quinta-feira, 19 de novembro de 2009

um poema




Quando alguém se senta numa mesa riscada por golpes, mossas deixadas por terrinas de esmalte, o azul desvincado como a tinta de certos túmulos se torna com os séculos indivisa, deve ter a certeza que a memória espreita disposta a sacrificá-lo no cadinho onde tudo se desvenda.
Para alguém que se senta assim, entregue à confusa geometria que rastejou a mesa de antigos embates do vidro grosso violentamente empurrado para fora, da travessa puxada muito cedo em direcção à fome, a morte pode tomar a forma de um agitado peixe que pede mais e mais que o alimentem. E quem se decide a ficar sentado frente a tantos riscos, *as marcas sobradas doutros gestos, quem se decide a isso, vai com certeza tentar a memória. Sobre as quatro montanhas, o candidato verá sete cidades que hão-de parecer-lhe, primeiro, fortificadas; cercam-nas altas paliçadas que lembram as muralhas de bambu com que os vátuas pensaram defender as suas casas de argila amassada com bosta. Ao dirigir-se armado naquela direcção, e se conservar vestígios da longínqua aliança que outrora se guardava em arcas que duas filas de seres alados, os anjos, sustentavam encolhidos como morcegos (alguns viravam a cara com ar dissimulado, mas dois olhavam ferozmente quem ameaçasse distender-lhes as asas), verá então que mais sete cidades as têm penetradas como se as muralhas repetissem as células, usando para isso de um ordenado processo cancerígeno.
E, se não desistir, verá que se lhe entregam, pois as cidadades da lembrança estão indefesas e só esperam o nosso ataque para se submeterem, prontas a todas as rapinas.






Fátima Maldonado
Cidades Indefesas
1980- centelha
imagem: Hundertwasser

1 comentário:

Graça Martins disse...

um poema muito bom e essencialmente cerebral.
A imagem bela e inquietante de Hundertwasser. As cidades linfáticas e fragmentadas.