre os factos.

Solange, aos 19 anos, era uma rapariga que "vivia sobre a pele do mundo" (p.30): originária de África, depois da revolução, vivera na província e, naquele ano, muda-se para Lisboa, onde estudará Sociologia, vivendo numa hospedaria ao Campo Pequeno. A sua vida só muda quando, num almoço sindical a que os pais lhe haviam pedido que comparecesse, ela se cruza com duas colegas da Faculdade que, não conhecendo pessoalmente, admirava, desde que as vira cantar num evento universitário. São as duas irmãs Maria Luísa e Nani Alcides. As irmãs Alcides procuram Solange, para a convidar a escrever letras, lyrics, para uma banda de que fariam parte. É então através delas que Solange conhece a figura de Gisela Batista ou Mimi Batista, que gravara já dois singles, mas que entretanto iniciara uma banda de mulheres com as irmãs Alcides.

A reunião entre as quatro toma lugar pouco depois. Gisela, inicialmente não fica agradada com as letras de Solange. Ainda assim, decide confiar nela e, mais ainda, integrá-la na banda, sendo assim Solange o quinto elemento. Além dela, de Gisela e das irmãs Alcides, faz ainda parte Madalena Micaia, uma africana negra, cuja voz é, afinal, a única verdadeiramente assinalável.

De facto, aqui se juntam cinco personagens muito diferentes, cinco vozes e cinco posturas muito diversas:

Gisela tem, na verdade, uma voz frágil e sem grande potência, sendo que a sua verdadeira força é a convicção e a capacidade de liderar, bem como o bom conhecimento de todo o jogo de bastidores que gere o mundo da música e, principalmente, o da fama. É também ela quem financia todo o projecto, recebendo grandes quantias do padrasto, o senhor Simon.

As irmãs Alcides são ambas de formação clássica, sendo especialistas em música erudita. Várias vezes ao longo do romance, vemo-las quase incapazes de se adaptarem ao estilo pop pretendido por Gisela. Mais ainda, cada uma delas tem um namorado, o que origina muitas vezes conflitos de interesse.

Madalena Micaia é uma mulher trabalhadora, que mal encontra tempo para a banda mas que compensa as suas irregularidades com uma voz impressionante. A sua vida encontra-se envolvida num certo secretismo.

Por fim, Solange tem uma voz fraca, semelhante à de Gisela e aquilo que a distingue de todas as outras é a sua disponibilidade, a sua pureza e a sua capacidade de escapar aos jogos de poder exercidos por Gisela. Consegue escapar utilizando a verdade, que sempre conta.

Os ensaios da banda têm lugar na garagem de uma casa conhecida como a Casa Paralelo, onde, inicialmente, há apenas um piano, "Um piano espelhado" (pag.63).

Parece-me que estes dois elementos são de importante carga simbólica, principalmente no que toca ao que a banda significará para a vida de Solange. Repare-se que "Paralelo", o nome da casa, designa duas rectas que por mais que se prolonguem, nunca se cruzam, ainda que não possam ter identidade uma sem a outra, por perderem comparação. Assim acontece com a estudante de Sociologia que escrevia alguns pequenos poemas, que, uma vez dentro da garagem da Casa Paralelo, se torna elemento de uma banda feminina cujo projecto é ser uma das maiores. Mais ainda, Solange não é um elemento qualquer. Ainda que a sua relevância na performance propriamente dita não seja de grande importância, será ela a escrever as letras das canções, a escolher as palavras, que, em última análise, serão aquilo que conduzirá o público a identificar-se ou não com aquela música; e mesmo Gisela tem consciência disso, pois, no dia em que conhece Solange a avisa:


"Queremos uma letra contemporânea, escrita para o mundo de hoje. Nada de igual ou semelhante a ontem, estamos cansadas de amores soturnos, estamos fartas. Queremos cantar para as pessoas de agora, as pessoas vivas que encontramos nas ruas todos os dias. Pessoas normais, como eu, como tu, como nós."

(p.46)


O paralelismo que existe então em Solange, e que a Casa Paralelo me parece representar, é esse: fora dela, Solange é mais uma rapariga vivendo "sobre a pele do mundo", lá dentro, ela passa a fazer parte desse mundo, a vivê-lo verdadeiramente.

O mesmo se passa com o segundo símbolo que acima enunciei, o "piano espelhado". Funcionando como espelho (E mais tarde, surgirá naquela garagem um espelho mesmo.), ele é que dá noção àquelas mulheres de como, através da música, a sua vida pode passar a ser algo de totalmente diferente. Ao passo que a Casa Paralelo é um espelho em abstracto, o "piano espelhado" é realmente um espelho, uma prova desse paralelismo, apontando os dois no mesmo sentido. Também é significativo comparar estas metáforas com a própria dinâmica de escrita de "A Noite das Mulheres Cantoras". De facto, ao longo do seu monólogo, o que encontramos em Solange é, no fundo, um esforço para tornar nítida a sua identidade, para tornar claro o reflexo no espelho.

E, se a Casa Paralelo e o "piano espelhado" funcionam como vislumbre de uma possível nova realidade, com ela começa aquilo que verdadeiramente parece ser uma das questões essenciais deste romance de Lídia Jorge: o que é necessário sacrificar para concretizar uma ambição, e que jogos de poder será necessário levar a cabo para conseguir esse sacrifício? Estamos perante "gente que tudo aquilo que desejava em abstracto procurava alcançar no concreto, nem que para tanto fosse necessário espancar o corpo e a alma" (p.77).

É de facto Gisela quem mais está disposta a tudo sacrificar e tudo fazer para atingir as suas ambições. É por isso que será ela também a continuamente exercer sobre as companheiras o seu poder, exigindo-lhes promessas e cedências, com alguma chantagem também.

Sendo que Solange consegue manter-se um tanto á revelia de tais jogos de poder, cedo se torna clara a principal diferença entre Gisela e Solange: a primeira move-se jogando com ambição e poder, ao passo que a segunda se move de acordo com as suas próprias paixões. Ainda que abordada de uma maneira abissalmente diferente, esta oposição de comportamentos fazia um pouco parte de um outro romance de Lídia Jorge, "Notícia da Cidade Silvestre" (1984).

A paixão como móbil de Solange tornar-se-á ainda mais evidente depois que o projecto é apresentado a uma série de produtores e managers. Ainda que estes entendam que a qualidade da música é evidente, é também opinião deles que à banda falta a dimensão de espectáculo:


"Música para ver. Música para impressionar, sentir e ouvir, uma sensação conjunta que pouco ou quase nada tinha a ver com afinação mas com expressividade".

(p.87)


Este é um momento crucial de "A Noite das Mulheres Cantoras". Verdadeiramente, é nesta passagem que vemos nascer e entrar na Casa Paralelo o "império minuto": uma lógica em que a música já não pode ser só música, precisa também de ser espectáculo, de integrar em si outras artes, de, no fundo, valer por outros motivos que não a própria música.

É por esta razão que surge João de Lucena, um coreógrafo que já vivera nos Estados Unidos e que ali estava para transformar a banda de mulheres cantoras em cantoras e bailarinas. É aqui verdadeiramente que a questão do sacrifício vai ao seu limite. É assim que, já depois de se iniciarem nos ensaios de dança, em dietas para perder peso e em questões de apresentação que Gisela impõe mais uma regra:


"A certa altura, disse-nos mesmo que entre nós não haveria mais amores, nem pancadarias, nem acasalamentos, nem sonhos. Sublinhou. Nem sonhos. Disse que todos os nossos sonhos teriam que estar colocados nas pautas que estavam pousadas sobre a tampa do piano. Daquelas folhas sairiam os nossos sonhos e a elas os nossos sonhos deveriam regressar."

(p.134)


de facto, o que aqui vemos já não é um sacrifício da vida pessoal nem do tempo: é um sacrifício da própria identidade, da intimidade e da individualidade. A pessoa deixa de ser pessoa e passa a ser componente de uma unidade, de uma ambição. É tudo o que à volta disto se gera que faz com que Solange conclua que "viver é atraiçoar. Sobreviver implica trair" (p.184). Tudo isto é particularmente relevante a partir do momento em que Solange se envolve com João de Lucena. Aí, verdadeiramente, encontramos a charneira que nos dá a verdadeira dimensão do papel de Solange na banda das mulheres cantoras e em tudo o que elas simbolizam. De facto, Solange muda de comportamento quando se envolve com Lucena. Se por um lado a sua entrega ao projecto da banda não parece sofrer abalos, a sua relação com Gisela vai-se alterar pois, pela primeira vez, Solange opta por não assumir imediatamente a verdade perante a mentora. Não necessariamente por medo, mas um pouco para se proteger e proteger a relação com João. Mas, mais interessante do que isto é que, quando por fim Solange decide contar a verdade, Gisela não é capaz de repreendê-la e aqui se percebe exactamente o porquê do respeito que Gisela tinha por Solange: ela reconhece na letrista uma capacidade de entrega, um "estado de prontidão" (p.84), similar ao seu, ainda que os motivos que as movem sejam opostos, como acima defendi.

Ao mesmo tempo que a relação entre Solange e João se vai firmando, torna-se também evidente que nem todas as mulheres cantoras estão no mesmo "estado de prontidão", particularmente Madalena, que acaba por mais não conseguir esconder a desobediência às regras impostas por Solange.

Depois da revelação, diz Solange:


"Habitávamos o interior de uma granada. Éramos uma bomba armadilhada, feita de nitratos, pregos, vidros, ácido, carne humana, tudo isso, à espera de uma detonação."

(p.187)


E é de facto a partir daqui que o fim da banda começa a anunciar-se.

Uma outra questão surge também, por esta altura: a impossibilidade de Solange assinar as letras que escrevera. Já nascido, recentemente, o "império minuto", ninguém podia arriscar assumir que as palavras haviam sido escritas por uma mulher, pois uma "banda de cinco mulheres [iria] precisar de um suporte masculino de retaguarda bem forte (...) Cinco mulheres no palco, em exército de homens por detrás." (p.210).

Este facto resulta um pouco como uma negação da importância de Solange naquele grupo. Com todas as tensões a começarem, à medida que a banda cada vez menos pode ser uma paixão, como Solange desejaria, e começa a tornar-se representativa dos conceitos do "império minuto", acontece um acidente indesejável e torna-se claro que a banda não muito mais poderá subsistir.

Perante este incidente, todos fazem "promessa de mudez" (p.226), de maneira a que o espectáculo possa continuar, como dizia Fred Mercury. E é assim que Solange tira a seguinte conclusão:


"Ao fim e ao cabo, porque as pessoas não valem nada, não são nada. Mesmo depois de uma vida intensa, e donas de uma boa voz, as pessoas podem desaparecer de um dia para o outro sem deixar rasto. Ou deixam um rasto que ninguém consegue ver."

(p.228)


Na verdade, este incidente é que verdadeiramente representa as terríveis consequências do "império minuto". A fugacidade que ele exige resulta no fácil esquecimento das pessoas e, pior do que tudo, não admite que se conte a verdade.

Num outro plano existe a relação de Solange com João de Lucena. Depois de, de certa forma, ver a sua identidade posta em causa na banda, Solange acaba por se deparar com determinadas adversidades, no que toca á sexualidade, no seu envolvimento com João. Aplauda-se a sensibilidade de Lídia Jorge para abordar uma questão tão complexa e, mais ainda, a total recusa do previsível na resolução deste problema. Com tudo isto, Solange marca o seu lugar definitivo dentro do mundo, tornando-se impossível alguma vez voltar a habitar sobre a sua pele. Poderíamos falar aqui de uma certa perda da inocência, mas penso que Lídia Jorge vai bastante mais longe do que isso: ela mostra-nos que, por vezes, é impossível conjugar a paixão pessoal com aquilo que é o mundo mas que isso não implica, ou não tem que implicar, que se abdique da paixão pessoal. Verdadeiramente, neste livro, existe um palco e a escolha de o pisar ou não. É perante essa escolha que Solange termina o livro, a escolha entre a verdade e a representação, a mentira, no fundo.

É justamente essa escolha que definirá o seu comportamento futuro, que lemos em Epílogo para Mais Tarde. Vinte e um anos depois, Solange vê que nada, no fundo, mudou à sua volta. Gisela, que era a única seriamente capaz de se integrar no "império minuto" não se deixou parar por causa do fim da banda e prosseguiu o seu caminho, o seu jogo de poder, triunfando, afinal, no fim. Por seu turno, Solange continua a sentir as mesmas paixões que sentia no tempo em que integrara a banda; o que mudou foi que, pela primeira vez, ela decide guardá-las para si, protegê-las, guardando, pela primeira vez, a verdade para si mesma.



Mas nem só da história se faz este romance.

É indispensável, para poder ler-se "A Noite das Mulheres Cantoras", ter-se consciência do lado político que existe nele. Recusando os métodos mais evidentes de politizar uma história, Lídia Jorge acaba por ensaiar brilhantemente sobre algumas das maiores obsessões do mundo em que vivemos. De facto, "na história de um bando conta-se sempre a história de um povo" (p.9), como aqui vemos. A perseguição da fama, dos quinze minutos de ribalta que todos parecem querer conquistar, a qualquer preço, é só a mais imediata das problemáticas colocadas por este romance.

Se tentarmos olhar para ele de uma perspectiva sociológica, entendemos que as estrutuas sociais não funcionam de uma maneira muito distinta do que se passa nesta banda de mulheres cantoras. O funcionamento através de jogos de poder, de domínio e de submissão, continua a ser uma das culpas da sociedade em que vivemos e a forma desenfreada como se perseguem as ambições pessoais não é menos complicada. O que acontece é que, em nome da entrada para o "império minuto", tudo se torna contornável, até a morte.

E desta maneira se retira qualquer importância à memória. É particularmente esta questão que interessa referir, se sabemos que a grande arma usada em todos os romances de Lídia Jorge é a memória. Lemos algures:


"Se insisto na questão do esquecimento, é talvez porque nenhum outro assunto tenha sido tão importante quanto esse, ou talvez porque nem mesmo haja outro assunto."

(p.229)


Esta é uma ideia a reter sobre aquilo que possam ser a grande batalha de Lídia Jorge na escrita: a fixação da memória, de um tempo, uma luta contra o esquecimento; sabendo sempre que é o conhecimento do passado que nos impede de o repetir. E assim percebemos também como todos nós, além de escrevermos a nossa história, pelo menos num pouco lhe pertencemos, já que "A nossa vida, se vem vivida, não é da História, é do seu sentido" (p.34).

Outra ideia que importa sempre referir é a questão do género. Sinceramente, estou bastante farto da separação de autores por género, porque, por norma, significa que os homens são escritores e as mulheres são "umas senhoras que escrevem uns livros". É bastante imprudente pensar dessa maneira, se temos tantos homens a escrever tão mal e tantas mulheres a escreverem grandes romances. Uma destas últimas é, indubitavelmente, Lídia Jorge. É um facto que há neste romance muitas implicações relativamente à questão do género e da condição feminina, e, inclusivamente, algumas reivindicações, nomeadamente no que toca ás razões por que Solange não pode assinar as letras de que era autora. Mas o que interessa é perceber se Lídia Jorge tem na questão feminista o cerne de "A Noite das Mulheres Cantoras", e parece-me que não. De facto, a análise social e política é um dos pratos fortes deste romance, e, passando pela questão do género, não deixa de parecer mais concentrado noutras questões, nomeadamente as acima referidas, relacionadas com a memória, com a fama e com o poder. Seriam estes três elementos os que eu escolheria como temas principais deste livro, e não necessariamente a questão do género.

Uma vez mais, este romance de Lídia Jorge não escapa a um certo padrão que é claro em todos os dez romances já publicados, que é a questão do segredo. De facto, o segredo, que se relaciona directamente ou com o silêncio ou com a mentira, tem sido também uma constante desde "O Dia dos Prodígios". Aqui ele surge, uma vez mais, e reforça um pouco a ideia de que "viver é atraiçoar" e a esta conclusão podemos perfeitamente chegar lendo a obra de Lídia Jorge e, então, percebemos que a escrita representa aqui um acto de intimidade, de reunião com a consciência, pois é na escrita que a verdade vem finalmente à tona. E, associada à ideia do segredo, está a ideia da sobrevivência, da salvação: é a isso que assistimos no Epílogo para Mais Tarde. Sobre a sobrevivência, há ainda que assinalar um outro momento de "A Noite das Mulheres Cantoras": a memória que Solange várias vezes refere, do pai, em África, pronto a cortar um uma catana as mãos de um aluno. É aqui que vemos que a sobrevivência continua a ser aquilo que une todos os seres humanos, nem que ela custe os actos mais horrendos. E é precisamente isso que vemos acontecer ao longo do livro, sendo também que a sobrevivência não é um conceito unívoco, e cada um luta por coisas diferentes mas que, em última análise, representam a sua forma de sobreviver.

Uma última nota vai para a tonalidade poética que se faz sentir em "A Noite das Mulheres Cantoras". De facto, a escolha do "romance psicológico" contribui em muito para que uma linguagem sensível e bela paute todo o texto, onde é de notar ainda a atenção ao detalhe e a procura de uma linguagem que possa derramar alguma luz sobre os factos, já que só essa permite vê-los.

Segundo li numa entrevista, Lídia Jorge cortou muitas páginas a este livro. Depois de o ter lido, confesso que não lhe acrescentaria nem lhe retiraria nada, nem uma página que fosse, mas há que reconhecer que "A Noite das Mulheres Cantoras" é muito mais do que as suas 317 páginas. E isso mesmo nos mostra que Lídia Jorge continua a ser, senão a melhor ficcionista portuguesa, pelo menos uma das melhores. Ou um dos melhores, para que não se façam confusões.

4 comentários:

Graça Martins disse...

Gostei muito da tua análise. Ainda não li o livro, vou começar hoje e fiquei interessada ns tuas palavras. Mesmo sem o ler, arrisco a afirmar que este romance espalha no ar a questão da VERDADE, da INTEGRIDADE PESSOAL. Adoecemos se utilizamos máscaras...e a prova é a que observamos ao nosso redor: UMA SOCIEDADE DOENTE. Por causa do IMEDIATISMO, DA FAMA, uma sociedade hedonista a qualquer preço. VIVER É TRAIR é uma metáfora profunda, porque coloca a questão se vale a pena esse VIVER PARA TRAIR.Se compensa viver com a culpa traindo a nossa natureza. A resposta estará na cabeça de cada leitor, pois um escritor inteligente como a Lídia Jorge INQUIETA, não dá RESPOSTAS...

Anónimo disse...

Notável leitura de um livro notável.

Supermassive Black-Hole disse...

Eu agradeço a ambos mas, acrescento, o mérito vai todo para a autora. Penso que mais não fiz que estar atento à leitura de um livro a que, realmente, nada falta para ser prodigioso.

Glorinha L de Lion disse...

Olá, cheguei ao teu blog por acaso...procurando uma capa do livro da Lídia para colocar na minha estante do Skoob. Recebi este livro de presente de uma querida amiga portuguesa que deu-me pois sabe o quão voraz e leitora compulsiva sou. Gostei muito de sua resenha. Abraços,