quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Natália Correia: Sonetos Românticos

AMOR, MORTE, POESIA. “MAIS LUZ! MAIS LUZ!”

Iniciada em 1947, a obra poética de Natália Correia destaca-se das suas contemporâneas por conseguir coadunar uma forma clássica ou erudita a um conteúdo original e próprio, associável facilmente a um surrealismo tardio onde se podem incluir Herberto Helder ou Luiza Neto Jorge: já mais longe do hermetismo lírico de Cesariny, mas mais próximos de uma modernidade de tratamento da própria poesia.
Natália, dos três, terá sido, definitivamente a mais mediatizada: Herberto silencia-se nos anos 80, Luiza interrompe a produção poética a partir de 1973 (Vindo a publicar postumamente “A Lume”.). Natália, por outro lado, constrói um percurso individual, vasto e coerente. A par com questões literárias, participa activamente na vida política do pós-25 de Abril e nunca deixa de estar inserida numa determinada elite lisboeta que passaria pelo Botequim, casa de fados que a própria possuía.

A sua produção começa no romance, “Anoiteceu no Bairro”, em 1946, obra onde revela uma maturidade e capacidade analítica surpreendente para os seus 23 anos.
Foi no ano seguinte que se estreou na poesia: “Rio de Nuvens” teria sido escrito por volta dos dezasseis anos da autora. Como ela própria explica no prefácio à sua “Poesia Completa” (edições Dom Quixote, 1999), este livro teria sido vítima de cortes de certos poemas por parte do autor do prefácio, que “exagera a tónica de se passar” por mestre da poeta. Mesmo assim, não há como negar que em “Rio de Nuvens” é de prever um futuro interessante no que toca à poesia. Tal não aconteceu, pois todas as expectativas que este debut pudesse criar foram definitivamente ultrapassadas. Fiel ao seu estilo, Natália erigiu, até à morte, em 1993, uma das obras de maior importância e qualidade da história da literatura. Obras como “Dimensão Encontrada” (1957), “O Armistício” (1985), “O Vinho e a Lira” (1966) ou (Apesar do péssimo título.) “Poemas” (1955) falam por si e, certamente, confirmam o que disse.

Mas “Sonetos Românticos” é um livro que não pode ser incluído em qualquer ciclo que a poeta tenha atravessado ao longo do seu percurso. Se podemos entender que “O Anjo de Ferro à Entrada do Ocidente” e “Epístola Aos Iamitas” formarão um ciclo mais politizado ou de “Dimensão Encontrada” a “O Dilúvio e a Pomba” encontramos uma fase densamente metafórica ou metafísica, a verdade é que “Sonetos Românticos”, última obra poética publicada por Natália Correia, em 1990, constitui um livro singular e sem equivalentes.
É verdade que já “Epístola aos Iamitas” (1976) fora inteiramente redigido em sonetos, ou que em inúmeros dos seus livros o tema dos amantes e do amor romântico surge, se não continuamente, pelo menos constantemente. “Sonetos Românticos” é outra coisa.

Logo ao começar, lê-se em epígrafe “Visando a unidade,/ o soneto é o ouro/ da culminação da Obra Poética.”
Estamos, portanto, perante uma poeta que se confronta com a proximidade da morte. Novidade nenhuma a morte na poesia de Natália. No livro anterior, publicado cinco anos antes, a morte era quase assunto omnipresente. Mas aqui não se trata da morte, mas sim da nitidez com que agora esta é vista. É, pois, alguém que sente o fim a chegar. O fim de tudo. Até da Obra Poética, a sua culminação.
O soneto, forma que já muito dissera a Florbela Espanca, Antero de Quental , Camões ou Bocage, é o assunto central do primeiro capítulo deste livro. Quatro sonetos sobre sonetos, “Ars Aurifera”. Interessante será citar precisamente o início “Do soneto que sémen e ovo inclui”, ou seja, o soneto é aqui chave por representar o uníssono do masculino e do feminino, esse “Misterioso nó que em sacra escrita/Cismos e abismos une.”
A outra parte do título diz respeito ao “romântico”. À vista desarmada poder-se-ia pensar que se trata de um livro de sonetos de amor. Mas a palavra “românticos” assume aqui um outro significado, englobando também este primeiro: a apropriação de uma linguagem mais ligada à poesia romântica de Garrett, por exemplo. E, ainda que continuemos a sentir um forte eco do surrealismo e até de um certo simbolismo, aqui, a linguagem é realmente outra, mais interior, menos imagética, mais psíquica. Não é uma característica que se aplique a todos os poemas, mas à maior parte.
O segundo capítulo vem evidenciar também a recusa a um certo surrealismo. “Rogando à Musa que Torne Claro o Coração Obscuro”. O que se nota, também, ao longo desta leitura, é uma procura de clareza e de limpidez como nunca se vira em Natália Correia (Com excepção, possivelmente, dos raros poemas em prosa que foi incluindo nos seus livros.) A proximidade de um fim, efectivamente, pode induzir o poeta a querer esclarecer em definitivo a sua poesia, ou pelo menos, assim parece acontecer aqui.
É interessante aqui um parêntesis para um paralelismo: Luiza Neto Jorge, outro dos nomes desta “onda”, manteve características surrealistas no grosso da sua obra entre 1960 e 1973. “A Lume”, livro póstumo publicado em 1989, no entanto, surgia com uma outra clareza de discurso, uma linguagem mais depurada e mais simplificada onde também se notava a consciência do declínio do corpo e da vida a esmorecer aos poucos.
O declínio do corpo faz-se sentir raramente aqui, mas, mais à frente, no soneto “O Espírito”, sente-se, porque “cruentas/ Rugas me humilham. Não mais em estilo brando.”
Mas, sendo este um espírito de reflexão e de derradeira retrospectiva, não é de estranhar que o terceiro capítulo, “Mãe Ilha” vá resgatar as figuras marcantes não na obra poética de Natália, mas em toda a sua obra, precisamente a Mãe e a Ilha. Há que não esquecer que Natália era açoreana de origem e que foi criada pela mãe, pianista, uma vez o seu pai teria fugido para o Brasil. Aliás, o quarto soneto tem como subtítulo “sempre que ouço piano”, referência inequívoca á figura da Mãe: um e outro são indissociáveis nas obras de Natália.
“Louvado Seja o Génio da Noite”. É mais antigo do que o mundo que a noite seja associada à morte, pelo que os quatro sonetos deste capítulo serão talvez os mais ambivalentes de todo o livro. “Lenta declina a luz e a noite vai/ Entrando no tardo entardecer./ Vaga e intérmina uma folha cai,/ Subtil suspira um deus nesse descer.” Palavras que falarão por si. Mas talvez a mais clara passagem deste livro seja “Génio da eternidade enternecida,/ Dá-me do sonho a loucura exacta/ Que liberta a alma taciturna.” Clara porque nos revela exactamente o espírito com que Natália Correia olha a morte. Não há, em momento algum, um lamento pela partida. Pelo contrário, morrer é um acto heróico a fazer de cabeça levantada.
Ela própria tem noção de que “Nascer é um deus que prega uma partida”, que “Eu não sou deste mundo.”.
Ainda a destacar é o capítulo “Do Amor que Acorda o Espírito que Dorme”, dividido em “O Corpo”, “A Alma” e “O Espírito”, três dos melhores poemas da obra da autora. E, claro, o poema que, para todos os efeitos, foi o seu último, misto de ironia (Uma vez que Natália não foi nunca católica.) e de discurso de quem não lamenta a vida. Nem a morte.
Ele aqui fica:

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de uma astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Amén.


NOTA: Para quem conhece o volume da “Poesia Completa”, montado pela autora ainda em vida, e publicado pela Dom Quixote, já na segunda edição, não é novidade que o conceito original deste livro seria serem sonetos e cantigas de amigo, em capítulos separados. No entanto, Natália acabou por decidir incluir apenas os sonetos, pelo que considero o poema acima o último da sua obra.

3 comentários:

Graça Martins disse...

Black-hole
Muito bem observada a obra da Natália Correia.
Tens queda para a análise!!
Natália era uma força da natureza. Uma natureza telúrica. Um espírito analítico e crítico únicos. Uma voz fundamental no discurso político, enquanto deputada no parlamento. Em Portugal foram e são poucas as mulheres com esta frontalidade. Bonitas mas não reduzidas a objecto decorativo.INTELIGENTES QUE BASTE

betânia liberato disse...

Descobri que o meu pai tem um livro de capa dura em que houve uma tiragem minima desta ediçao,de uma antologia de poesia erotica e satirica portuguesa,e assinada pela natalia correia. Julgo que esta mulher conseguia ter mais tomates que muitos homens... e vejamos que não era qualquer mulher que naquela altura fazia tamanha obra... meter-se seleccionar e assinar antologias de poesia erotica e satirica,uma mulher,naqueles tempos...

Anyway.. gostei deste espaço :)

Anónimo disse...

Natália Correia, é o símbolo da irreverência, a utopia de qualquer Mulher...
Natália foi tudo, foi muito, muito exagero, mas Natália seduzia por isso mesmo. Aquele olhar, o rimel, o lápis preto..
Natália a defensora da arte, dos direitos