sábado, 12 de junho de 2010

Blind Zero: Luna Park

DO INESGOTÁVEL
Em 1994 “Trigger”, disco de estreia de uma banda praticamente desconhecida era um disco invulgar entre nós. À luz dos anos que passaram, percebemos agora que “Trigger” era quase meramente um alicerce para uma obra que se tornaria bem maior do que aí se anunciava. Naquela pujança havia algo que soava a Pearl Jam, e seria essa talvez a maior fragilidade de “Trigger”. E se “Redcoast” (1997) vinha já atenuar bastante essa influência, a verdade é que, em termos críticos, o eco dos Pearl Jam se tornou um estigma para os Blind Zero, que mesmo hoje, quando já é totalmente injustificado, lhes é apontado. “Redcoast” tinha algo de experimentação, de apalpar terreno, mas continha também um punhado de grandes canções, como “The Big Truth”, “Skull” ou “Criminal Grace”. Mas terminava, definitivamente, com um acto de verdadeira rebelião: “Subtitle”: esta era a canção em que os Blind Zero conquistavam, sem retorno, uma identidade, ela é o primeiro objecto totalmente nítido que a banda produziu.
A partir daí, o trabalho foi sempre o de construir mais e mais dentro dessa identidade que já ficava lançada. “One Silent Accident” publicado em 2000 é um álbum de espantosa maturidade, impregnado de atmosferas que oscilam entre a melancolia violenta e a violência melancólica: é também neste álbum que estão algumas das que, para mim, serão das melhores canções dos Blind Zero, canções como “Lowstreetsidewaksequence”, “Daily Matters”, “Another One”, “Wish Tonight” e, principalmente, “Lately”.


Mesmo assim, seria “A Way To Bleed Your Lover” de 2003, que haveria de acrescentar mais alguma “reputação” ao colectivo portuense, em particular por ter sido o primeiro álbum vencedor do prémio Best Portuguese Act da MTV. Totalmente merecido, claro, se momentos como “Nothing Else Goes”, “Toxic”, “You In Your Arms” ou “You Owe Us Blood” ainda não perderam, de todo, o sentido.
Ponto de maior maturidade ainda (É sempre neste sentido que a música dos Blind Zero caminha- o de um amadurecimento.), é “The Night Before and a New Day” (2005). Podemos entender este álbum como uma espécie de segundo tomo de “A Way To Bleed Your Lover”: a própria banda assume que quis dar um lado mais suave da sua música depois do negrume do álbum anterior: a esta certeira decisão devemos canções belíssimas como “Absent Without Permission”, “Day 1”, “Turn it On” ou “Black Roses”.
O sort-of-best-of “Time Machine: Memories Undone” de 2007 faz mais do que recolher alguns dos pontos altos dos primeiro 13 anos dos Blind Zero. A decisão de apresentar os temas ao vivo tem o excelente condão de corrigir completamente as fragilidades das canções mais antigas: pois que “Big Brother” ou “Recognize” soam tão melhor nestas versões, em que se nota realmente o “rosto” de quem as toca.
Luna Park”, acabadíssimo de lançar, mostra-nos que “Time Machine: Memories Undone” é também um disco de charneira. Há algo de definitivamente muito novo depois dele.
“Luna Park” é incatalogável. Ele pertence aos Blind Zero, mas não é possível inseri-lo em nenhuma fase da sua música: pelo que podemos apenas concluir que uma nova fase se está a iniciar. Talvez não seja ao acaso que, em “Fun House”, Miguel Guedes repita “take another look at me now”. “Luna Park” tem mesmo que ser olhado, ou melhor, ouvido, com atenção, porque não é um álbum fácil, ou óbvio, pelo menos.
O contraponto entre a luminosidade e a obscuridade que foi feito separadamente nos álbuns de 2003 e 2005 é agora completamente condensado. Estas músicas têm algo de depressivo, mas também algo de muito esperançoso.
Não raras vezes as letras de Miguel Guedes nos confrontam com situações-limite, dolorosas, incisivas. Mas a sonoridade das canções consegue, estranhamente acompanhar essa espécie de desespero mas apontar-lhe também uma luz. Aproprio-me de dois versos do poeta Egito Gonçalves que me parecem fazer sentido aqui: “aumenta a raiva/ e a esperança reproduz-se”.
Prendo-me, a propósito disto, um pouco acerca do título: “Luna Park” é uma referência literária, mas também nos remete para uma espécie de parque de diversões: claro que este não é um disco divertido, longe disso aliás, mas é, de certa forma, uma sequência da ideia das caixas de bonecas que encontrávamos em “Black Roses” de “The Night Before and a New Day”: é olhar o dramatismo da vida com um olhar quase infantil, metaforicamente, ou seja, é o abandono da ideia do “sem-esperança” que parece ter-se tornado distintivo de tantas bandas ditas rock em Portugal e não só, e é antes um olhar que desdramatiza ou que para isso caminha, como se a vida se resumisse a esse parque de diversões onde se atravessam situações vertiginosas, mas das quais sabemos que sairemos ilesos. Ou quase, no que toca especificamente a este álbum.
É um pouco isto que nos oferece “Luna Park”. Os casos mais evidentes parecem-me ser “Fun House” ou “Loose Ends”, “How The Wind Blows” e de certa forma, também “Two Days”: é perante um sofrimento que as palavras nos colocam, mas a música faz o percurso “das trevas para a luz” (É de Isabel de Sá que agora me aproprio.).
A música perde um pouco da “crueza” que encontrávamos em “One Silent Accident”, por exemplo, dando mais atenção a arranjos de voz e outros. O que perde em “peso de som” ganha em sofisticação.


Em termos gerais, “Luna Park” não representa mais que um acto de profundíssima liberdade. E é minha crença pessoal que sem liberdade, não pode existir arte alguma. “Luna Park” é uma recusa de qualquer fórmula, não há uma sequer música que nos remeta para qualquer música passada; e é o disco em os Blind Zero correm mais riscos. São cinco discos de originais antes deste, e agora surge-nos um inesperado desvio. E um desvio que prova a flexibilidade da sonoridade dos Blind Zero. Porque pode perfeitamente moldar-se a um som mais suave sem deixar a sua atmosfera “urbano-decadente” dita grunge, sem qualquer tipo de depreciação. São aliás as canções onde se sente mais esta dualidade as mais fortes do álbum. Refiro-me a “Back to the Fire”, “Fun House” (Que me parece ser o ponto mais alto do álbum.) ou “All Alone We Dance”: além de canções de uma sonoridade distinta e conscientemente entristecedoras, são também dos melhores momentos líricos de Miguel Guedes, que à qualidade lírica nos tem já vindo a habituar. Arrisco, aliás dizer que Miguel Guedes é o melhor letrista português: em nenhuma outra banda as letras estão tão próximas da poesia. Excluo disto, como não podia deixar de ser, os Clã, mas o caso deles é diferente, pois que as letras são muitas vezes da autoria quer de letristas mais “conceituados” como Carlos Tê ou Sérgio Godinho, quer mesmo de poetas como é o caso de Regina Guimarães.
“Luna Park” segue também o esquema normal de todos os discos dos Blind Zero: uma dúzia de canções, todas elas incisivas, sem palha, e cada uma construída com minúcia e extremo perfeccionismo. Não estamos perante uma música de características barrocas, mas estamos perante uma música onde não se dispensa o pormenor. Daí a complexidade do som, que é mais audível aqui do que em qualquer momento passado. E isso acontece mesmo em “Slow Time Love” que se poderia considerar, de todo o conjunto, a canção mais radio-friendly.
Não esqueçamos também, porque é essencial, que “Luna Park” é uma edição de autor (O que, depois da quantidade/qualidade de produtores com quem já trabalharam é um acto de coragem.), onde o material é totalmente produzido pela própria banda. Se calhar, só esse tipo de “isolamento” poderia permitir a criação de um objecto com a qualidade de “Luna Park”. É já antiga a máxima de que a criação artística é primeiramente um acto de egoísmo, e isso é claro neste disco: não foi feito para agradar a ninguém. Mas o facto é que agrada e muito. Pelo menos a quem estiver interessado em ouvir Blind Zero. Aqueles que estão à procura dos Pearl Jam portugueses não os vão encontrar aqui, mas também duvido que procurem, porque há já muito tempo que não os têm encontrado.
Se é ou não o melhor álbum dos Blind Zero, não consegui decidir ainda. Mas que fica acima de qualquer expectativa, isso é sem dúvida.

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