“Twin Peaks: Firewalk With Me” terá sido dos filmes mais mal recebidos de David Lynch. Aquando da sua estreia, em 1992, foi um fiasco em termos críticos e de audências, se bem que esta última parte não surpreenda, porque os filmes de Lynch nunca foram para o grande público.
Parte do problema, parece-me, terá a ver com o facto de o filme ter surgido demasiado em cima da série. A própria série, depois da descoberta do assassino de Laura Palmer, entrou numa espécie de declínio em termos de opinião dos fãs. Mas o filme foi, de longe, bem mais injustiçado.
É evidente que seria quase impossível produzir um filme que é, para todos os efeitos, uma prequela, para uma peça tão fora de série como a série. E é precisamente no confronto com a série que o filme pode, numa primeira observação, parecer cheio de falhas e resultar mal. Relembremos que o filme é escrito por Lynch e Robert Engels que, mesmo tendo sido argumentista de vários episódios da série, não foi dela um dos criadores: o não-envolvimento de Mark Frost no filme talvez tenha tido também o seu peso.
Ao contrapor a série com o filme vemos de imediato bastantes incongruências: repare-se que no filme, Donna Hayworth assiste a Laura a prostituir-se, chegando a quase fazê-lo ela mesmo, sob o efeito de drogas: ao passo que, na série, esse lado da vida de Laura era totalmente desconhecido de Donna.
A cena do jantar em que Leland Palmer quase agride a filha também não está de acordo com a série pois, como vemos, Sarah Palmer nunca aponta nenhum comportamento estranho de Leland para a filha quando é interrogada pela polícia.
Outro exemplo é o facto de, no segundo dos seus últimos sete dias, Laura Palmer ir deixar o seu diário secreto a casa de Harold Smith. Não a vemos regressar a casa dele (Ela diz, inclusivamente, que poderá não voltar a visitá-lo.), e, na série, Harold deixa, antes de se suicidar, um envelope para Donna onde estão as últimas duas páginas escritas por Laura nesse diário secreto: na véspera da sua morte e no dia da sua morte.
Mais ainda, quando Leland Palmer leva Laura e Ronette Pulaski para o comboio abandonado, Ronette consegue sair antes de Laura morrer e na série, vemo-la ter flashbacks de Laura a ser assassinada.
Parte do problema, parece-me, terá a ver com o facto de o filme ter surgido demasiado em cima da série. A própria série, depois da descoberta do assassino de Laura Palmer, entrou numa espécie de declínio em termos de opinião dos fãs. Mas o filme foi, de longe, bem mais injustiçado.
É evidente que seria quase impossível produzir um filme que é, para todos os efeitos, uma prequela, para uma peça tão fora de série como a série. E é precisamente no confronto com a série que o filme pode, numa primeira observação, parecer cheio de falhas e resultar mal. Relembremos que o filme é escrito por Lynch e Robert Engels que, mesmo tendo sido argumentista de vários episódios da série, não foi dela um dos criadores: o não-envolvimento de Mark Frost no filme talvez tenha tido também o seu peso.
Ao contrapor a série com o filme vemos de imediato bastantes incongruências: repare-se que no filme, Donna Hayworth assiste a Laura a prostituir-se, chegando a quase fazê-lo ela mesmo, sob o efeito de drogas: ao passo que, na série, esse lado da vida de Laura era totalmente desconhecido de Donna.
A cena do jantar em que Leland Palmer quase agride a filha também não está de acordo com a série pois, como vemos, Sarah Palmer nunca aponta nenhum comportamento estranho de Leland para a filha quando é interrogada pela polícia.
Outro exemplo é o facto de, no segundo dos seus últimos sete dias, Laura Palmer ir deixar o seu diário secreto a casa de Harold Smith. Não a vemos regressar a casa dele (Ela diz, inclusivamente, que poderá não voltar a visitá-lo.), e, na série, Harold deixa, antes de se suicidar, um envelope para Donna onde estão as últimas duas páginas escritas por Laura nesse diário secreto: na véspera da sua morte e no dia da sua morte.
Mais ainda, quando Leland Palmer leva Laura e Ronette Pulaski para o comboio abandonado, Ronette consegue sair antes de Laura morrer e na série, vemo-la ter flashbacks de Laura a ser assassinada.
Repare-se que todas estas falhas são apontadas quando confrontadas com a série.
E por um lado, não pode ser de outra maneira: o flme começa com o caso de Teresa Banks, assassinada em Deer Meadow nas mesmas circunstâncias que Laura. A investigação leva ao desaparecimento de Chet Desmond, agende do FBI, que é substituido por Dale Cooper. É público que David Lynch pretendia uma presença mais contínua de Kyle McLachlan no filme, mas este terá recusado, por estar já altamente associado ao personagem de Cooper e, diga-se de passagem, foi o papel da vida dele.
Um ano depois, um detective interpretado por David Bowie aparece no escritório onde trabalham Cooper e Gordon, o cómico e mouco David Lynch, dizendo que esteve “numa das reuniões deles”: “eles” são as figuras do Mal, ou a ele associados, que se reunem numa mesa de fórmica: o liliputiano que se apresentará como “o braço”, deduzimos que o braço amputado de Mike, o braço que matava, Bob e os Chalfut, avó e neto, neto este que estuda magia e usa uma máscara sem orifícios, apenas com um nariz afiado.
A questão de “Twin Peaks: Firewalk With Me” é que talvez não deva ser levado tão à letra numa comparação com a série, ainda que se sirva de todo o imaginário, fortíssimo, criado pela série. Para tal talvez não seja gratuito referir que o filme começa com uma televisão a ser destruída por uma bala. Penso que qualquer interpretação disto dispensa ser escrita, de tão óbvia.
Porque, verdade se diga, se se esquecer estas incongruências com a série, como podemos dizer que este é um mau filme?
Pelo contrário, é um dos melhores e mais bizarros filmes de Lynch, ainda que siga uma estrutura de narrativa linear, cheio de imagens absolutamente poéticas e momentos de uma pungente tristeza a que é impossível ser-se indiferente.
É uma faca de dois gumes este filme: ele tem uma relação inevitável com a série, e isso torna graves as já referidas incongruências, mas, por outro lado, como peça isolada, só pode ser um grande filme.
Encontramos Laura Palmer como a rapariga do coração divdido: ela é a estudante do liceu, raínha do baile que namora com o capitão da equipa de futebol, tem um amante. Por outro lado, é também uma prostituta ocasional, chuta cocaína constantemente, é uma verdadeira viciada, mantém relações com inúmeros homens, e é violada desde os 12 anos por um homem, Bob, um espírito cuja identidade ela não consegue deslindar.
Mas em “Firewalk With Me”, mesmo a questão da possessão de Bob a Leland Palmer quase passa para segundo plano: vemos, angustiadamente, a obcessão de Leland pela filha, a relação incestuosa que existe entre eles.
Há um profundo lirismo neste filme. Mais do que nunca, somos incapazes de sentir que Laura é cruel ou uma perdida. Como poderíamos pensar isso quando a vemos chorar enquanto ouve Julee Cruise no Roadhouse, antes de um cliente vir ter com ela?
É um filme cheio de momentos de um onirismo comovente, profundamente estéticos, como o quadro que os Chalfut oferecem a Laura, e as alucinações que ela tem com ele; ou como o sonho onde Cooper, ao lado do “braço” pede a Laura que não aceite o anel de Teresa, pois que este significará a sua morte.
É aqui, mais do que na sére, que vemos Laura a afundar-se na loucura em que a sua vida se tornou: uma vida errática e destrutiva, de que ela está consciente. E David Lynch filma essa destruição de uma forma tão crua, tão realista, que nos sentimos a cair com Laura Palmer, e lamentamos profundamente o seu final amargo.
Sentimos essa tristeza, como sentimos a confusão de Laura Elena Harring em “Mulholland Drive” ou o desespero de Laura Dern em “INLAND EMPIRE”.
E por um lado, não pode ser de outra maneira: o flme começa com o caso de Teresa Banks, assassinada em Deer Meadow nas mesmas circunstâncias que Laura. A investigação leva ao desaparecimento de Chet Desmond, agende do FBI, que é substituido por Dale Cooper. É público que David Lynch pretendia uma presença mais contínua de Kyle McLachlan no filme, mas este terá recusado, por estar já altamente associado ao personagem de Cooper e, diga-se de passagem, foi o papel da vida dele.
Um ano depois, um detective interpretado por David Bowie aparece no escritório onde trabalham Cooper e Gordon, o cómico e mouco David Lynch, dizendo que esteve “numa das reuniões deles”: “eles” são as figuras do Mal, ou a ele associados, que se reunem numa mesa de fórmica: o liliputiano que se apresentará como “o braço”, deduzimos que o braço amputado de Mike, o braço que matava, Bob e os Chalfut, avó e neto, neto este que estuda magia e usa uma máscara sem orifícios, apenas com um nariz afiado.
A questão de “Twin Peaks: Firewalk With Me” é que talvez não deva ser levado tão à letra numa comparação com a série, ainda que se sirva de todo o imaginário, fortíssimo, criado pela série. Para tal talvez não seja gratuito referir que o filme começa com uma televisão a ser destruída por uma bala. Penso que qualquer interpretação disto dispensa ser escrita, de tão óbvia.
Porque, verdade se diga, se se esquecer estas incongruências com a série, como podemos dizer que este é um mau filme?
Pelo contrário, é um dos melhores e mais bizarros filmes de Lynch, ainda que siga uma estrutura de narrativa linear, cheio de imagens absolutamente poéticas e momentos de uma pungente tristeza a que é impossível ser-se indiferente.
É uma faca de dois gumes este filme: ele tem uma relação inevitável com a série, e isso torna graves as já referidas incongruências, mas, por outro lado, como peça isolada, só pode ser um grande filme.
Encontramos Laura Palmer como a rapariga do coração divdido: ela é a estudante do liceu, raínha do baile que namora com o capitão da equipa de futebol, tem um amante. Por outro lado, é também uma prostituta ocasional, chuta cocaína constantemente, é uma verdadeira viciada, mantém relações com inúmeros homens, e é violada desde os 12 anos por um homem, Bob, um espírito cuja identidade ela não consegue deslindar.
Mas em “Firewalk With Me”, mesmo a questão da possessão de Bob a Leland Palmer quase passa para segundo plano: vemos, angustiadamente, a obcessão de Leland pela filha, a relação incestuosa que existe entre eles.
Há um profundo lirismo neste filme. Mais do que nunca, somos incapazes de sentir que Laura é cruel ou uma perdida. Como poderíamos pensar isso quando a vemos chorar enquanto ouve Julee Cruise no Roadhouse, antes de um cliente vir ter com ela?
É um filme cheio de momentos de um onirismo comovente, profundamente estéticos, como o quadro que os Chalfut oferecem a Laura, e as alucinações que ela tem com ele; ou como o sonho onde Cooper, ao lado do “braço” pede a Laura que não aceite o anel de Teresa, pois que este significará a sua morte.
É aqui, mais do que na sére, que vemos Laura a afundar-se na loucura em que a sua vida se tornou: uma vida errática e destrutiva, de que ela está consciente. E David Lynch filma essa destruição de uma forma tão crua, tão realista, que nos sentimos a cair com Laura Palmer, e lamentamos profundamente o seu final amargo.
Sentimos essa tristeza, como sentimos a confusão de Laura Elena Harring em “Mulholland Drive” ou o desespero de Laura Dern em “INLAND EMPIRE”.
E, mais do que isso, vemos como a destruição de Laura arrasta consigo a destruição de tantos que estavam à sua volta.
Mais do que nunca, a imagem que temos de Laura é de força. Não propriamente a mulher forte que consegue todos os homens que quer e tem prazer nisso. Mas a que se recusa terminantemente a entregar-se ao mal. É aí que ela coloca o anel de Teresa e Bob é obrigado a matá-la. E mesmo aí, é desesperante quando, entre Bob nos surge Leland, que lhe diz que sempre pensou que ela soubesse que era ele que a violava: a questão do incesto é aqui levada a um extremo penoso: Leland, pai, fica triste por ver que a filha não percebia que era ele quem a violava.
Quando por fim ouvimos os gritos finais de Laura e a vemos a ser embrulhada em plástico, temos a maior sensação de estranheza que este filme dá: é que, quando começa, nós já sabemos como irá terminar, com Laura a ser encontrada morta na praia, mas na cena em que está com Bob no comboio abandonado, ficamos de certa forma surpreendidos por ela ser assassinada, como se não estivéssemos à espera que tal acontecesse.
Por fim, há que referir que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não é sempre uma má prequela. Temos cenas que de explicam com toda a perfeição a vida de Laura, a vida que é, lentamente, descoberta por Dale Cooper e Harry Truman ao longo da série. Particularmente pungente é a cena em que Donna pergunta a Laura se ela acha que, numa queda eterna caíria sempre cada vez mais depressa ou se eventualmente abrandaria. Laura responde, num tom sereno mas que resulta angustiante:
“Faster and faster. And there would be no angels to hold you, cause they´re all gone. And for a long time, you wouldn´t feel anything. But then you would burst into flames.”
Com isto percebemos aquilo que, a meio da série, o psiquiatra, Lawrence Jacoby aponta: que Laura já decidira morrer. E estava consciente disso.
É por momentos destes que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não poderia ser um mau filme, apenas incongruente. Mas não está cheio disso o cinema de David Lynch?
Mais do que nunca, a imagem que temos de Laura é de força. Não propriamente a mulher forte que consegue todos os homens que quer e tem prazer nisso. Mas a que se recusa terminantemente a entregar-se ao mal. É aí que ela coloca o anel de Teresa e Bob é obrigado a matá-la. E mesmo aí, é desesperante quando, entre Bob nos surge Leland, que lhe diz que sempre pensou que ela soubesse que era ele que a violava: a questão do incesto é aqui levada a um extremo penoso: Leland, pai, fica triste por ver que a filha não percebia que era ele quem a violava.
Quando por fim ouvimos os gritos finais de Laura e a vemos a ser embrulhada em plástico, temos a maior sensação de estranheza que este filme dá: é que, quando começa, nós já sabemos como irá terminar, com Laura a ser encontrada morta na praia, mas na cena em que está com Bob no comboio abandonado, ficamos de certa forma surpreendidos por ela ser assassinada, como se não estivéssemos à espera que tal acontecesse.
Por fim, há que referir que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não é sempre uma má prequela. Temos cenas que de explicam com toda a perfeição a vida de Laura, a vida que é, lentamente, descoberta por Dale Cooper e Harry Truman ao longo da série. Particularmente pungente é a cena em que Donna pergunta a Laura se ela acha que, numa queda eterna caíria sempre cada vez mais depressa ou se eventualmente abrandaria. Laura responde, num tom sereno mas que resulta angustiante:
“Faster and faster. And there would be no angels to hold you, cause they´re all gone. And for a long time, you wouldn´t feel anything. But then you would burst into flames.”
Com isto percebemos aquilo que, a meio da série, o psiquiatra, Lawrence Jacoby aponta: que Laura já decidira morrer. E estava consciente disso.
É por momentos destes que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não poderia ser um mau filme, apenas incongruente. Mas não está cheio disso o cinema de David Lynch?
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