Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.
Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.
Neste poema, pertencente à última recolha publicada em vida da autora, Fiama Hasse Pais Brandão escreve no sentido de, através do espaço, abolir o tempo, ou a passagem do tempo, no sentido em que estamos habituados a compreendê-la. Mas o que Urbanização tem de mais intenso é a forma como, logo nos primeiros versos, se recusa a fazê-lo através da colocação do poema no espaço da memória. A fusão entre o passado e o presente dá-se ''no puro espaço/ dos cinco sentidos''. Assim, ''a dupla configuração de um campo'' não é narrada como se se contasse uma história. É facto que primeiro existe ''o mundo, raso/ um campo vazio de tojo seco'' e que depois ''alguém/ urbanizou o vazio''. Mas não se trata de um exercício de memória. Neste poema, a visão é dupla, e só assim pode actuar sobre o mundo que tem diante de si, com o qual se encontra. O que aqui temos, quando o eu do poema nos narra o seu ver, é uma espécie de fenomenologia, uma imaginação sensorial do próprio espaço. A visão dupla (que Fiama reclamara já no poema Do Amor IV, do mesmo livro), é a própria imaginação, que se desenha como uma forma de consciência. É assim que o eu consegue intuir o vazio sob a urbanização, o tojo sob as casas.
Por isso, o poema de Fiama apresenta-nos não menos do que uma verdade elementar sobre o espaço construído: cidade e casa, urbanismo e arquitectura. A acção humana de alguém que urbaniza o vazio opõe-se ao que existe inicialmente. O ''campo vazio de tojo seco'' é uma imagem do deserto. Esse deserto subsiste mesmo quando é preenchido por construção. Não só porque o eu é capaz ainda de o ver, de saber que ele continua ali sob as construções, mas também porque o próprio deserto é, de certa forma, um espaço sempre de ''dupla configuração''. Sabemos disso porque o poema não se faz nem pela memória nem pela linguagem, mas pelos cinco sentidos. Isto significa que é através do corpo do eu que a fusão do passado e do presente ocorre. Nesse sentido, sempre o vazio do deserto e a vastidão do vazio serão espaços privilegiados para a imaginação do mundo. No poema de Fiama, o espaço deserto é uma matriz inicial, uma promessa do mundo, ele contém já a urbanização que nele virá a erguer-se. Essa cidade já existe ali, mas é visível só pelo olhar sensorial e ilimitado da imaginação. Reciprocamente, a urbanização erguida não pode deixar de conter o ''mundo raso'' de onde nasceu.
A linguagem do poema é simples mas enigmática, os versos curtos são fluidos mas tensos. Essa tensão justifica-se nos últimos versos, em que o eu nos diz que assiste ao crescimento da urbanização ''ou a sós em silêncio/ ou narrando esse meu ver''. O poema está assim na tangente entre silêncio e fala. Ele depende de uma imaginação, de uma experiência total que só em parte pode ser resolvida pela linguagem. Daí o tom enigmático do discurso: a experiência é sensível, quase sensual, e só parte dela é transmissível por palavras. O não-escrito, que descobrimos ao ler o poema, pode ser uma forma de acesso ao resto do que foi experienciado. Talvez este poema só possa ser entendido se repetirmos por nós mesmos o movimento que lhe dá origem: se olharmos imaginosamente para o espaço da cidade e conseguirmos sentir o vazio iniciático, que não nos levará ao início do tempo, mas criará uma espécie de experiência simultânea dos tempos. Como a que acontece neste poema.
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*Fiama Hasse Pais Brandão. As Fábulas. ed. Quasi. Vila Nova de Famalicão, 2002. p.32