domingo, 13 de novembro de 2011

Um regresso ao passado de José Saramago


Recentemente, foi editado o romance 'Claraboia' de José Saramago. Pouco mais de um ano passado sobre a sua morte, a Fundação José Saramago, presidida pela viúva, Pilar del Rio, tem sido particularmente activa e cuidadosa tanto no trabalho de reedição de muitos títulos que já estavam indisponíveis ou quase, bem como na edição de alguns textos de ou sobre Saramago que muito interessa que tenhamos ao nosso dispor, para conhecer melhor a obra do escritor.
Como lemos numa pequena nota inicial, 'Clarabóia' é um romance cuja redacção terminou a 5 de janeiro de 1953, contava Saramago 31 anos de idade e um romance publicado, a 'Terra do Pecado' (1947) que durante tantos anos permaneceu na obscuridade. A questão da publicação póstuma de obras deixadas inéditas pelos seus autores é sempre controversa, de certo ponto de vista. Um exemplo do perigo desse trabalho é a edição póstuma dos dois volumes de 'Post-Scriptum II' que Mécia de Sena preparou, depois da morte de Jorge de Sena: trata-se dos poemas juvenis do autor, escritos desde (Salvo o erro.) os 14 anos de idade e diga-se de passagem que muitos deles, mais do que serem irrelevantes para um estudo da poesia de Jorge de Sena, nalguns casos até se tornam indignos.
Não é, pelo menos até agora e, esperemos, não será de todo o caso de Pilar del Rio que tem sabido manter toda a dignidade na edição da obra de José Saramago. Isto é particularmente importante quando o caso é como o de 'Claraboia', em que, ao que se sabe, o escritor terá dito que, mesmo não querendo em vida ver o romance editado, a decisão de existir uma edição póstuma caberia à sua executora literária. Ainda não terminei o livro mas, independentemente de tudo, penso que Pilar tomou a decisão acertada. De facto, ainda que este romance nos surja como embrionário, quando confrontado com os romances posteriores, nunca ele deixa de nos parecer um livro bastante rico em ideias, escrito com uma clareza exemplar e cheio de subtilezas de linguagem e, além disso, ele é já demonstrativo das questões filosóficas, éticas e existenciais que seriam sempre uma parte crucial em José Saramago.




A verdade é que a leitura deste livro me fez revisitar um livro que há já alguns anos não relia, talvez dada a condição um tanto estranha que esse livro ocupa na bibliografia do vencedor do Nobel. Refiro-me ao iniciático 'Os Poemas Possíveis', cuja primeira edição, de 1966, da editora Portugália, não tenho (E dada a inflação dos preços nos alfarrabistas, duvido que vá ter nalgum futuro mais próximo...), mas tenho a segunda, já da Caminho, editada em 1982. Acontece que esta segunda edição, como Saramago explica no seu prefácio, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos. (p.14), o que se traduz, não na exclusão de poemas da primeira edição, nem na inclusão de inéditos, mas em várias reescritas e correcções dos poemas originais. Mas, pelo menos no que toca aos textos da edição de 1982, fiquei de certa forma surpreendido. Surpreendido por encontrar neste livro alguns poemas cuja intensidade e o rigor me tinham escapado quando li o livro pela primeira vez, em que me pareceu, de alguma forma, um tanto tradicional e até conservador, para um livro surgido já depois do Poesia 61, da Poesia Experimental e de uma série de outros autores que se tinham estreado na década de 60, como Yvette K. Centeno ou Armando Silva Carvalho, entre outros.
Mas de facto, esta tarde, vagueando pelos poemas de Saramago, alguns fui encontrando em que já estão presentes algumas das ideias centrais da obra que surgiria depois, como uma certa mensagem política, a redescoberta do eu na escrita, que muitas vezes de aproxima de outros personagens, e, claro, o grande tema da arbitrariedade dos desígnios da vida e a necessidade de tomarmos conta do nosso destino. É uma maneira muito simplista de colocar um assunto que é de longe mais complexo, mas a verdade é que, aparte alguns tradicionalismos formais, algumas imagens que encontramos nestes poemas não deixam de ser bastante fortes, e a forma como estão escritas, que sabe dar à escrita uma dimensão plástica propriamente dita, e não apenas descritiva, tornam valiosos alguns destes textos.
Não sabemos a que ano ou -mais provavelmente- anos, estes poemas pertencem. No entanto, não será difícil imaginar que eles tenham sido escritos ao mesmo tempo que o recém-publicado 'Claraboia', ou então pouco tempo depois, e é curioso ver como, afinal, nestes 'Poemas Possíveis' parece existir a ideia da escrita -presente não só nas artes poéticas- que, de certa forma, nos parece dar um perfil deste José Saramago que tão mal conhecemos, o destes anos entre 1947, ano de 'Terra do Pecado' e 1970, ano em que, a partir do segundo volume de poesia, 'Provavelmente Alegria', Saramago começa a publicar com grande regularidade. Por exemplo, em Meias Solas:

Bem sei que as meias-solas que deitei
Nas botas aprazadas não resistem
À calçada do tempo que discorro.

Talvez parado as botas me durassem,
Mas quieto quem pode, mesmo vendo
Que é desta caminhada que me morro.

que pode, de certa forma, representar a luta pela escrita que, sabemos, era particularmente dura nesta época, em que Saramago não era aceite pelas editoras -aliás, acontece que 'Claraboia' foi entregue a uma editora em 1953, que só nos anos oitenta aceitaria editá-la, o que o escritor recusou.
E já em 'Claraboia' encontramos o escritor que escreve da observação de um imaginário minucioso e detalhado, que nada fica a dever ao real. A história de um prédio e dos seus inquilinos, com as suas intrigas, as suas amizades e inimizades, os seus segredos e os seus rumores, pode funcionar, como acontece frequentemente com os livros de Saramago, como uma parábola, uma representação do mundo, viva e palpável. Ou, nas palavras do próprio, em «As palavras são novas...»

Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.

este podia ser um resumo dos livros de José Saramago, incluindo 'Claraboia': são sinais daquilo que nos une a todos, enquanto Homens, inventados na grande solidão que essas uniões não evitam.