Há seis
anos, eu estava a mudar-me para Lisboa. Vivi o primeiro ano num
quarto pequeno ao Bairro Alto, que não tinha grandes vantagens, mas
deixava-me próximo pelo menos da Baixa, e das livrarias, que foram
sempre um dos meus paraísos. Aos sábados, o que acontece ainda
hoje, fazia-se na Rua Anchieta uma feira, com bancas de livros, desde
os mais raros (e caros) até outros a preços de ocasião. Foi nesse
primeiro ano em Lisboa e nessa feira na Rua Anchieta, que encontrei o
primeiro Diário de Luísa Dacosta, a um preço bastante reduzido.
Foram essas as duas razões que me levaram a comprá-lo: era barato e
era um Diário, um género que aprecio bastante mas que raro é
escrito (ou publicado) em Portugal. Conhecia vagamente o nome de
Luísa Dacosta, é possível que de alguma antologia, mas não posso
estar certo.
Devo ter
demorado duas semanas a ler o livro, apesar de ser bastante extenso.
Hoje, penso que nada de estranho há nisso. «Na água do tempo»,
assim se chama esse primeiro de dois Diários, apaixonou-me
imediatamente por Luísa Dacosta. Imediatamente e sem retorno. Nos
anos seguintes, de alfarrabista em alfarrabista, fui procurando os
seus livros, que lia e relia, com a voracidade que só podemos
dedicar aos livros em que a palavra vai além de si mesma. Mesmo
nesse Diário, impressiona como o fragmento tão pequeno de texto
consegue vibrar de forma tão intensa e perpetuar-se, como se
lêssemos os pequenos textos de Luísa e eles fossem continuar,
sozinhos, quando fechamos o livro e prosseguimos o nosso quotidiano
prosaico, o mesmo quotidiano prosaico que, tantas vezes, é mesmo o
tema dos textos de Luísa.
O mesmo se passa com os restantes livros,
quase sempre de géneros ditos menores: contos, crónicas, romances
fragmentários, novelas curtas. O mundo de Luísa Dacosta não é
realista, é real, os seus
dramas, estruturalmente guiados pelas grandes tragédias, só são
possíveis porque é no real que acontecem, porque cada frase é
talhada a partir da matéria tosca do dia-a-dia, do confronto
violentíssimo entre uma vida interior desejosa de libertação e de
claridade e um lugar onde só florescem a solidão, o isolamento, a
tristeza, as saudades de uma infância perdida. É assim com os seus
livros sobre as grandes cidades, «Vovó Ana, Bisavó Filomena e eu»
(1969) sobre Lisboa, e «Corpo Recusado» (1985) sobre o Porto.
Noutro campo estão o inicial «Província» (1955) em que a cidade
de Vila Real é palco de uma vida anónima e simples em que o drama
encontra saída numa extrema capacidade de contentamento; ou então
as crónicas de «A-Ver-o-Mar» (1980) e «Morrer a Ocidente»
(1991), em que a vila piscatória de A-Ver-o-Mar, cenário tão
análogo à interior Vila Real, se afirma como uma espécie de
retorno ao Éden, uma libertação derradeira, um lugar de felicidade
idílica que nem por isso está livre da brutalidade e da miséria.
Luísa Dacosta, dir-se-á, é uma ficcionsta. O que não é um
demérito, porque muitos dos grandes escritores, por todo o mundo,
são ficcionistas. No entanto, desde esse «Na água do tempo» (que
inclui, também, algumas pequenas ficções), nunca consegui ver
Luísa Dacosta como uma ficcionista. Nalguns momentos, pareceu-me
uma arguta etnóloga, observadora e crua, olhando com dureza mas
nunca com arrogância, para os pescadores de A-Ver-o-Mar e para as
mulheres desses pescadores, ou para as mulheres tão sós de Lisboa
no livro de 1969. Noutros momentos, Luísa pareceu-me uma eterna
diarista, como não deixou de o ser a grande Irene Lisboa. Noutros
momentos ainda, a densidade da experiência humana de que os seus
escritos dão conta, fazem Luísa parecer uma espécie de mística
laica: nela, a experiência da própria humanidade é uma forma de
transcendência, de união com um mundo que pode não ser o melhor,
mas é o que existe, pelo que só amando-o é possível sobreviver. A
sua escrita é intensa e fulgurante por causa dessa transcendência,
e é por isso que em todos os momentos, Luísa Dacosta me pareceu
sempre uma poeta. A pequena edição de «A maresia e o sargaço dos
dias», que, em 2002, reuniu alguns fragmentos poéticos em livro,
não foi mais do que uma confirmação. A poesia era a força que
soprava em todos os escritos de Luísa. A sua tendência para o
fragmento, para o apontamento, para a imagem bruta e impressiva, não
eram senão a intromissão da poesia naquilo que, afinal, somos
precipitados ao classificar como prosa.
É
raro o autor em que encontramos um mundo tão terrível como o de
Luísa Dacosta. Morte, solidão, violência, perda, ausências,
sofrimentos atrozes: disto nos dão conta os seus escritos. Ler Luísa
Dacosta é conhecer de forma desarmante um mundo em que só é
possível sofrer. A escrita parece ser, muitas vezes, uma
possibilidade aberta por esse sofrimento: a possibilidade de sonhar.
Luísa é uma autora da palavra, da consciência da palavra e do seu
poder. De certa forma, continua a pesquisa aberta por Irene Lisboa,
Agustina Bessa-Luís, Torga ou José Gomes Ferreira e continuada por
Maria Velho da Costa, Regina Guimarães ou Hélia Correia: a fusão
de uma linguagem popular com uma linguagem erudita e poética. Luísa
é um dos casos em que essa pesquisa se torna mais relevante e mais
natural. O espaço
aberto pela separação entre estas duas linguagens é perceptível
mas insignificante: sempre o texto parece natural, fluido, perfeito.
Este apuramento da linguagem
escrita é, em Luísa Dacosta, como a planificação de uma viagem, a
escolha do itinerário mais agradável: só pelo sonho podemos
salvar-nos do sofrimento, e só pela escrita poderemos sonhar. Não
admira, então, que a escrita seja cuidadosamente trabalhada,
aperfeiçoada. Aperfeiçoada ao ponto em que não é minimizada por
marcas de época. Estas, como Adolf Loos tão bem viu, são quase
sempre fruto do artifício. Em Luísa Dacosta, nada é artifício,
tudo é incrivelmente real e necessário. O tempo não pesará muito
sobre ela, o que nos diz será reconhecível por muitos e longos
anos. É reconhecível agora, mesmo que nos pareça que tudo mudou
tanto nos últimos cinquenta anos.
Uma
das fotografias mais conhecidas de Luísa foi tirada pela fotógrafa
Graça Sarsfield para a antologia «Vozes e olhares no feminino»,
publicada pelo Porto 2001: Capital Europeia da Cultura. Luísa sorri
abertamente. Tem um riso sincero de menina. Em todas as fotografias
que conheço dela tem esse riso de menina. Incluindo naquela que se
encontra na contracapa de «Na água do tempo». A pergunta que me
fiz, nessa altura, não foi como pode alguém que tem este
sorriso escrever estes textos?, mas
sim, como pode alguém que escreve estes textos ter este
sorriso?
Num
regresso ao Porto, em 2010, conheci Luísa Dacosta. O mesmo riso de
menina, aberto e bem-disposto. Falou-me da Maria de Maria
Vai, Maria Vem, Romance de mulher-a-dias, um
conto de 1969. E falou-me de um terceiro Diário que pretendia
publicar, o que não chegou a acontecer. Perguntei-lhe qual seria o
título, e arrependi-me: poderia ser uma indiscrição.
Mas não. Respondeu-me imediatamente que seria «Os dias sem amanhã».
E acrescentou: Eu sei que é um título pouco optimista,
mas eu acho que não se pode ser optimista neste mundo em que
vivemos.
Tinha
toda a razão. E tinha toda uma obra que atestava essa crença que
partilhávamos. Mas Luísa sorria. Hoje, eu penso que esse sorriso
vinha da escrita: de uma escrita de tal forma densa que permitiu a
Luísa sonhar, sonhar sempre, mesmo quando sabia que os dias eram sem
amanhã.
Emil Cioran, um dos meus filósofos predilectos, tinha a ideia de
que só pensamos contra nós mesmos, de que tudo aquilo que fazemos
acaba por reverter contra nós, por pesar ainda mais sobre a nossa já
imensa miséria. Com Luísa Dacosta, aprende-se a abrir fendas neste
ciclo destrutivo que Cioran aponta, e a preencher essas quebras com a
matéria luminosa duma palavra que permita ultrapassar a realidade em
direcção ao sonho: um sonho que, de resto, não pede o impossível.
O sonho de Luísa Dacosta é sempre feito da versão melhor do
possível.
Luísa Dacosta deixou-nos na noite de 15 de Fevereiro de 2015, um
dia antes do seu 88º aniversário. Morre assim um dos grandes
escritores ignorados da literatura portuguesa. Quando um escritor
morre, o seu leitor pode sempre ser mais optimista do que aqueles que
o conheceram. Conheci Luísa Dacosta, não fomos exactamente amigos,
tínhamos uma relação essencialmente epistolar. Hoje, no entanto,
escolho ser um leitor, para poder dizer que Luísa Dacosta não nos
deixou, que os seus livros continuam na estante, que continuo a
relê-los, que continuam a fazer-me interromper a sina terrível
descrita por Cioran. E principalmente, que em cada texto, no meio do
espectáculo trágico da vida, haverá sempre um frase que tornará
possível que se sorria, sem reservas, face a tudo.
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