Esta
entrevista foi feita num café à Avenida João XXI, num domingo nem
muito cinzento nem muito luminoso, na zona de fumadores, junto às
vidraças de onde se vêem os edifícios Português Suave muito
característicos daquela zona. Eduarda Chiote mexe as mãos sobre a
mesa, explica-se melhor assim. Os olhos atentos, sérios e generosos,
serenos. Fala pausadamente, e um pouco baixo, apesar do barulho dos
talheres e dos pratos que vem do balcão, e do ruído das conversas
das mesas à volta, onde almoços são servidos a todas as horas da
tarde. Faz sentido que assim seja. Na poesia de Eduarda Chiote, o
mundo nunca deixa de existir em volta da voz que tenta dar-lhe, ou
mudar-lhe, o sentido. É assim desde o primeiro livro, «Esquemas»,
publicado em 1975, até ao mais recente, «Órgãos epistolares»,
saído há dois anos. É assim desde o primeiro livro, mas de formas
diferentes. A poesia de Eduarda Chiote convoca – na linguagem e não
só – os ecos de uma série de domínios literários e
extra-literários, muito extra-literários, e as fascinações pela
mente humana e pelo enigma indecifrável – ou comicamente
indecifrável – do mundo ocupam o lugar central. É assim – mas,
repita-se, de diferentes maneiras – em livros mais directamente
emotivos como «Refúgio em vez de câmara mortuária» (1979), «Estilhaços» (1979), «Travelling» (1983), «Não me morras» (2000) ou «A celebração do pó» (2002), mas também noutros
mais analíticos como «Altas voam pombas» (1938), «A preços de
ocasião» (1987) ou nos contos de «A décima terceira ilha» (1983) e «Não é preciso gritar» (2008). No centro de uma obra
complexa e, a alguns títulos, irregular, encontramos uma espécie de
tríptico magnífico, informalmente formado por «Branca Morte» (1994), «O meu lugar à mesa» (2006) e «Órgãos epistolares» (2012). O conjunto de poemas mais recente, publicado nas páginas da
revista DiVersos, «Fiat Lux», parece dar continuidade a este
tríptico. E é um pretexto tão bom quando outro qualquer para
conversar com Eduarda Chiote, sobre os seus livros, e sobre a vida e
os outros livros, que estão em volta desses (seus) livros.
Entrevista:
João Cunha Borges. Fotografias:
Rui Fernandes e Patrícia Almeida.
Gostaria
que começássemos numa frase da Eduarda, que me parece funcionar bem
como uma introdução a uma conversa sobre a sua obra: «Devo toda a
clareza e tudo o que escrevo à escrita/ dos outros».
Quando
eu digo que devo tudo à escrita dos outros, digo que nasci com graça
de atenção. De estar atenta às perguntas dos outros e que os
outros me transmitem. É uma graça! Podia ter nascido com outra, mas
é esta que tenho. E portanto não é só aquela expressão gráfica
que eu posso ler nos livros, é aquilo que eles me transmitem, na
maneira de ser, nos comportamentos, nas atitudes, etc. Não quero ser
redutora ao ler os livros dos outros. Porque os livros dos outros são
meus, não é? A partir do momento em que a pessoa os publica,
deixaram de ser dela, são dos outros... No fundo, o que eu quero
dizer é: estar atenta ao outro, estar atenta ao universo do outro, é
estar atenta à maneira como ele se inscreve em mim. Depois a partir
daí, eu vou elaborando todo um conjunto de pensamentos, de
reflexões, de sensações que me servem para eu chegar a
determinadas conclusões. E vocês perguntam-me pelo patamar da
escrita, onde as coisas ficam registadas – que não é só
literária, é científica, é psicológica, é emocional, tem muitas
vertentes. Nesse aspecto, eu fico é atenta às sobreposições da
escrita... Se uma escrita é lindíssima, duma panorâmica enorme, e
um outro vem dizer-me: “Olha, deste aqui um erro!” Isto pode ser
um erro ortográfico, pode ser um erro científico, como por exemplo
Einstein, que viu muito bem que errou, e depois nasce a quântica.
Estou também atenta ao erro! O que eu acho, no fundo, é que eu
estou atenta.
Tão atenta ao outro que eu entendo que posso errar, que a minha
identidade se perdeu e depois disto pode sair alguma coisa para ela
se materializar, para não se dissolver. Nestes campos todos –
possivelmente não há só o campo da física, há outros campos
também, o campo da imaginação, da sensação – eu vou-me agarrar
se calhar a uma coisa que eu não tenho, por exemplo, a identidade.
Se calhar eu não tenho isso, não sei se as pessoas têm. Tenho um
comportamento: é a Eduarda, e tenho uma figura: é a Eduarda. Mas
esta minha figura pode-se alterar e não deixo de ser a Eduarda,
posso ter outro comportamento, ser outra. E então para ter um
registo, uma ressalva muito forte que me permita construir um eu, eu
vou escrevendo, vou fazendo umas letrinhas. Neste aspecto, a escrita
dos outros é um bocadinho mais global, um pouco mais amplificante.
Não tem que ser um livro, às vezes é uma conversa, é um registo,
por exemplo: tu falas-me de arquitectura, e hoje estive a ver umas
coisas que até não têm muito que ver com isso, mas com um registo
arquitectónico das grandes civilizações, Mesopotâmia, etc,
aquelas construções fabulosas feitas 12000 anos antes de Cristo...
aquilo é uma escrita e quando eu quero ler, como não sou de
arquitectura, vou a quem é, e digo: Olha,
podes-me explicar?
Eu não tenho preparação para isso. Tenho se calhar um excesso de
informação caótica que não me permite uma síntese razoável,
portanto tiro o que posso da leitura, com o registo de algumas
perguntas. Nesse sentido eu digo que é algo distinto do livro em si,
aquilo que o livro vai dizer. Nessa frase... eu referia-me à poesia
dos outros não era?
Parece-me
que sim...
Então
menti... sem querer... Porque eu não conheço muita poesia dos
outros, conheço alguma, mas... quer dizer, isso da poesia eu também
não sei o que é. Porque a poesia dos outros... a “Ilíada” e a
“Odisseia” são grandes poemas. Lucrécio escreveu grandes
poemas. Mas o que é? Às vezes não encontro a poesia, porque a
poesia é o que me desperta a sensibilidade, o interesse, a
curiosidade, a evasão de um proto-quotidiano em que a gente se move
para sobreviver. É o que me distingue de uma situação prosaica. Ao
passo que a prosa me traz para esta vida cujos limites são bastante
concretos e aprisonados dentro de todos os seus dramas, a poesia
salva-me. Mas a poesia em tudo, não é só na literatura! A poesia
está numa equação, numa linha, num olhar. Está numa maneira de
ser, está numa atitude expectante da parte daquele que recebe uma
palavra no meio de uma situação. É muito complicado, nós temos de
compreender, e por isso fazemos divisões, mas no fundo se calhar não
é bem assim e está tudo muito ligado.
Penso
que de certa forma a Eduarda já começou a falar disso, mas
parece-me interessante falar da sua formação, que vai das
histórico-filosóficas à psicologia. E publica o primeiro livro, os
«Esquemas» apenas em 1975. Esta formação e a experiência
intelectual que ela tenha proporcionado, têm uma influência muito
forte logo neste primeiro livro.
Influenciou
porque... eu acho uma coisa: nós somos ocidentais, e portanto temos
a noção de que à filosofia pertencem as grandes questões. Quem
sou? Para onde vou? Por que estou aqui?...
são perguntas que vêem mais tarde, porque há a noção, na
juventude, de que somos eternos. E parece que essas questões
pertencem à filosofia. Mas não pertencem, não. Isso é convenção
muito mecanizada. Pertencem a tudo! Pertencem à física, pertencem à
matemática... Nós estamos sempre a colocar essas questões, muitas
vezes sem entrar no domínio da filosofia que se apoderou delas, e
muito bem até, para poder fazer viver os filósofos que eu acho que
são precisos ainda hoje. Mas essas questões também pertencem à
física, à psicologia, à antropologia, pertencem a tudo. Eu acho
que a filosofia só serve para dizer que nós não temos respostas. É
uma forma de construir um sistema, de constituir um motivo de alarme
contínuo: Por que
é que eu sei tão pouco?
Mas há um problema: toda a preparação filosófica que, mal ou bem,
está cá, e que se interliga com a física, serve para chamar a
atenção para todos os outros processos. Eu chamo à física “a
arte de ser ociosamente”, a filosofia é “a arte de ser
ociosamente curioso”: nós não resolvemos nada, mas temos a
capacidade de raciocinar, que não faz mal ninguém, pode não fazer
bem, mas não faz mal. E esse conteúdo filosófico, eu acho que
modesto, muito modesto, serve-me como plataforma de admiração pelo
deslumbramento daquilo que é a mente, daquilo que a mente consegue,
daquilo que a mente não alcança. Para mim, a filosofia é a
situação do filósofo angustiado por não conseguir uma resposta.
Precisamente nos «Esquemas», são frequentes as interpelações,
mais directas ou menos, a figuras como Pitágoras, Sigmund Freud,
Claude Lévi-Strauss e Jacques Lacan, entre muitos outros. A escrita
da Eduarda alimenta-se de facto da antropologia, da psicologia, da
filosofia e do cinema, eventualmente mais do que da poesia...
É
o seguinte... eu estava a trabalhar numa coisa muito concreta, que
era na psicotecnia, encaminhar as pessoas, enfim, para as profissões
que lhe eram mais adequadas. Isso leva muito tempo, eu não tinha
tempo para mim, para dispor de mim. Tinha que trabalhar e depois
quando chegava a casa a leitura era a minha preocupação. Mas a
minha preparação, se queres dizer assim, não era, nem é, na
poesia. Eu interessava-me muito mais pelo campo das ciências, da
matemática, por antropologia, por genética, pelas neurociências.
Ora, quem se interessa por tudo, nada sabe. O que quer dizer que eu
sou efectivamente um filósofo por natureza. Porque a filosofia é o
constatar que não se sabe nada de nada. Só
sei que nada sei
- isto é central. Mas esta curiosidade por outras coisas que não a
literatura e que às vezes irritava muito – e irrita – as pessoas
que só entendem de literatura, vem de eu ter despertado para aquilo
que se chama literatura muito tarde. Eu queria escrever. Eu queria
escrever... mas não sabia o que era. Queria dar corpo àquilo, mas
não sabia muito bem o que era. Eu pensava assim: Um
dia, quando sair daqui, deste trabalho que agora estou a fazer, ou
vou ter filhos, ou vou escrever.
Mas depois de descobrir uma certa inépcia para a maternidade,
resolvi encaminhar-me para outro lado. E digo-te: eu conhecia muito
pouco de literatura, conhecia aquelas coisas que as pessoas conhecem,
que tem quem vem de qualquer casa burguesa. Então não era do campo
da literatura. E se calhar ainda não sou, embora esteja sempre a
ler. Mas o que é que eu considero literatura? Aí é que está:
tudo. Tudo, porque para mim é tudo uma ficção sobre uma ficção
sobre uma ficção. Hoje, sou uma grande leitora de física quântica,
o que quer dizer que não sei física nem quântica, não percebo
nada disso. E eu posso estar a ler um livro, e não é literatura.
Mas eu estou noutro campo, estou a fazer
literatura. Há uma teoria, pode ser de física por exemplo,
imediatamente o misticismo se apodera dela, imediatamente outra
teoria se articula. O que se está a fazer é literatura, porque
aquilo não tem nada a ver, são sistemas de equações de física, e
todo o mundo constrói literatura em volta daquilo, uma ficção. Eu
pergunto-vos: há alguma coisa que não seja ficção? O que é que
nós estamos a fazer? Temos um livro, temos ideias, temos
curiosidade. E é preciso um cânone: mas não tanto! É importante
convocar o cânone certo, mas não tanto, porque às vezes provoca um
certo enquilosamento. Pronto, às vezes temos que dizer: Isto
é um coelho, isto é uma galinha, isto é arquitectura, isto não é
pintura, isto não é literatura.
Mas, na verdade, nos tempos de hoje, já não é necessariamente
assim. Portanto, quando eu leio, e quando eu escrevo assim, não é
uma escrita burra,
como eu me atrevo a dizer. Eu li há muito pouco o “Mein Kampf”
do Hitler e achei aquilo uma borrada...
o tipo escreve mal que se farta, aquilo não é nada, aquilo é
piroso! Mas quando algo é escrito com cuidado, com atenção, com
delicadeza... então são peças de literatura... quando um grande
ensaio sobre seja lá o que for, me aparece escrito com grande
sensibilidade, não é literatura? Então é o quê? Vamos chamar
literatura a quê? Fazer rimas? Fazer uma cantiga de amor? No século
XXI? Não sei...
É curioso falar nessas distinções, porque, se nos «Esquemas»
já havia uma preocupação com uma coerência entre os poemas, isso
torna-se mais manifesto a partir dos «Estilhaços». Essa coerência
forma uma espécie de narrativa. Até que ponto é importante esta
narrativa?
Sou
muito analítica... infelizmente... embora eu não saiba muito bem o
que significam estas palavras. Eu sempre disse que uso mal as
palavras, que mal há nisso? Eu sou muito analítica, e às vezes o
facto de ser tão analítica obriga-me a uma síntese sólida, que
oriente o pensamento para ele não ser tão discursivo, para ele ter
algum sentido para mim.
Ainda
em 1979, publicou uma plaquette
chamada «Refúgio em vez de câmara mortuária», uma pequena
sequência de poemas...
Esse
livro vem de um período de... toda a gente tem uma vida de perdas
emocionais, de colapsos, de coisas terríveis. E esse livro tem aliás
um título, «Refúgio em vez de câmara mortuária», que é muito
bonito. Não é meu, veio de uma frase que me disse o Arnaldo
Saraiva, nessa altura em que houve um grande colapso na minha vida,
um terramoto, um sismo, em que eu pensei Já
morri!...
Toda a gente morre muitas vezes. [Pergunta a P.A.] Acreditas na
reencarnação? Eu também! Naquela altura pensei Já
morri! Já não há nada!
Estava absolutamente, como se diz, na
merda.
Então escrevi ao Arnaldo Saraiva que estava, salvo erro, na
Califórnia. E o Arnaldo Saraiva, meu amigo, que é uma amizade
daquelas que nunca passa, escreveu-me isto: “Olha mulher!” ele
gosta muito da palavra mu-lher,
e é isso que eu sou, mu-lher,
e gosto muito da palavra mulher... “Olha mulher! Refúgio em vez de
câmara mortuária!” E aquilo ficou-me na cabeça. E surgiu toda
aquela nossa problemática da infância, associada à morte. Então
tive necessidade de rever toda uma infância, e aí veio toda uma
série de lutos, de figuras mitológicas, o Ajax, Telémaco... e
escrevi esse livro, que começa, salvo o erro com “Acreditas na
teoria do movimento imóvel?” No fundo, um vezes um é igual a um,
tudo se repete, debaixo destas coisas cíclicas, destas coisas que se
repetem, há qualquer coisa que permanece, seja da angústia, do
amor, da morte...
Sim, nesse livro a Eduarda fala da “teoria do movimento imóvel”
e no «Travelling» de “um poeta afogado num charco”, uma ideia
que reaparece em «A Décima Terceira Ilha», e ambas em «Branca
Morte». É outra ideia de que gostava que falasse...
Pois,
tudo isso vem de uma criança que diz “Mãe, a tua linguagem
mata-me!”... Aquilo que eu quero dizer é que o desencontro entre o
afecto filial e maternal às vezes é tão forte que leva o filho a
chorar de outra maneira. Não és tu que me está a fazer mal, é o
que nos afasta nos parâmetros em que nos movemos, as diferenças, as
diferenças linguísticas, as outras. É uma situação em que
sentimos que não podemos corresponder inteiramente à expectativa do
outro, não podemos fornecer, não podemos dar. E não há culpa. Não
há culpados, há feridos. Somos todos feridos. E quando uma criança
diz “Mãe, a tua linguagem mata-me!”, trata-se de uma pessoa que
sofre, que não se consegue integrar, e nessa altura morre com isso,
eu morro com isso.
Eu não tenho linguagem para dar ao outro para o outro me perceber.
Não consigo, não sou o outro.
Em
1983, publicou um livro de contos, «A décima terceira ilha», que
me parece muito próximo das prosas poéticas que encontrávamos em
«Esquemas» e «Altas voam pombas». Para si, este livro de contos
responde a uma necessidade de escrever ficção, ou resolve uma
necessidade de experimentar o poema em prosa que não é muito
recorrente no resto da sua obra?
Eu
nem me lembro muito bem desse livro. Eu acho que quando escrevo em
prosa, uso a metodologia da poesia, uma linguagem sincopada...
daquilo que é a minha poesia, não é poesia. Não
é poesia,
bem se afasta da poesia! Eu penso que eu não sou poeta, penso que
tenho um estilo de escrita. Um estilo. Que se volta contra mim porque
não me agrada ter aquele estilo, queria ter um estilo mais solto,
menos... lúcido eu não gosto de dizer, mas... mas sou lúcida
porque só quem percebe que de vez em quando enlouquece é que
conhece surtos de lucidez, porque as pessoas que são loucas já não
sabem. E eu tenho surtos de lucidez que me dizem que estive louca até
aqui. É um surto de lucidez, e só é possível a quem,
intermitentemente, tem momentos assim. E por vezes não consigo fazer
estruturas tão pequeninas, sobretudo quando estou muito empenhada
em... em perceber as pessoas, então preciso de uma dilatação, algo
maior, e por isso escrevo uma coisa que... é um texto... não se é
um conto, é um texto.
Mas
que é mais fácil classificar como ficção, não para si
eventualmente, mas para o editor, por exemplo.
O
editor... fixou como ficção. Eu não sei se é. Não sei.
Ana
Hatherly disse, sobre esse livro, que “é um texto violento porque
nele a vida pouco colhe do sonho”.
É esta a violência da vida? A sua distância ao sonho?
[Pausa]
Eu não sei o que é sonhar... Eu sei o que é viver e sobreviver.
Viver e sobreviver. Mas sonhar não sei, percebes? O que é sonhar um
mundo melhor? Quando eu vejo... de que é feito um insecto, o cérebro
de um insecto, a orientação de um insecto, o olfacto de um cão, o
facto de haver um buraco para se enfiar uma toupeira na construção
do mundo, eu posso imaginar um mundo melhor? Posso imaginar um mundo
diferente, com outros modais, aquelas coisas que são da sociologia e
da política, uma melhor distribuição de riqueza e tudo mais... mas
eu posso imaginar um mundo melhor? Não... Eu não sei sonhar, não
posso, eu não sei fazer isso.
Depois
de, em 1987, editar «A preços de ocasião», não voltou a publicar
até 1994. Este hiato teve alguma relação com a escrita poética,
ou foi um acaso? Parece-me importante referir estes sete anos sem
publicar, porque quando aparece «Branca Morte», aquilo que vimos a
encontrar é diferente dos primeiros livros...
Olha,
quem me dera perceber a que pertencem esses anos! Eu tenho agora um
livro que me levou dois ou três anos a escrever, em que me empenhei
mesmo fortemente, como raras vezes, completei-o, entreguei ao editor
e subitamente o meu interesse passou. Sim, é como uma paixão,
passou, acabou. Mas porquê? Eu não posso perceber. Nos intervalos,
eu continuo a ler. Sempre! Sou uma leitora compulsiva, muito
compulsiva. Sou muito atenta à escrita dos outros, ainda que não
possa ler todos, porque é preciso muito tempo. Eu não sei o porquê
desses anos. Mas também tenho tendência a esquecer o que é mau na
minha vida. Não por uma questão de histerismo, mas como defesa. Se
calhar aconteceram-me coisas que me magoaram tanto que eu não tenho
memória delas. Não sei, não vale a pena estar a dizer que se
passou isto aquilo. Passou-se alguma coisa, e eu nem dei por ela. Mas
a vida também passou por mim e eu também não dei por ela. Sabes
uma coisa? Eu respondo melhor: porque fui irresponsável!
Mas irresponsável em que sentido? Continuava a escrever e não
se preocupava em publicar? Não se preocupou em escrever?
Eu
nunca me preocupei em publicar. Quase sempre as pessoas pediam-me.
Tive sorte, não é? Sorte, sorte, sorte! Foi o que foi. Só comecei
a preocupar-me em publicar quando publiquei o «Não é preciso
gritar». Até aí, de vez em quando, lá aparecia um amigo, Ó
Eduarda, tem um poema que nos envie?
Tive sorte. E agradeço. Porque há pessoas que querem publicar, que
têm esse desejo e que merecem, e não têm a mesma sorte. Ah! Não
te esqueças de dizer: eu não dou muita importância ao quotidiano
das pessoas, mas há uma coisa: tenho muito respeito pelas pessoas
que trabalham sinceramente, que acreditam no que estão a fazer, isso
é muito bonito! E eu gosto! Não quer dizer que goste das pessoas,
do comportamento das pessoas: não é isso. Gosto daquela
excrescência que têm quando fazem essas coisas, gosto do que elas
conseguem quando se superam! Quando se superam: não são
super-homens, vão além do que podem. Saltam a palhinha! Havia um
indivíduo em Trás-os-Montes, que não conseguia andar. Então,
punham-lhe uma palhinha, uma coisa pequenina, no chão, e diziam,
Salta a palhinha!
E ele não podia, não conseguia mexer as pernas. Mas é possível
saltar a palhinha. Isto é verdade.
E
voltar a publicar, foi esse “saltar a palhinha”? É que eu acho
que no livro de 1994, a «Branca Morte», a poesia da Eduarda chega a
uma estabilidade mais definitiva...
Eu
acho que até aí estive a aquecer. A partir daí, eu resolvi entrar
mesmo nesta coisa da literatura. Comecei a ler muita poesia, a
apercerber-me que havia coisas brilhantes! Eu sempre pensei que
escrevia umas coisinhas. Se bem que não há coisa, parece-me a mim,
que seja absolutamente só
coisa, não
há. Escrevia
umas coisinhas, mas não ia mais além. Para escrever, para eu poder
escrever – não são as
pessoas,
sou eu – eu necessito de saber efectivamente o que é a vida nos
seus abismos, nos seus limites. Eu preciso de sofrer, eu preciso de
ter a consciência nítida das perdas. Eu preciso de entender o valor
das coisas, a essencialidade das coisas. Até aí, eu não sabia, eu
vivia. E a determinada altura já não se tratava de viver só,
tratava-se de querer viver para poder bem morrer. E era o que eu
queria, era aprender a morrer. Aprender a viver, a gente dá um
jeitinho e a vida ou lá o que é, empurra. Mas aprender a morrer é
mais complicado, exige uma grande lucidez, exige uma grande postura,
uma grande consideração pelo outro. E às vezes, se possível,
alguma sinceridade. E às vezes, se possível, alguma – pouca, mas
alguma – honestidade. E eu disse, Até
aqui, estive a aquecer. Agora vou dar o salto!
Penso
que era a Marguerite Duras que dizia que primeiro se tenta escrever e
depois começa-se a escrever...
Acho
que sim. É
qualquer coisa que me aconteceu. Nessa altura, eu disse: Isto
tem que dar uma grande volta!
E eu tive essa consciência nítida, pela primeira vez, de que para
escrever é preciso estar seguro, muito seguro. Não é fazer umas
coisinhas, não, é outra coisa. É um confronto connosco, de onde
não se sai vitorioso, mas sai-se satisfeito. Sai-se sereno. E eu
disse: A partir de
agora, eu comecei a escrever.
Eu tinha estado a aquecer, a tabuada não se aprende toda de uma vez,
nem a geografia... Andei a aquecer, e depois quando dei por mim
estava a correr. E quando eu escrevi a «Branca Morte», eu sabia que
o livro era bom. Pela primeira vez, eu disse: Isto
é poesia, isto que eu fiz agora, é poesia.
As outras coisas todas, experiências, cantigas de amor, são coisas
que lemos atrás, nas tradições. Mas este livro só podia ter sido
escrito por mim. Numa altura de uma grande maturidade e de uma grande
irreversibilidade. Já não podia voltar para trás. Mesmo que eu
quisesse! Eu estava definitivamente comprometida com aquilo a que
podemos chamar literatura.
Nesse
livro fixam-se, realmente com segurança, as relações mais
problemáticas ou menos entre a infância, a sexualidade e a morte. E
há uma frase que me parece central neste livro: “Faço da infância
vocação”.
O que é que na poesia da Eduarda muda quando faz da infância
vocação?
O
António Bracinha Vieira escreveu um livro fabuloso em que diz que só
se é filósofo em criança. Depois, ou se perde a inocência ou se
perdem os porquês... Eu acho que a infância é um sinal de
frescura. É uma coisa irrepetível, depois há uma efervescência, é
um sinal da maturidade – eu não sei o que é isso – mas dizemos,
porque é assim. A infância é um reduto que não sabemos bem o que
é. Não é aquela coisa de onde
nasceu, onde morou...
É uma coisa quase de Adão e Eva. É uma pureza de sentidos, ainda
nada foi conspurcado, ainda não apareceu quem dissesse Come
a maçã!
Curiosamente, isso vai desaparecendo em nós. A gente faz qualquer
coisa, que até nem é por mal, e dizem-nos Já
não és nenhuma criança!
E o que é que fazemos? Remetemos a criança para dentro de nós. E
ela fica lá. Escondida, assustada. E eu fui buscá-la. Fui buscar
essa criança muito escondida, muito assustada e trouxe-a.
Mas
ao mesmo tempo, a criança na poesia da Eduarda não é a mais comum,
de esperança ou inocência. Está mais próxima daquela concebida
por Freud, o “perverso polimorfo”. É uma espécie de consciência
inconsciente, antes de ser moldada ou reprimida pelo espírito
civilizacional, que a Eduarda quisesse não civilizar, mas
verbalizar.
É
verbalizar. Nunca seria para civilizar. Acredito que só se é livre
quando se é absolutamente irresponsável. Quando se vem com a
responsabilidade, quando vem tudo sobre nós, ficamos em pânico!
Porque fizémos tanto mal sem saber. Para mim as crianças são
inocentemente maldosas, pronto. Irresponsáveis mesmo. São coisas
terríveis...
E
portanto, são livres...
São,
então não são? Tu é que as repreendes, tu é que lhes bates na
mão, tu é que fazes amputações terríveis. Mas elas são livres,
nasceram para isso. Nós nascemos para ser livres, o resto são
socializações. Senão que sentido tinha isto? Era uma maçada...
O
tema da morte reaparece intensamente nos livros seguintes, e eu
destacaria talvez «Não me morras» e principalmente «O meu lugar à
mesa». O que me parece curioso nestes livros é que, que
referindo-se à morte, parecem ser esforços por encontrar uma
espécie de salvação pelo pensamento e pela ética. É possível
falar de razão e de ética quando se lida com a morte?
Claro
que é. Claro que é. Quando eu te disse há pouco que estava pouco
interessada em aprender a viver porque a vida dava um empurrãozinho
e nós íamos atrás, e quando te disse que aprender a morrer me
interessava, a ética está aí, completamente. Eu aprendo a morrer.
Porque, para mim a vida não tem sentido nela mesma. É uma coisa
aleatória, é uma coisa que acontece. E o sentido, eu tenho que o
dar. Sou eu que decido. Não posso decidir da dor, porque se não
tiver dor, estou sempre anestesiada. Não posso decidir da
consciência, porque não sou sujeita a uma anestesia contínua,
porque a anestesia corta a consciência. Mas, se calhar, sou senhora
da minha convicção de como quero morrer. E eu quero morrer como
entendo que eticamente devo ser. É isso... para mim a morte é uma
coisa fundamental. Fundamental. Porque tu podes dizer que as
incertezas são probabilidades que não se podem reconhecer. Se
calhar!
Mas há uma constatação que é uma evidência: é a mortalidade.
Somos seres mortais. Até os universos morrem, o sol morre – está
velhíssimo – as estrelas morrem... há o colapso da morte até
numa partícula! Eu tenho este espaço e eu só posso decidir como
quero viver se eu entender como quero morrer. Para isso temos que
despir-nos: confrontarmo-nos com as convicções, com os
preconceitos, com os medos. É mais fácil às vezes agarrarmo-nos a
uma certeza qualquer, um termo, e viver tranquilo. Mas quando uma
pessoa decide perder todos os medos, atinge a solidão, sabes? E
então confronta-se. Confronta-se com o sentido da vida. E ela
própria tem que dar o sentido. Esse sentido pode ser imposto, eu não
posso exercê-lo livremente, mas dentro de mim, eu posso ter um
sentido. A morte, para mim, é de uma seriedade absoluta.
Mas
«O meu lugar à mesa» começa com a morte de um amigo: “Não
encontrei – e não há solidão maior! - com quem chorar/ A morte
de um amigo”.
A Eduarda falou de uma aprendizagem da morte própria, a que queria
que voltássemos mais tarde, mas aqui é outra situação...
Sem
teorizar, sem teorizar: eu vivo numa cultura. Quando eu penso que
estou a dizer qualquer coisa que me pertence, não pertence, não, eu
sei que não. Também, se nada me pertencesse eu era louca, mas não
sou, total não sou. Tenho momentos de loucura, mas total não sou.
Vivo numa cultura, e essa cultura ensinou-me a dor da perda, a dor da
morte, ensinou-me o luto. Noutras culturas festeja-se, é diferente.
Mas eu tenho esta cultura. E é uma cultura que eu experimentei. A
perda, o luto, a morte... e eu acho que a perda é o sinal positivo
do amor. Não é negativo: a perda é o sinal positivo
do amor. Se calhar, isto pode parecer-te um paradoxo, mas tu
entendes. A pessoa que tem um amor, e que nunca se sente aterrada por
perder qualquer coisa, ela não ama! Ela não ama, vive num estado
que eu não sei definir. Não é bem um estado massificado, mas não
é amor. O amor é um sentimento que se constrói com muitas coisas,
e uma delas é a perda. E eu acredito muito pouco nos sentimentos,
porque acredito muito neles. E um sentimento autêntico é para mim
uma corda ao pescoço, porque eu era capaz de dar a vida. Eu gosto de
pessoas que têm sentimentos autênticos, há nelas uma tensão
verdadeira, como se isso fosse uma espécie de transcendência. A dor
é um sintoma benéfico. Sem masoquismo. Mas é um sintoma benéfico,
uma coisa extraordinariamente positiva.
Sem
masoquismo, mas com crueldade...
Sem
masoquismo! Mas, o que é crueldade? A crueldade é uma manifestação
extrema de dor. Quando dizemos Aquela
pessoa é cruel!,
falando de coisas que fazem, coisas reactivas... às vezes não é
bem assim... não é bem crueldade.
Digo
isto, no sentido em que é um livro feito de rememorações e de
imaginações sobre alguém que desapareceu, coisas violentíssimas
que se abatem sobre o eu...
Crueza.
Acho que é mais crueza. É um livro muito cru. Vai até ao osso. A
«Branca Morte» também ia. Mas... crueza e crueldade são gémeos.
São gémeos, nunca andam muito longe. E é uma faceta da paixão, a
crueldade.
E
o tema da crueldade é muito importante no livro que a Eduarda
publicou em 2008, «Não é preciso gritar», que é um regresso à
ficção. Mas é quase estranho falar de regresso, porque são contos
tão diferentes dos d'«A décima terceira ilha»... Como é que
mudou a relação da Eduarda com a ficção entre estes dois livros?
Olha,
eu acho que esse livro é muito bom! Tem uns erros terríveis que eu
deixei passar, e fiquei aflitíssima, mas fui sempre assim, tenho uma
dislexia muito particular em relação a nomes, acho que tem erro em
Llansol e noutras coisas... Mas esse foi um livro em que eu acreditei
profundamente no que estava a fazer. Acreditei profundamente na
crueza das relações humanas, na impiedade. Trata-se de praticar
acções maldosas, terrivelmente maldosas, das simulações em que
vivemos, das máscaras. É um livro que eu considero irrepetível,
que tem a minha própria respiração e o meu próprio ritmo e foi o
primeiro livro que eu defendi. Disse ao editor: Eu
venho apresentar um livro porque eu sei que vale a pena
Primeira vez que disse isto a um editor. E essa editora...
desapareceu...
A
Campo das Letras...
É,
eles publicaram o livro, foi uma coisa rapidíssima. E eu gostei
muito de escrever esse livro.
É
uma escrita muito cinematográfica. São quase curtas-metragens...
São
sinopses. Eu pensei Será
que ninguém olha para mim no cinema? Ninguém é capaz de ver o
génio que aqui está?
[risos] E então escrevi isto assim. Porque há coisas escusadas. É
verdade que era prosa mas... Entra
em casa, ó minha senhora posso entrar, olhe a temperatura se está
bem...
Não! Entra em casa: Entra.
Está frio: Frio.
É óptico, é visual.
A
Eduarda já escreveu argumentos para cinema.
Ah!
Coisas pequeninas, mas sim...
Mas
o cinema tem aqui muita importância, já no «Travelling» tinha.
Tem,
tem muita importância mesmo. A imagem é muito importante. Sabes
porquê? Porque no cinema tu vês, escreves também, mas vês. Muitas
vezes, eu falei de uma escrita
cega,
não é literatura, mas a pessoa quando está a escrever as palavras
tem que as usar de uma outra maneira. É diferente de quando estamos
numa empresa ou num banco a levantar um cheque. Uma pessoa procura
uma linguagem adaptada, não sei se é boa se é má. É aquela de
que dispomos. E eu pensava por que escrevia uma escrita cega. Eu
queria ver e não via! Só depois de escrever é que via. Tratava-se
de uma coisa de... presentificação. Era como se eu fosse buscar
qualquer coisa ao futuro. E só via depois, posteriormente. É um
campo da visão, que sempre me fez companhia.
Mas
procura qualquer coisa que está para lá ou está antes da
linguagem? Através da escrita, é possível chegar a qualquer coisa
que esteja fora da linguagem?
Eu
acho que a linguagem é uma coisa limitadíssima. Li-mi-ta-dí-ssi-ma!
Por exemplo, tu podes escrever muitas páginas a dizer “ela
comoveu-se com...”, mas isso não te dá um impacto daquele momento
instantâneo, às vezes de um olhar. Podes escrever que uma pessoa te
está a prestar atenção. E tu escreves que a pessoa prestou
atenção, que estava sossegada, estava quieta, estava a ouvir mas...
a imagem é muito mais poderosa. Nós não sabemos olhar, é verdade.
Estamos saturados com tantas imagens. Mas a imagem é poderosíssima.
Podemos descrever, mas uma coisa não dá necessariamente na outra.
Mas também te digo uma coisa: se eu conseguir que a escrita tenha
visibilidade, eu sei que ela é boa. Se ela tiver opacidade, se ela
conseguir adentrar-me,
ela é boa.
Em
relação ao seu livro seguinte, os «Órgãos epistolares»... sei
que é um dos seus preferidos...
É
o meu preferido!
Um
livro que fala da doença, que é íntima e política, trágica e
irónica... há uma série de dualidades, sobre a doença, sobre a
aproximação da morte. A poesia é um meio de resolver estas
contradições?
Como
eu disse, temos códigos. Vocês são de arquitectura: uma casa tem
janelas, tem portas, tem luz. Esteticamente isto pode ser trabalhado,
mas não se pode fugir aos códigos da arquitectura. E os suportes da
poesia não são os mesmos que os suportes da prosa. Uma das coisas
que eu me perguntei foi: o que é que o envelhecimento traz ou pode
trazer na escrita poética? Li recentemente uma entrevista do António
Lobo Antunes, em que ele diz que teme muito a ossificação. Com a
idade as pessoas ficam ossificadas, não é? O que é que se perde?
Eu penso que não há uma perda em si, cada pessoa perde as suas
coisas, embora haja coisas que parece que são comuns. O que eu quis
foi, servindo-me de uma mulher que está a morrer, cancerosa, através
da proliferação das células cancerosas... ver o que é que morre,
e por que morre, quando já não podemos ter aquela escrita que tinha
leveza, que apelava à ternura, à sinceridade, às emoções. O que
se perdera, e por outro lado: o que se ganharia? O que a pessoa podia
ainda recuperar como um índice de fulgor. E foi um texto de registo:
que tipo de metáforas desaparecia, que tipo de linguagem
desaparecia, como era substituida a linguagem, por que era
substituída? Por que experiência? Em que medida essa experiência
tinha algum valor? Em que medida a podíamos descodificar? E
descodifiquei, depois tudo ficava longo e ficava vazio: é um
perigo. Em que medida aquilo que chamamos lucidez e reflexividade não
é um período de acumulação de experiências desencantadas? Até
que ponto não podíamos participar do envelhecimento das coisas? Da
capacidade de amar? Que coisas tinham ficado pelo caminho? Se eu
pudesse dar este registo por escrito... por mim, estou a dar um
testemunho disso. E aliás, tu fizeste-me uma crítica, acho que
foste o único, muito bem feita! O que eu quis dar foi um depoimento!
É um testemunho. Mas ao prestar testemunho, será que alguma coisa
de poético seria recuperável? E como é que eu poderia ainda
manusear isso? Primeiramente, era precisa uma grande serenidade, para
afastar tudo o que viesse interferir com aquele projecto. Porque
havia um projecto! Havia um depoimento que eu podia prestar, que
ainda posso prestar hoje. Tudo é um processo evolutivo: estas
coisas morrem. Então, o que é que ressuscita, se ressuscita! Se o
processo cognitivo pode ou não ser alterado? Como é que as células
cerebrais actuam para eu poder ainda desencadear um processo de
elaboração da palavra, de transmissão de ideias. E eu creio que
esse livro foi o mais serenamente violento que eu já escrevi.
Que
se apresenta como um livro de “Cara lavada: rugas à mosta”.
Absolutamente!
São coisas terríveis que não têm sentido nenhum mas fazem parte
das pessoas. É por isso que falo de uma poesia sem vísceras. Querem
palavras, palavras bonitas e isso. Mas isso não interessa! É um
joguinho de xadrez! Isso a mim isso não me interessa. Tive que
colocar uma frase no fim para dizer que isto não é uma
generalização, não tem que dizer respeito às outras pessoas, é a
mim. Porque eu estava a jogar com uma realidade muito pungente. E de
onde eu tinha que sair com o máximo de dignidade. E acho que
consegui. São três livros lúcidos! Três, disso tudo que anda para
aí... essas coisas que publiquei. Três: «O meu lugar à mesa», a
«Branca morte» e os «Órgãos epistolares».
Os
«Órgãos epistolares» terminam com uma frase da Sylvia Plath, “nus
parecem dizer: / viémos até tão longe, chegámos ao fim”...
há alguma esperança neste final?
Eu
sou uma mulher de esperança. Sou uma mulher de esperança e de
agradecimento. Esperança é o quê? Eu espero! Eu espero amanhã
estar viva, espero jantar bem, espero que tu gostes de mim, espero
não ter sido uma coisa detestável. Sim, espero que tenham gostado
de mim, porque esforcei-me por ser sincera, e jamais sedutora. A
sedução é uma grande impostura, e eu não gosto, pode ter
acontecido, mas não por vontade minha. Sou uma mulher de espera. Até
porque na minha idade, esperar um dia é esperar muito. [Pausa] A
noção do tempo altera-se tanto, que eu penso que as pessoas, com a
idade, deviam dizer aos outros, já que as crianças não podem
dizer, Pára!
Vocês já imaginaram o que é, uma criança, pequenina, de meses,
bombardeada com um excesso de informação, com tanta gente a falar à
sua volta, de um lado e de outro, e começa a chorar, às vezes só
porque quer dizer Párem!
Deixem-me com um brinquedo ali numa sala,
e não pode... Nós podemos dizer o que se passa connosco para
percebermos, e para os outros perceberem. Para percebermos o
espectáculo da vida que é muito... cruel. Tiram-nos muito, e
dão-nos tão pouco, que a pessoa tem vergonha de pedir mais um
bocadinho, de dizer que tem fome...
E
a própria metáfora da perda da vida, é uma metáfora sobre a perda
da escrita... Como é que se escreve sobre a perda da escrita?
Se
é que se escreve! Se é que é ainda escrita aquilo que estamos a
fazer. Tem que se ter pontos de comparação. Aquilo que eu tenho,
aquilo que eu fiz, tem sempre referentes. Se esses referentes são os
melhores? Duvido. Mas são os óbvios. Mas o que eu escrevo o que é?
Eu não sei o que é. Por exemplo, essa sequência, o «Fiat Lux»,
sabes como foi? Eu tinha isso escrito, mas nem tinha pensado em
publicar. Mas o editor da revista... a Afrontamento ofereceu-lhe os
«Órgãos epistolares». Eu acho que ele tinha lido muito pouco de
mim, mas escreveu-me porque leu os «Órgãos epistolares». Eu sabia
que aquilo era um testemunho, mas não sabia se aquilo poeticamente
ia interessar. Mas interessou!
Há
aquela ideia da Susan Sontag, de escrever para a literatura e não
para as pessoas, no sentido em que se escreve em confronto com a
fasquia deixada pelos escritores que se admira. Nesta fase, trata-se
de escrever para a literatura?
Na
minha fase de agora não. Eu deixei de escrever. Tenho um livro que
está feito mas... deixei de me interessar. Nesta fase eu escrevo
para ver se ainda consigo escrever, sabes? E se o meu pensamento
ainda se articula. E com muita modéstia, porque já tenho muito
medo. Por exemplo, posso levar – e levo – às vezes dois meses a
ler um livro. Gosto ou desgosto, não interessa. E escrevo uma coisa
a dizer isso, ou o contrário disso. Mas estou a escrever sobre isso
ou sobre o livro? Não sei, é para ver se consigo. Como se me
perguntasse: O que
posso fazer com isto?
Actualmente, a escrita é um desafio para ver o que eu ainda consigo
fazer. Como andar. O meu limite é até ali, mas como é que eu posso
transpôr esse limite? É muito complicado. Se me perguntares: e
criatividade? Acaba! Acaba, como acaba o sexo, por exemplo. A
determinada altura acaba. Não sei qual é a função da onda sexual
ou da onda criativa. O que é que eu podia escrever agora? Nada, se
calhar.
No
entanto, continuou a escrever depois dos «Órgãos epistolares».
Escreveu um romance, «Vira Bicho», e este conjunto que saiu agora,
o «Fiat Lux». É possível escrever depois dos «Órgãos
epistolares», então...
Talvez
se morra muitas vezes. O que é que vocês acham? [Pausa] Quando se
fala de ressurreição: eu agora morro e volto num insecto, se
calhar, partes nossas estão mortas e outras ressuscitam. E nós
pensamos: morri
todo!
e não, afinal foi só um bocadinho, ficou outro bocadinho...
Mas
parece-me que há uma continuidade muito grande entre os «Órgãos
epistolares» e o «Fiat Lux»... A morte e o corpo que sofre a
erosão do tempo são novamente os assuntos centrais. Mas «Fiat Lux»
é escrito com tal segurança, com tal acutilância, que quase se
diria ser uma espécie de tratado sobre a morte do corpo, algo
escrito de consciência plena, e não durante o processo em si, como
nos «Órgãos epistolares». Acha que podemos falar de uma espécie
de clarividência a propósito destes poemas novos?
[Pausa]
Posso dizer uma coisa que é mesmo o que eu sinto? Eu sinto que isso
foi o melhor que escrevi até hoje!
O
«Fiat Lux»?
Sim.
Parece-me
sem dúvida o mais complexo. Apesar de ser, em comparação, um
conjunto pequeno, é extremamente complexo...
É
complexo sim, mas... Mas agora passo para ti: o que é que tu achas
dele? É que eu não sei! Isto é como se eu tivesse estado à beira
da morte, fui enterrada e... de repente levantei a tampa! Mas o que é
que tu achas?
Eu
concordo, é um pouco assim. E há aqui uma coisa que me chama muito
a atenção: já acontecia no terceiro capítulo dos «Órgãos
epistolares» e acontece na totalidade do «Fiat Lux»: é o problema
da ironia. Aparecem todos os grandes temas: o amor, a morte, a
sexualidade, a ética, o corpo, mas é tudo destruído por uma
espécie de ironia que está em tudo.
Em
tudo! Em tudo!
Acho
que o «Fiat Lux» é uma destruição pela ironia. Por isso eu
falava em clarividência. É nesse sentido, em que é como se fosse
uma escrita... eu não quero dizer póstuma...
Mas
podes dizer!
Então,
sim, uma espécie de ironia póstuma,
face aos fenómenos humanos... talvez aqui tivéssemos que entrar na
antropologia...
E
bem! Quando eu comecei, na altura dos «Esquemas», estava lá isso
tudo, a biónica, a electrónica, a quântica, a antropologia, coisas
que agora estão aqui na berra: os criacionistas, os evolucionistas,
mas já naquela altura isso era uma ironia. Para mim! Roubar é mais
que dar! Pronto: roubar é mais que dar! E a ironia, para mim, é o
esqueleto de tudo. Podem não me dar amor, mas dêem-me humor! Porque
nós sem amor, sem comida... até passamos, mas sem humor não. O
humor é sinónimo de bem-estar e de inteligência. É sinal das
pessoas não se levarem a sério e de poderem errar. É sinal de vida
e de vitalidade, e sem humor, para mim, não há nada. É algo que te
digo que faz parte da minha própria estrutura, da minha maneira de
ser. Havia um trovador, que o Arnaldo [Saraiva] estudou, que dizia a
mesma coisa, Guilherme da Quitânia, no século IX. Gosto que tudo
passe pelo humor, sabes, para perder essa dimensão...
A
dimensão trágica...
A
dimensão trágica... que é uma coisa, do corpo, o corpo sente dor.
São necessidades. Estamos mal, estamos com fome... e é preciso
humor para perder isso. É tudo muito triste...
A
não ser que se tenha humor?
Com
humor tem mais piada. Às vezes, se me dói uma perna e pergunto-lhe:
Olha lá, o que é que eu tenho a ver contigo? O que é que eu te fiz
para me estares a apoquentar?
Depois tropeço. E penso: Olha,
não parti a cabeça!
E se bato com a testa, penso: Que
bom não ter cornos!
Eu vivo a minha vida num contínuo de humores permanentes.
Mas
é uma ironia sua ou das coisas? É preciso inventar essa ironia?
Eu
acho que é preciso impor. Se eu estou a cozinhar, e ao mesmo tempo
estou a escrever, depois esqueço-me, a panela queima... Quer dizer:
a panela não tem culpa! Mas eu também não tenho culpa de gostar
mais da escrita do que da panela! De quem é a culpa? Então chego à
panela e digo: Pois,
agora vais para o lixo.
E acabou-se. E quem quer viver assim, vive, quem não quer, não
vive. Mas eu olho para as coisas e penso: Que
grande chatice ter a ver contigo!
Isto não é humor?
É
curioso porque, ao longo da entrevista, falámos da poesia da Eduarda
como tendo várias fases mas agora a Eduarda disse isto, que me
chamou a atenção, sobre a permanência da ironia face às coisas
sérias, que já vem dos «Esquemas». Acha que esta pode ser uma
linha orientadora, não de fases, mas de toda a sua obra?
De
toda. É uma constante. Se calhar é uma defesa! Mas lembras-te de
uma parte neste mais recente [«Fiat Lux»] sobre Deus não perceber
nada de impostos e da natureza dos peixes...? Tudo isso são humores
que... Não é desrespeito! É muito mais sacana que isso. Porque o
desrespeito é uma coisa sincera! Não é desrespeito, tem um
bocadinho de maldade, de malícia. Porque senão, não podia viver!
Como é que se aguentava tudo isto? Não sei... Aliás, não te
esqueças de dizer aí: que eu sou uma pessoa profundamente
ignorante!
Eu
discordo...
Profundamente
ignorante!
Acha
mesmo?
Acho.
[RF]
Então porquê?
Porque a nossa cultura – não sei como está agora – mas, eu
tive uma cultura académica, como todos os meus amigos... Escola
primária, Liceu, por aí adiante... passo depois para um curso de
Filosofia que é uma coisa... é polémica, é engraçada, mas que
não conhece o quotidiano. E tudo aquilo, trazido para a vida
quotidiana, é tão pouco! Às vezes, basta falar com as crianças, o
sol dá luz, e percebemos que não é precisa tanta coisa. Reduzimos
tudo a termos conceptuais. Que aldrabice! E nós vivemos com um
ensino teorizante que não nos diz nada. Por exemplo, nas antigas
Civilizações: havia construções brutais, há 10.000 anos. Então
os tipos não sabiam cozer uma batata e fizeram isto? Como é que é
possível? Ninguém me dava respostas para isto, mas há respostas! É
o ensino que nos prepara assim, pelo menos aqui, noutros países não
sei se é assim. Pode ser divertido...
Sem
perder a seriedade...
Sem
perder a seriedade. Mas ligando-se à nossa vivência. Nós
precisamos de vivenciar.
Mas
esse também é um percurso que acontece na poesia da Eduarda. No
início está muito interessada no Estruturalismo, que é uma
abordagem essencialmente conceptual, abstracta, e depois parece que
há uma desilusão...
Completamente,
completamente! Seja o que for que seja a poesia ou a literatura, não
se faz só com isso, não se faz com isso. A partir de certa altura,
percebi que não. E há muita gente a fazer assim, e estão a fazer
muito mal. E há muitos poetas que no fundo, não sabem o que estão
a fazer. É preciso que as coisas grandes, intemporais, sejam
naturais. São nossas. [Pausa] Sobre eu ser ignorante, digo-te o
seguinte: tenho um irmão que é matemático. Fala por fórmulas. É
brilhante, e fala assim, por fórmulas matemáticas, faz a vida dele,
foi investigador. Durante muito tempo, eu achava que ele tinha um
pensamento distorcido. Eu tinha todas as perspectivas da catalogação
[psicológica], mas perdia o contacto com o real. Isto [aponta para o
esquisso de uma tabela] é um sinal de burrice, de ignorância, não
é de sabedoria. Sabedoria foi o que eu adoptei depois, quando passei
a falar com ele como ele conseguisse entender-me. Passei para o
universo dele. É preciso esquecer esta porcaria toda [risca o
esquisso da tabela] que não tem importância. Sou ignorante, porque
uma parte esqueço, outra parte quero esquecer.
Então
não é uma aspiração à ignorância?
Não,
é ignorância mesmo. Olha... eu vi a Casa dos Segredos. Vi, sim, vi
um bocadinho! E vi uma miúda profundamente humilhada porque deu
conta da sua ignorância. Estava mesmo humilhada, só faltou chorar,
dizia «Sou burra!» E depois há lá um indivíduo que vai
consolá-la, dizer-lhe que não é burra... aquela coisa machista,
não é? A miúda não sabia a capital de um país. Estava humilhada.
Foi a primeira vez que eu vi uma pessoa a tomar consciência da sua
própria limitação. Uma vez, estava a ler os Prolegómenos de Kant,
na Faculdade, e estava a chorar e não percebia pa-ta-vi-na. Não
entendia, era o limite do meu entendimento. Passou por mim o
[Francisco] Vieira de Almeida e perguntou-me por que estava a chorar.
E disse-me: Não
fiques triste, filha, não digas a ninguém. Eu estou cá há mais
tempo que tu e também não entendo!
Mais tarde, vim a saber, quando descobri o tal humor: Kant tem as
mãos limpas. E disse: Também
eu! Kant não tem mãos, tem cotos!
Mas sou muito ignorante... porque para se saber uma coisa, é quase
uma vida inteira. Não sou especialista. Mas, como não sou burra,
soube dizer que não sei nada.
E
acha que é melhor saber? O arquitecto Walter Gropius dizia que “os
especialistas são pessoas que repetem sempre os mesmos erros”. É
melhor ser especialista, nesse sentido?
Não
sei se é melhor, se é pior. Mas retira a angústia de andar sempre
a procurar. Porque depois, procura-se como se fosse um pai e uma mãe,
alguém que nos dê uma razão para aquilo. Um diz uma coisa, outro
diz outra, o outro apodera-se daquele. Mas há mentes brilhantes,
mesmo.
Para
terminar, uma coisa que me chama a atenção no «Fiat Lux» é o
facto de ser publicado numa revista. A Eduarda tem muita colaboração
dispersa e, segundo as suas notas biográficas, alguns livros que
nunca foram publicados: «Buchenwald», «Os cafés de Paris», «Vala
comum», «Mater». O que significam para si, hoje, esses poemas
dispersos e esses livros que nunca foram publicados?
É
o seguinte: a «Mater» está, inédito, na «Poesia completa» que
está por publicar, que já me pediram há uma data de tempo e eu
deixei cair... enfim... não tenho paciência para organizar aquilo.
Nem tem título. O Armando Silva Carvalho tem o «O que foi passado a
limpo», que eu acho lindíssimo, mas não posso roubar o título! A
«Vala comum» também está lá. O «Buchenwald» foi uma peçazinha
de teatro que me pediu um indivíduo, tradutor, para publicar em
Paris, mas creio que não foi publicado. «Os cafés de Paris» ainda
está por lá por casa! Tem um extracto, um extracto do início dos
«Cafés de Paris» na...
N'«A
Décima terceira ilha».
«A
décima terceira ilha», exactamente, tem um extracto e ainda está
por lá. Não sei se um dia lhe pegue, ou não...
Há uma Eduarda Chiote inédita que possamos encontrar nestes
livros?
Na
«Vala comum» e na «Mater»?
Nesses todos...
[RF]
Se há uma outra Eduarda...?
Mas alguma vez existiu alguma Eduarda? Diz-me lá!
Então,
os livros estão publicados, existe de certeza.
Sim,
mas, eu acho que há uma nova Eduarda aí no «Fiat Lux», não há?
Aqui [nos inéditos], se calhar, é uma nova misturada com aquilo que
lá estava [risos].
1 comentário:
Fantástica! A Eduardinha é FANTÁSTICA! Sempre igual a si mesma! ÚNICA. Adorei. Que privilégio para os jovens que fizeram a entrevista...
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