sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A confissão da inocência (parte 1)

(à Graça Martins)


1.
Um dos filmes mais icónicos de Rainer Werner Fassbinder tem como título Angst essen Seele auf, ou seja, o medo come a alma. Esta ideia, no fundo, contraria o conceito secular da Regra de S. Bento, que proíbe o riso para assegurar a impotência perante o medo de Deus. Nesta perspectiva, o medo conserva a alma, em vez de a devorar como no aforismo de Fassbinder. Tanto enquanto elemento que se valoriza (como na visão beneditina) como enquanto inimigo (como no título do realizador alemão), o medo é um dos temas centrais da Arte, desde a mais erudita à mais popular. O medo de Deus, o medo da morte, da rejeição amorosa, da perda, ou de uma série de entidades (descambando aí para a fobia). Quer o medo do vencível, quer do invencível, torna-se uma forma de relação com os outros e com o mundo. O medo da ira divina estruturou todas as culturas iniciáticas, desde Maias e Aztecas à Mesopotâmia e ao Egipto, aos Gregos e aos Romanos, que criariam sistemas inteiros que giravam em torno do medo dos deuses ou do sobrenatural ou do metafísico. O Cristianismo veio intensificar o medo enquanto condição primária do Homem na relação com o mundo. A rejeição do riso, enquanto arma contra o medo, por parte da Ordem de S. Bento, constitui uma espécie de manutenção desse medo. E se ordens como os Franciscanos ou os Carmelitas tinham permissão para rir, não deixavam de atravessar privações e infortúnios físicos e psicológicos vários para se redimirem de qualquer possibilidade de pecado. O que prova o medo do castigo. Posta ao serviço da religião, no sentido de espalhar a mensagem bíblica por um público que não sabia ler as sagradas escrituras que, mais ainda, não estavam traduzidas para as línguas vernáculas, a Arte manteve desde logo a sua relação igualmente intensa com a problemática do medo. E, mesmo quando liberta da religião ou da superstição, não faltam exemplos de obras de arte que estão em directa comunicação com o medo. Aliás, vemos até que algumas épocas particularmente conturbadas originaram obras de referência nesse diálogo com o terror. Bram Stoker publicou a sua obra-prima, ‘’Dracula’’ (1897) numa Inglaterra pós-vitoriana que ainda não se tinha livrado da sombra de Jack o Estripador.
É virtualmente inevitável que o medo tenha lugar central na Arte, principalmente se a entendermos como espaço de experiência para a resolução do enigma humano, por assim dizer. Logo por uma questão de escala, o Homem está em clara desvantagem perante o mundo. É um animal pequeno em comparação com inúmeras espécies de grande porte e, fora isso, é minúsculo num planeta imenso que flutua num espaço sideral infinito. O medo é um reconhecimento dessa desproporção e toda a civilização não nasceu senão da extrema necessidade do Homem compensar a sua fragilidade. A habitação e o armamento foram as duas primeiras grandes invenções do Homem por isso mesmo: eram defesas contra um mundo potencialmente hostil.



2.
Um dos géneros mais monosprezados no cinema tem sido o de horror. Desde produções como Nosferatu de F.W. Murnau (1922) a exemplos mais recentes como Psycho (1960) de Hitchcock, The Texas Chainsaw Massacre (1974) de Tobe Hooper ou Halloween (1978) de John Carpenter, parecemos ter perdido de todo o respeito pelo cinema de horror. Isto, partindo do princípio que tal respeito alguma vez existiu –o que seria negligenciar o silêncio ou o cepticismo da maioria da crítica face a quase todas as produções até do melhor cinema de horror, bem como a ausência destes filmes sequer dos nomeados para prémios, quer os mais mainstream como os Oscars, quer outros mais alternativos ou independentes, supostamente abertos a propostas menos comerciais.
A partir de meados dos anos 90, e cada vez mais, a produção de filmes de horror disparou até ao exagero, sendo as produções quase sempre de uma enorme falta de qualidade e originalidade, indo de encontro às reservas da crítica. Por um lado, filmes como The Texas Chainsaw Massacre, Halloween, Friday the 13th (1980) de Sean S. Cunningham, A Nightmare on Elm Street (1983) de Wes Craven e Hellraiser (1987) de Clive Barker, geraram um sem-número de sequelas directas e, por outro lado, parecem também ter gerado um padrão que muitos realizadores imitaram mesmo não os referindo ou continuando directamente. Todo o cinema de horror se tornou então um sistema de fórmulas e de clichés, principalmente a partir do momento em que se percebeu que tais fórmulas eram extremamente vendáveis. Hollywood fez do cinema de horror a sua vaca e tem-lhe espremido o leite com uma desfaçatez que se torna constrangedora. Enquanto género, o horror não é levado a sério, ao mesmo tempo que é um dos géneros mais produtivos e lucrativos da indústria americana –isto porque pouco extravasou para a Europa.
Se sabemos que outros géneros, principalmente o western e o scy-fy, ocuparam no passado este lugar, igualmente temos que reconhecer que, ao contrário do horror, esses géneros, particularmente o scy-fy, não têm merecido o mesmo desprezo da crítica e até dum público mais culto: são géneros que conferiram o estatuto de lendas a nomes como John Wayne, Tom Ford, George Lucas e Steven Spielberg, que se afirmaram como agentes de qualidade num universo que pretendia quase sempre apenas ser rentável. Isto apesar de, a certa altura, os westerns se produzirem a um ritmo tão desesperado que se chagavam a usar os mesmos cenários para três e quatro filmes diferentes, e do scy-fy ter redundado também num sistema de fórmulas repetidas, como Susan Sontag aponta no seu ensaio The Imagination of Disaster.
Mas nomes como John Carpenter ou Dario Argento são ainda essencialmente de culto, pouco relevantes fora dum público que já os conhece e reconhece.


3.
Para a actualidade, os filmes mais relevantes são os cinco acima enunciados: The Texas Chainsaw Massacre, Halloween, Friday the 13th, A Nightmare on Elm Street e Hellraiser.
O primeiro, de Tobe Hooper, baseia-se livremente a história do psicopata americano Ed Gein, que se torna Leaterface, um bruto atrasado mental que vive com a família no Texas. Um grupo de adolescentes depara-se com ele no decurso de uma viagem. Um a um, são chacinados grotescamente e a sua pele aproveitada pelo assassino para fazer máscaras para tapar o seu rosto deformado. Mas Hooper soube tirar proveito do que de eventualmente mais perturbante existia no caso de Ed Gein: as fotografias da sua casa, cheia de objectos feitos pelo próprio, com restos de cadáveres cujos túmulos havia profanado. A casa de Leatherface também está cheia destes arts & crafts macabros, que proporcionam não só alguns dos momentos mais arrepiantes do filme como se tornam imagens de uma força impressionante, dignas de serem encaradas como esculturas, peças artísticas que redescobrem com esplendor a beleza do tétrico.
A película de John Carpenter centra-se na figura de Michael Myers que, na noite de Halloween, aos seis anos, assassina a irmã mais velha. Confinado num asilo psiquiátrico depois disso, Michael consegue escapar aos vinte e um anos e, na noite de Halloween, chega à sua cidade-natal de Haddonfield, Illinois, onde persegue e mata algumas raparigas, enquanto o seu psiquiatra e a enfermeira se esforçam por encontra-lo. Essa mesma noite é continuada na primeira sequela, Halloween II (1981) que considero legítimo por ainda ter o cunho de John Carpenter e Debra Hill, os autores do original. É na sequela que a enfermeira descobre que a sobrevivente do massacre era, na verdade, irmã de Myers. Carpenter trabalha de uma forma aberrativamente simples, usando como pontos de vantagem o som, a música, a sugestão e a própria simbologia. Ao contrário de Leatherface ou da maioria dos grandes galãs do cinema de horror, Michel Myers não tem um aspecto grotesco: usa uma máscara lisa branca, que nos remete para a escultura grega, em que a perfeição dos rostos lhes conferia uma valência mais enquanto símbolos do que enquanto humanos. Michael parece assim uma espécie de divindade maligna que luta pela sua desumanização. É aí precisamente que ganha sentido que Laurie Strode, a sobrevivente interpretada por Jamie Lee Curtis, seja afinal irmã do assassino. Aquela figura sem relações pessoais, que esteve em estado catatónico durante quinze anos, está ainda assim preso á sua condição humana pelas relações de sangue: aos seis anos, mata uma irmã, os pais morrem pouco depois, e escapa aos vinte e um anos para matar a outra irmã, cortando assim com os vestígios da sua humanidade.
Friday the 13th de Sean S. Cunningham é de todos os clássicos, aquele que parece mais premonitório, particularmente no que tem de mau. Apresenta-nos uma história de vingança: Jason Vorhees, um atrasado mental, morre afogado no acampamento de férias de Crystal Lake e, anos depois, a sua mãe regressa para massacrar os monitores irresponsáveis encarregues de tomar conta das crianças. Ainda que a história tenha algum potencial, o filme torna-se decepcionante, principalmente tendo em conta as experiências de Hooper e Carpenter. Friday the 13th soa gratuito quase sempre e não há nele a sensibilidade que lida com a sugestão em vez do explícito, torna-se óbvio e imediato e, daí, pouco intenso enquanto objecto artístico. É no entanto uma fonte directa de referência para a actualidade. Na altura, gozava ainda do facto de não haver muitos filmes assim.
Caso um tanto diferente é a proposta de Wes Craven em A Nightmare on Elm Street, que retoma o tema da vingança, desta vez na primeira pessoa. Em Elm Street, uma série de adolescentes começa a morrer de formas absolutamente sangrentas, mas o assassino parece não ter existência física. Na verdade, trata-se de Fred Krueger, um homem de rosto queimado, que visita as vítimas no sono e, a partir daí, as mata. Isto porque Krueger era o contínuo do jardim-de-infância da cidade, e violava as crianças. Numa lógia de justiça-pelas-próprias-mãos, a comunidade incendiara a creche com Krueger lá dentro. Anos depois, ele regressa, armado com as suas luvas de garras metálicas, para assassinar os filhos da comunidade que o assassinara a ele. Mas o que Craven consegue de mais importante em A Nightmare on Elm Street é a utilização directa do potencial imagético ilimitado dos sonhos. A influência pictórica surrealista sente-se em vários momentos do filme, entre as figuras de membros exagerados de Salvador Dalí, os cenários teatrais de Paul Delvaux aqui levados ao cúmulo do decrépito, o caos referencial de Un Chien Andalou de Luis Buñuel e até a técnica do dripping de Jackson Pollock.
O caso eventualmente mais complexo será a adaptação que Clive Barker faz do seu próprio romance ‘’The Hellbound Heart’’ (1986). Hellraiser não é, até certo ponto, um filme de horror, ainda que, principalmente por causa da saga que originou, nos tenhamos habituado a vê-lo como tal. O tema primeiro de Clive Barker é o da insatisfação. Frank Cotton encontra em Marrocos a caixa que ficará conhecida como a Configuração do Lamento, que lhe abrirá as portas do prazer sexual mais extremo. Trata-se de um homem que já havia experimentado tudo sem, neuroticamente, alguma vez se sentir assoberbado. Mas quando uma comunidade de Cenobites encabeçada por Pinhead vem busca-lo para o Inferno, um mundo de tortura sadomasoquista, Frank mal pode esperar por escapar, no que é ajudado pela cunhada e amante, Julia. Todo o filme está pejado de imagens sangrentas que tentam ainda aludir ao estado último de sensualidade importado do Marquês de Sade e de Leopold de Sacher-Masoch. A vertente do horror surge assim pelo extreme-gore, reforçado pelas figuras torturadas mas quase glamourosas dos Cenobites (e relembre-se que a definição de cenobita se encontra precisamente na Regra de S. Bento, que os identifica como homens religiosos duma comunidade monástica).

1 comentário:

Graça Martins disse...

Parabéns. Uma análise extensiva e muito bem estruturada sobre o medo/terror, que se encontra em todo o ser humano saudável e faz parte do instinto de sobrevivência. Não ter medo e sentir prazer pelo horror é já do domínio da patologia. Não esquecer que desde o séc.XX se institucionalizou uma sociedade hedonista, que precisamente tenta preencher as necessidades das pessoas com TUDO o que ultrapassa o saudável. Nas mentes frágeis os filmes de terror são alimento desastroso! Bandos de adolescentes, autores de chacinas colectivas e sempre motivados pelo cinema de terror, que funciona em muitos jovens como uma espécie de exorcismo e prazer de vingança face ào mundo, às suas incapacidades, ao bullying, e ao meio familiar mais próximo. É nesse aspecto que acho doentio a proliferação de filmes de terror. Refiro-me ao mais do mesmo, aos filmes que são cópia de cópia e que também comentas. Os autores que referes são icónicos e como tal criaram filmes de culto. Mas, é como a Arte e o Kitch. Produzir para vender e utilizar a receita vendável acaba com a criatividade. Parabéns mais uma vez. Gostei muito e obrigada pelo artigo me ser dedicado! O Medo e o seu exorcismo atravessam a minha pintura, também. Termino dizendo que o Terror existe no mundo todos os dias, sem filmagens, e muitos não vão sobreviver, chacinados! Graça