quarta-feira, 3 de junho de 2015

Notas sobre «Why bodies matter» de Judith Butler




Judith Butler é, sem dúvida, um dos nomes essenciais para o estudo do género desde a publicação do seu primeiro livro importante, «Gender Trouble», em 1990, que, sozinho, constitui praticamente a matriz da teoria queer.
Ontem, e no contexto do ciclo de conferências e actividades também chamado «Gender Trouble», Judith Butler deu uma conferência no Teatro Maria de Matos (Lisboa), com um título adaptado do do seu segundo livro, «Bodies that matter».
A conferência, intitulada «Why bodies matter», teve cerca de uma hora, e mostrou uma nova Judith Butler, se tivermos em conta os seus livros, mas particularmente o primeiro e mais influente.
Judith Butler é uma descendente directa do pós-estruturalismo francês. O seu primeiro livro é construído com base em leituras de Michel Foucault, de Jacques Derrida e de Jacques Lacan. É logo por aí que começam os problemas de Butler. A sua teoria, que conflui na ideia de uma 'performatividade de género', é alimentada essencialmente por pensadores cujo trabalho é deficiente, questionável e baseado em especulação linguística mais do que em factos ou no registo histórico. O pós-estruturalismo alimentou-se fortemente da linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, esquecendo que esse modelo já havia sido abandonado pelos próprios linguistas, que haviam avançado para novas teorias, a partir do trabalho do americano Noam Chomsky. Foucault como pensador político, Derrida como teórico literário e Lacan como analista dos problemas da mente legaram-nos obras extensas mas cuja solidez está hoje, com razão, largamente questionada. O problema central, herdado por Butler, é o seu excesso de confiança na linguagem, e mais ainda, numa ideia de linguagem hoje tida como pura e simplesmente errada. A obra de Foucault consiste em ideias decalcadas de Durkheim e Max Weber (dívidas muito raramente assumidas) e em radicalismos questionáveis contra o poder político. Derrida, com a sua desconstrução, criou um método para a destruição do discurso por contradição, cuja única saída é a aniquilação. Lacan, abandonado por praticamente pela psicanálise, exagerou largamente o papel da linguagem na formação da psicologia, um erro que já Freud havia cometido, mas de forma menos alargada.
Butler não escapa a estes problemas quando escreve «Gender trouble». Duas outras referências essenciais surgem também no livro, Freud e Lévi-Strauss, mas também eles lidos com pouca exactidão, de forma muitíssimo interpretativa e, não raras vezes, citados como se afirmassem exactamente o contrário daquilo que afirmavam.
A ideia essencial que origina a 'performatividade do género' é que não só o género é socialmente construído, como o próprio sexo é socialmente construído. Esta negação completa de qualquer presença da biologia na formação da identidade de género e da identidade sexual foi talvez o que mais polémico o livro de Butler afirmou. Freud certamente não pensava assim: pelo contrário, a sua ideia era a de que o homem civilizado existe sobre o homem-animal. E basta ler os primeiros dois capítulos de «As estruturas elementares do parentesco» de Lévi-Strauss para perceber que, para o antropológo, natureza e cultura constituem um diálogo, não uma substituição. A ideia de que o género é uma construção cultural não era nova, nem é infrequente. O que Butler teve de novo foi negar o próprio precedente natural do sexo, negando, por assim dizer, que o próprio corpo tenha algum tipo de interferência na constituição da identidade sexual e de género. 
A teoria teve grande impacto na academia, mas o seu contributo para a expansão do feminismo foi pouco significativa. Pelo contrário, Butler faz parte da geração que transformou o feminismo numa ideologia ostracizada por muitas mulheres, particularmente as mais jovens, um problema largamente analisado por Christina Hoff Sommers.

Na sua conferência, Butler pergunta-se se o seu trabalho terá de alguma forma mudado. Efectivamente mudou. O que mais impressionou na conferência de Butler foi como, vinte e cinco anos depois, uma hora de conferência parece ser mais relevante e mais intensa do que o díptico «Gender Trouble» - «Bodies that matter». 
A razão será simples. O discurso sobre o género pareceu, em vários momentos, ficar para segundo plano, enquanto Butler sentiu necessidade de se falar da situação das democracias ocidentais,da falta de reconhecimento político para muitos problemas, e de especificar esses problemas: não apenas ligados ao sexo e ao género, mas também ao trabalho, às condições de vida e aos direitos essenciais dos cidadãos.
Talvez a actual conjuntura política e económica tenha alimentado o pensamento de Butler com uma espécie de banho de realidade. E isso justifica, sem dúvida, o discurso de alguma forma alterado que a autora apresentou ao longo de uma hora.
Como as respostas às perguntas no final deixaram claro, as posições de Butler sobre sexo e género não se alteraram muito significativamente, mas é de notar que, de alguma fora, o seu discurso parece ter-se moderado ou, se preferirmos, ter-se tornado mais realista. Aliás, mesmo durante a própria conferência, Butler fez questão de se demarcar de algumas ideias que lhe estão associadas. De facto, a conferência é um bom sinal para Judith Butler, mas não necessariamente um bom sinal para a teoria que ela ajudou a criar, a teoria queer. Isto foi particularmente claro quando Butler insistiu que a sua teoria da 'performatividade de género' não visava criar nenhuma hierarquia, nem classificar nenhum tipo de 'género' como reaccionário, nem tornar uns mais válidos ou correctos em relação aos outros. Isto foi particularmente importante. Talvez não Butler, mas certamente muitos dos seus leitores e dos académicos que lhe seguiram as pisadas, souberam usar a teoria queer como forma de incitar a uma misandria pouco assumida, e a apresentar os modelos mais tradicionais de masculino e feminino como formas de conservadorismo e mesmo de opressão. Que Butler tenha sentido necessidade de se demarcar destas ideias é significativo.
Mas o que mais impressionou foi como, finalmente, Butler se apresentou livre daquela espécie de miopia do género, que tornou, durante muito tempo, o seu discurso irrealista. Comparativamente a «Gender Trouble», o livro, esta conferência pareceu inteligente, oportuna, assertiva, focada e efectivamente útil para pensar a realidade actual.
Já menos interessada em negar a biologia, Butler afirmou o género como uma construção é certo, mas uma construção baseada em relações, enfatizando como essas relações podem ser usadas, e de que forma, nalguns países do mundo, são proibidas. Ao fazê-lo, Butler teceu um discurso lúcido e acertado sobre a política actual, e conseguiu afastar-se da paranóia foucaultiana (que apesar de tudo teve lugar no final, aquando das perguntas). E talvez fosse desse mesmo confronto com a realidade que a teoria de Butler carecia. No fundo, o que a autora fez, dando um verdadeiro passo em frente no seu próprio pensamento, foi apresentar o género não como algo que nos define (como pretendia Foucault), mas como algo que nos caracteriza, de todo um conjunto de outras caracterizações. 
É de notar que a teoria de Butler continua a não saber alimentar-se sempre das melhores fontes. A sua análise das democracias continua um tanto marcada pelos excessos pós-estruturalistas, e Butler continua convencida de que há uma espécie de perversão do poder que justifica a falta de visibilidade das minorias. Conquanto este ponto de vista possa ser defensável, é igualmente verdade que sabemos, pelo menos desde Durkheim e de todos os antropólogos e sociólogos da escola funcionalista, que as próprias sociedades são organismos essencialmente conservadores, e que fazem, colectivamente, um esforço por se reproduzirem iguais a si mesmas no tempo.
Ao introduzir, discretamente, alguns conceitos marxistas no seu discurso, no entanto, Butler demonstrou que a alteração à estrutura social é, de facto, possível, mas que marca um esforço tanto dos indivíduos como das próprias instituições, algo que pareceria impossível quando se lia «Gender trouble».
De facto, o género e a sexualidade não são as únicas categorias a partir das quais um indivíduo pode ser 'marginalizado'. Nesse sentido, a integração destas questões num conjunto mais alargado era um dos elementos que faltava a Butler, e também a forma que, na conferência, a autora encontrou para chegar ao cerne da questão: o problema da liberdade e da individualidade no seio das nossas sociedades de contrato.
É verdade que muitas das leituras do próprio corpo que Butler apresentou careceram de explicações mais profundas (um problema recorrente na sua escrita, como Martha Nussbaum já assinalou), mas, no geral, entendendo o corpo como matéria que só é válida socialmente quando em relação com os outros, Butler mostrou-se muitíssimo mais realista e informada do que nas ideias um tanto vagas que marcaram os seus primeiros livros.
É de assinalar que, além do género, Butler tem tido extensiva participação na discussão de assuntos políticos, e particularmente na política israelita. Sendo judia, mas não sionista, Butler tem tido uma intervenção racional, ponderada e organizada sobre as políticas de Israel. Esta conferência marca, no fundo, uma fusão mais perfeita entre a comentadora política e a estudiosa do género. O que faltava numa teoria como a de Butler era menos especulação sobre 'performatividades' que, no fundo, se esgotavam no seu próprio carácter pouco operante, e compreender o género no contexto dos grandes problemas da democracia e da afirmação individual.
O problema de Judith Butler será sempre a crença de que, a partir da linguagem, é possível compreender tudo. A experiência, no entanto, não está limitada à linguagem, nem o próprio pensamento está limitado à linguagem como pretendia Saussure. A conferência de ontem, discretamente, mostrou uma Judith Butler que olha, finalmente, para lá da linguagem. Ouvi-la falar de matéria, de corpo e de relações políticas, entendendo-as como categorias sociológicas e como manifestações culturais (e não só como entidades discursivas) tornou o seu discurso numa versão melhorada da sua teoria. Porque, nisso ao menos, Butler esteve sempre certa: o espectro daquilo que consideramos 'válido' precisava de ser alargado. Mas não será todos os dias que temos a oportunidade de ver um pensador reavaliar a sua própria teoria e, de certa forma, recomeçar essa teoria. A conferência de ontem foi, em certo sentido, exactamente isso.
É possível que a crítica alargada que se elaborado sobre o pós-estruturalismo nos últimos anos esteja finalmente a afirmar-se. Em Portugal, esse não é certamente o caso, mas vai acontecendo noutros países, e certamente nos Estados Unidos, de onde Judith Butler vem. Será possível que a própria autora tenha percebido as limitações do método que, inicialmente, a orientou? «Why bodies matter» dá algumas indicações claras de que esse é o caso, felizmente.

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