domingo, 27 de dezembro de 2009

Escolho Branca Morte



Faço da infância vocação.
Dores lancinantes, pedidos urgentes
e a impossibilidade de exorcizar-me branca morte.
Exaustão, velhice, desencanto?
Por certo, uma mistura.
Sinto-me uma espécie de refugo, vivendo dos restos,
dos resíduos,
absolutamente só.
Numa primeira proximidade desta solidão,
dir-se-ia que obsessivamente só.
Nem os pensamentos me acompanham. Por enquanto,
ainda a dor impura de lembranças,
fragmentos que esboroam: restos de sol,
uma bóis enfiada em águas de Aljezur, toalhas
de praia, sardinhas, não importa: fragmentos
aflitivamente vivos que me fazem pensar: estou a
morrer, estou morto.
Ninguém acredita nesta morte nem eu mesmo a choro.
Mas é por estes indícios que sou conduzido
ao seu cadáver- uma estrada, algures, a caminho
de Estarreja e às escuras,
antes das louças da Vista Alegre- memórias
minúsculas e incomodatícias.
Não choro. Não conheço esse doce apaziguamento,
enjoo líquido da alma.
Vêm ainda silêncios não inteiramente pacientes
entrecortados destas fugidias e estéreis
recordações, dizer-me que tive vida, fui vivo,
um dia comi queijadas em Sintra.
Nisso se resume uma vida. A minha vida.
Também não escrevo. Algo se quebrou dentro de mim,
não sei se definitivamente, é bem possível,
e esta clausura mortífera e mortal
é também, ironicamente o reconheço, económica.
Não se gastam solas nem saliva,
nem se anda por uma Lisboa intolerável e festiva.
Não és tu quem me faz falta,
tu fazes parte da falta. Sou eu que me falto.
Esforço-me por aproximar-me e não encontro nada.
Nem o vazio que dá acesso ao abismo.
Não é agradável, mas sair e ir ao cinema
também não é agradável para quem está em falta.
Falto-me. Depois vem a dor física e a outra...
e penso: "tenho que deslocar o centro de gravidade
de tudo isto", mas não sei o que é isto.
Desejo o negativo- profanação da ordem que equilibra a
revolta, o vigor do vivo, mas "Uma vida de desejo
só é possível se a falta que é a sua chave
aparecer como pedra angular".
Não tenho apoio. Não tenho onde apoiar-me.
Quando digo estou a morrer e falo de morte, ninguém
entende a morte. Esta morte.
Não é outra morte. É a minha morte.


Eduarda Chiote
Branca Morte
1994, edições &etc
imagem: Jorge Pinheiro

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