sábado, 30 de abril de 2011

Agustina Bessa-Luís: O Concerto dos Flamengos

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Editado em 1994, "O Concerto dos Flamengos" é, a meu ver, um dos romances mais modernos e mais excepcionais de Agustina Bessa-Luís. As leituras que pode ter são inúmeras, desdobrando-se no plano romanesco, no plano histórico e, como sempre, no plano analítico e político, ainda que a escrita, subtil e nítida, nos possa enganar a pensar que se trata de um romance mais simples do que, na verdade, é.




Na linha da frente, encontramos três mulheres residentes em Lisboa, deslocadas aos Açores para assistir ao Concerto dos Flamengos, um evento anual que dura vários dias. Estas três mulheres são Luísa Baena, a sua prima Maria Vicente e a criada, Serpa.

Delas todas, a mais destacada será Luísa Baena e será através dela também que a história do Concerto dos Flamengos se cruza com a História de algumas figuras como Carlos o Temerário, Maximiliano e Isabel de Borgonha. O que cada um destes personagens representa são aspectos relacionados com o poder e com a ocupação geográfica, que, evidente, afectará também toda uma área cultural que aqui está também em análise.

Luísa parece mais interessada em ouvir, em "dialogar" com as suas figuras históricas do que propriamente em ouvir o Concerto. No entanto, a sua presença no evento é, também ela, sintomática de alguma coisa: porque, acima de tudo, o Concerto dos Flamengos parece ser símbolo de uma Europa culturalmente fracturada, incapaz de compreender a importância das mudanças do tempo que, em último caso, dependem directamente das mudanças de poder. A presença dos flamengos no século XVI nos Açores deixou muitas marcas, a maioria das quais nunca verdadeiramente chegou a ser apagada, convivendo confusamente com o tempo real do romance, que é a transição dos anos 80 para os anos 90.

Assim sendo, Luísa apresenta as suas reações ao espectáculo, sendo particularmente rígida para com o ragtime, em que o músico japonês toca Gershwin de uma maneira personalizada. É de notar que essa interpretação que, para Luísa, é também uma deturpação é tocada por um músico cujo nome nem sequer sabemos, sendo apenas referido como "o japonês do ragtime".

Luísa tem, mesmo assim, vários motivos para tentar entender as relações entre cultura e poder, motivos acima de tudo pessoais, que remontam à sua infância em Nevogilde Park, no Porto, onde ela já apresentava dificuldades em lidar com o poder, neste caso exercido pela mãe e pelo avô Baena. É assim que, aos 18 anos, Luísa tem uma tentativa falhada de fugir do país com um marinheiro, acabando por, depois, ir para Itália estudar canto lírico, carreira que, também ela, é falhada. Assim, ela acaba por se casar com Xavier, descendente da família dos Jornada Branca, que tem várias ligações com a resistência ao regime, acabando por arrastar para essa luta Luísa, apesar do casamento conturbado que têm e que acaba em divórcio. No fundo, toda a vida de Luísa é baseada em confrontar-se com questões básicas como a sociedade, o poder, os códigos de comportamento, as éticas e as relações humanas. Será por isso que ela dá mais atenção aos fantasmas históricos dos Açores, que lhe permitem prosseguir nas mesmas questões, do que ao espectáculo pobre do Concerto.

Apesar de Luísa nos surgir como uma mulher "extraordinária demais para ser sincera" (p.130), também a vemos como uma espécie de heroína falhada, um tanto incompetente e incapaz de conseguir alguma coisa na vida. Acima de tudo, ela parece ter um sistema de referências culturais e políticas bastante abrangente, e é uma boa ouvinte: ouvinte da História e dos sistemas sociais.

É por isso que, nas suas divagações, ela tem visões do Cortejo de Maximiliano, que parece ser o foco da sua atenção, muito mais que o Concerto dos Flamengos. Talvez porque ela tem consciência de que esse espectáculo confirma uma cultura que não soube relacionar-se com o poder e com a História de maneira a sobreviver plenamente. Os músicos são ora difíceis de entender, ora verdadeiramente decadentes e de qualidade questionável.

Com o público passa-se a mesma coisa. A música é-nos descrita por Agustina como uma catarse de problemas de violência e de erotismo; e o público parece completamente inconsciente de questões artísticas, estando as pessoas presentes mais por pretensão do que por interesse cultural.

Outro elemento que nos evidencia este desfasamento é o comportamento da criada Serpa, cuja lealdade se prova através da maldade e de uma série de códigos de comportamento que, aparentemente, já ninguém segue.






Por fim, temos ainda a surpresa da chegada de dois personagens: Herberto, amigo de Luísa; e Clara Bulcão, uma velha rival da protagonista, que inclusivamente estivera envolvida com Xavier, depois do divórcio dele e de Luísa.

A Bulcão é-nos mostrada como "uma proxeneta com talento" (p.146). Esse talento é, acima de tudo, um talento de comunicação: ela tem o dom da palavra, é encantatória quando fala e até temível; mas, no fundo, percebemos que ela entende muito pouco do assunto de que mais fala, que é o da cultura.

É particularmente nas passagens sobre a Bulcão que Agustina mais revela a sua pena aguçada, descrevendo-a com uma deliciosa ironia que toca as raias da maldade.

A presença da Bulcão vem trazer ainda outra componente à fractura cultural com que "O Concerto dos Flamengos" nos vem confrontar. Ela parece representar uma precipitação, uma alteração demasiado acelerada nos valores e nas ideias, conquistando os seus ouvintes pela forma desabrida como se expressa, ainda que, tanto ela como eles, estejam longe de entender aqueles assuntos, que não raro se relacionam com a escrita, a poesia e o sexo; assunto este último que está mais ou menos implícito por todo o romance, como um problema que afecta directamente tanto o poder como a cultura (Os dois assuntos, afinal, centrais, neste livro.).

Herberto, por seu lado, representa um homem sábio mas apagado, bastante analítico e também bastante céptico, razão pela qual Luísa, ainda que lhe conte grande parte dos seus pensamentos relativos à História, se abstém inicialmente de lhe contar das suas visões do Cortejo de Maximiliano.

Também Herberto terá a sua palavra sobre a ocupação dos Açores pelos Flamengos e as suas repercursões no tempo actual, quatrocentos anos depois.

Quando deixam os Açores, depois do Concerto dos Flamengos, Luísa e Herberto acabam por planear um regresso, com o propósito de conseguirem ver de novo o Cortejo. O facto de irem, no fundo, em busca de uma alucinação, dá-nos conta de uma dimensão algo utópica (Que nos é referida na badana do livro, inclusivé.) que se faz sentir neste romance de Agustina. Ensaiando sobre um tempo que recebe uma cultura desfeita e incapaz de entender a sua relação com o poder, Agustina parece deixar-nos o caminho livre para repensarmos esta relação. Os dois personagens deste livro que melhor a percebem são também os únicos capazes de aceder a essa alucinação, descrita de uma forma magnífica, fazendo lembrar bastante o trabalho de Albrecht Dürer (É de lembrar que Agustina já trabalhara sobre este pintor em "O Apocalipse de Albrech Dürer", 1986.).

E será esta visão a ser realmente marcanta para Luísa, a mais definitiva; porque ela representa um todo, ao contrário do Concerto dos Flamengos, a que Luísa assiste fragmentariamente.

É, de facto, um romance com uma inclinação ensaística e politizada; paralelamente à apaixonante construção de pessoas a que Agustina sempre nos habituou. Porque se há coisa que "O Concerto dos Flamengos" consegue em todas as suas páginas, é ser apaixonante.

2 comentários:

Graça Martins disse...

apaixonante também o teu olhar sobre este livro da Agustina. Vou ler de seguida este romance...

Supermassive Black-Hole disse...

fazes bem... é realmente um livro muito denso, que dá que pensar, além de ter dado que falar