(à Graça Martins)
1.
Um dos filmes mais icónicos de Rainer Werner
Fassbinder tem como título Angst essen
Seele auf, ou seja, o medo come a
alma. Esta ideia, no fundo, contraria o conceito secular da Regra de S.
Bento, que proíbe o riso para assegurar a impotência perante o medo de Deus.
Nesta perspectiva, o medo conserva a alma, em vez de a devorar como no aforismo
de Fassbinder. Tanto enquanto elemento que se valoriza (como na visão
beneditina) como enquanto inimigo (como no título do realizador alemão), o medo
é um dos temas centrais da Arte, desde a mais erudita à mais popular. O medo de
Deus, o medo da morte, da rejeição amorosa, da perda, ou de uma série de
entidades (descambando aí para a fobia). Quer o medo do vencível, quer do
invencível, torna-se uma forma de relação com os outros e com o mundo. O medo
da ira divina estruturou todas as culturas iniciáticas, desde Maias e Aztecas à
Mesopotâmia e ao Egipto, aos Gregos e aos Romanos, que criariam sistemas
inteiros que giravam em torno do medo dos deuses ou do sobrenatural ou do
metafísico. O Cristianismo veio intensificar o medo enquanto condição primária
do Homem na relação com o mundo. A rejeição do riso, enquanto arma contra o
medo, por parte da Ordem de S. Bento, constitui uma espécie de manutenção desse
medo. E se ordens como os Franciscanos ou os Carmelitas tinham permissão para
rir, não deixavam de atravessar privações e infortúnios físicos e psicológicos
vários para se redimirem de qualquer possibilidade de pecado. O que prova o
medo do castigo. Posta ao serviço da religião, no sentido de espalhar a
mensagem bíblica por um público que não sabia ler as sagradas escrituras que,
mais ainda, não estavam traduzidas para as línguas vernáculas, a Arte manteve
desde logo a sua relação igualmente intensa com a problemática do medo. E,
mesmo quando liberta da religião ou da superstição, não faltam exemplos de
obras de arte que estão em directa comunicação com o medo. Aliás, vemos até que
algumas épocas particularmente conturbadas originaram obras de referência nesse
diálogo com o terror. Bram Stoker publicou a sua obra-prima, ‘’Dracula’’ (1897)
numa Inglaterra pós-vitoriana que ainda não se tinha livrado da sombra de Jack
o Estripador.
É virtualmente inevitável que o medo tenha lugar
central na Arte, principalmente se a entendermos como espaço de experiência
para a resolução do enigma humano, por assim dizer. Logo por uma questão de
escala, o Homem está em clara desvantagem perante o mundo. É um animal pequeno
em comparação com inúmeras espécies de grande porte e, fora isso, é minúsculo
num planeta imenso que flutua num espaço sideral infinito. O medo é um
reconhecimento dessa desproporção e toda a civilização não nasceu senão da
extrema necessidade do Homem compensar a sua fragilidade. A habitação e o
armamento foram as duas primeiras grandes invenções do Homem por isso mesmo:
eram defesas contra um mundo potencialmente hostil.
2.
Um dos géneros mais monosprezados no cinema tem sido o
de horror. Desde produções como Nosferatu
de F.W. Murnau (1922) a exemplos mais recentes como Psycho (1960) de Hitchcock, The
Texas Chainsaw Massacre (1974) de Tobe Hooper ou Halloween (1978) de John Carpenter, parecemos ter perdido de todo o
respeito pelo cinema de horror. Isto, partindo do princípio que tal respeito
alguma vez existiu –o que seria negligenciar o silêncio ou o cepticismo da
maioria da crítica face a quase todas as produções até do melhor cinema de
horror, bem como a ausência destes filmes sequer dos nomeados para prémios,
quer os mais mainstream como os
Oscars, quer outros mais alternativos ou independentes, supostamente abertos a
propostas menos comerciais.
A partir de meados dos anos 90, e cada vez mais, a
produção de filmes de horror disparou até ao exagero, sendo as produções quase
sempre de uma enorme falta de qualidade e originalidade, indo de encontro às
reservas da crítica. Por um lado, filmes como The Texas Chainsaw Massacre, Halloween, Friday the 13th (1980) de
Sean S. Cunningham, A Nightmare on Elm Street
(1983) de Wes Craven e Hellraiser
(1987) de Clive Barker, geraram um sem-número de sequelas directas e, por outro
lado, parecem também ter gerado um padrão que muitos realizadores imitaram
mesmo não os referindo ou continuando directamente. Todo o cinema de horror se
tornou então um sistema de fórmulas e de clichés,
principalmente a partir do momento em que se percebeu que tais fórmulas eram
extremamente vendáveis. Hollywood fez do cinema de horror a sua vaca e tem-lhe
espremido o leite com uma desfaçatez que se torna constrangedora. Enquanto
género, o horror não é levado a sério, ao mesmo tempo que é um dos géneros mais
produtivos e lucrativos da indústria americana –isto porque pouco extravasou
para a Europa.
Se sabemos que outros géneros, principalmente o western e o scy-fy, ocuparam no passado este lugar, igualmente temos que
reconhecer que, ao contrário do horror, esses géneros, particularmente o scy-fy, não têm merecido o mesmo
desprezo da crítica e até dum público mais culto: são géneros que conferiram o
estatuto de lendas a nomes como John Wayne, Tom Ford, George Lucas e Steven
Spielberg, que se afirmaram como agentes de qualidade num universo que
pretendia quase sempre apenas ser rentável. Isto apesar de, a certa altura, os westerns se produzirem a um ritmo tão
desesperado que se chagavam a usar os mesmos cenários para três e quatro filmes
diferentes, e do scy-fy ter redundado
também num sistema de fórmulas repetidas, como Susan Sontag aponta no seu
ensaio The Imagination of Disaster.
Mas nomes como John Carpenter ou Dario Argento são
ainda essencialmente de culto, pouco relevantes fora dum público que já os
conhece e reconhece.
3.
Para a actualidade, os filmes mais relevantes são os
cinco acima enunciados: The Texas
Chainsaw Massacre, Halloween, Friday the 13th, A Nightmare on Elm Street e Hellraiser.
O primeiro, de Tobe Hooper, baseia-se livremente a
história do psicopata americano Ed Gein, que se torna Leaterface, um bruto
atrasado mental que vive com a família no Texas. Um grupo de adolescentes
depara-se com ele no decurso de uma viagem. Um a um, são chacinados
grotescamente e a sua pele aproveitada pelo assassino para fazer máscaras para
tapar o seu rosto deformado. Mas Hooper soube tirar proveito do que de eventualmente
mais perturbante existia no caso de Ed Gein: as fotografias da sua casa, cheia
de objectos feitos pelo próprio, com restos de cadáveres cujos túmulos havia
profanado. A casa de Leatherface também está cheia destes arts & crafts macabros, que proporcionam não só alguns dos
momentos mais arrepiantes do filme como se tornam imagens de uma força
impressionante, dignas de serem encaradas como esculturas, peças artísticas que
redescobrem com esplendor a beleza do tétrico.
A película de John Carpenter centra-se na figura de
Michael Myers que, na noite de Halloween, aos seis anos, assassina a irmã mais
velha. Confinado num asilo psiquiátrico depois disso, Michael consegue escapar
aos vinte e um anos e, na noite de Halloween, chega à sua cidade-natal de Haddonfield,
Illinois, onde persegue e mata algumas raparigas, enquanto o seu psiquiatra e a
enfermeira se esforçam por encontra-lo. Essa mesma noite é continuada na
primeira sequela, Halloween II (1981)
que considero legítimo por ainda ter o cunho de John Carpenter e Debra Hill, os
autores do original. É na sequela que a enfermeira descobre que a sobrevivente
do massacre era, na verdade, irmã de Myers. Carpenter trabalha de uma forma
aberrativamente simples, usando como pontos de vantagem o som, a música, a sugestão
e a própria simbologia. Ao contrário de Leatherface ou da maioria dos grandes
galãs do cinema de horror, Michel Myers não tem um aspecto grotesco: usa uma
máscara lisa branca, que nos remete para a escultura grega, em que a perfeição
dos rostos lhes conferia uma valência mais enquanto símbolos do que enquanto
humanos. Michael parece assim uma espécie de divindade maligna que luta pela
sua desumanização. É aí precisamente que ganha sentido que Laurie Strode, a
sobrevivente interpretada por Jamie Lee Curtis, seja afinal irmã do assassino. Aquela
figura sem relações pessoais, que esteve em estado catatónico durante quinze
anos, está ainda assim preso á sua condição humana pelas relações de sangue:
aos seis anos, mata uma irmã, os pais morrem pouco depois, e escapa aos vinte e
um anos para matar a outra irmã, cortando assim com os vestígios da sua
humanidade.
Friday the
13th de Sean S. Cunningham é de todos os
clássicos, aquele que parece mais premonitório, particularmente no que tem de
mau. Apresenta-nos uma história de vingança: Jason Vorhees, um atrasado mental,
morre afogado no acampamento de férias de Crystal Lake e, anos depois, a sua
mãe regressa para massacrar os monitores irresponsáveis encarregues de tomar
conta das crianças. Ainda que a história tenha algum potencial, o filme
torna-se decepcionante, principalmente tendo em conta as experiências de Hooper
e Carpenter. Friday the 13th soa
gratuito quase sempre e não há nele a sensibilidade que lida com a sugestão em
vez do explícito, torna-se óbvio e imediato e, daí, pouco intenso enquanto
objecto artístico. É no entanto uma fonte directa de referência para a
actualidade. Na altura, gozava ainda do facto de não haver muitos filmes assim.
Caso um tanto diferente é a proposta de Wes Craven em A Nightmare on Elm Street, que retoma o
tema da vingança, desta vez na primeira pessoa. Em Elm Street, uma série de
adolescentes começa a morrer de formas absolutamente sangrentas, mas o
assassino parece não ter existência física. Na verdade, trata-se de Fred
Krueger, um homem de rosto queimado, que visita as vítimas no sono e, a partir
daí, as mata. Isto porque Krueger era o contínuo do jardim-de-infância da
cidade, e violava as crianças. Numa lógia de justiça-pelas-próprias-mãos, a
comunidade incendiara a creche com Krueger lá dentro. Anos depois, ele
regressa, armado com as suas luvas de garras metálicas, para assassinar os
filhos da comunidade que o assassinara a ele. Mas o que Craven consegue de mais
importante em A Nightmare on Elm Street
é a utilização directa do potencial imagético ilimitado dos sonhos. A
influência pictórica surrealista sente-se em vários momentos do filme, entre as
figuras de membros exagerados de Salvador Dalí, os cenários teatrais de Paul
Delvaux aqui levados ao cúmulo do decrépito, o caos referencial de Un Chien Andalou de Luis Buñuel e até a
técnica do dripping de Jackson
Pollock.
O caso eventualmente mais complexo será a adaptação
que Clive Barker faz do seu próprio romance ‘’The Hellbound Heart’’ (1986). Hellraiser não é, até certo ponto, um
filme de horror, ainda que, principalmente por causa da saga que originou, nos
tenhamos habituado a vê-lo como tal. O tema primeiro de Clive Barker é o da
insatisfação. Frank Cotton encontra em Marrocos a caixa que ficará conhecida
como a Configuração do Lamento, que lhe abrirá as portas do prazer sexual mais
extremo. Trata-se de um homem que já havia experimentado tudo sem,
neuroticamente, alguma vez se sentir assoberbado. Mas quando uma comunidade de
Cenobites encabeçada por Pinhead vem busca-lo para o Inferno, um mundo de
tortura sadomasoquista, Frank mal pode esperar por escapar, no que é ajudado
pela cunhada e amante, Julia. Todo o filme está pejado de imagens sangrentas
que tentam ainda aludir ao estado último de sensualidade importado do Marquês
de Sade e de Leopold de Sacher-Masoch. A vertente do horror surge assim pelo extreme-gore, reforçado pelas figuras
torturadas mas quase glamourosas dos
Cenobites (e relembre-se que a definição de cenobita se encontra precisamente
na Regra de S. Bento, que os identifica como homens religiosos duma comunidade
monástica).