terça-feira, 20 de outubro de 2009

Wanda Ramos: Poe-Mas-Com-Sentidos

SENTIDOS CONSENTIDOS



Falar de Wanda Ramos (O que já não faço há quantos meses…) implica sempre falar de questões de aceitação por parte do público, da crítica e dos restantes escritores. E se é verdade que, em última análise, tudo isto são questões paralelas ao livro, também é verdade que em muito definem o destino deste.
O caso de Wanda Ramos, no entanto, acrescenta a estas questões paralelas uma mais: a relação da própria autora com os livros, e, concrectamente, com a sua poesia.
Precocemente desaparecida em 1998, em 1999 veio a lume o seu último romance, “Crónica com Estuário ao Fundo” (Caminho). Mas o seu último livro de poesia surgira já em 1986, este “Poe-Mas-Com-Sentidos” (1986, Ulmeiro).


Nesta edição é visível, nomeadamente através da nota final, a vontade da autora de realmente terminar ali a sua poesia. Isto porque “Poe-Mas-Com-Sentidos” repõe “Nas Coxas do Tempo”, que tivera edição autónoma em 1970, numa restrita plaquette onde se inseriam ainda desenhos de António Ferra; recolhe todos os poemas dispersos em jornais e revistas literárias, bem como vários poemas em prosa, provavelmente os posteriores a “Intimidade da Fala” (1983, &etc) que era consituído apenas por poemas em prosa.
Por outro lado, percebe-se que este é um final precoce, efectivamente:
Colocando Wanda Ramos no seu contexto, ela surge em 1970 com todos os entraves que uma edição de autor implica, e apresenta-nos uma poesia onde dois ecos são visíveis: o romantismo exacerbado de Florbela Espanca e o erotismo assumido de Maria Teresa Horta. Não sendo “Nas Coxas do Tempo” um mau livro (É, alias, do meu ponto de vista, um dos melhores momentos da autora.), perde um pouco do seu impacto pela imediata associação a estes nomes. Posteriormente, em particular em “E Contudo Cantar Sempre” (1979, Inova), estes ecos tornam-se mais diluidos numa voz que efectivamente começa a definir-se.
Ainda nos anos 70, recebemos os sururus de Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, que os próprios mais tarde haveriam de reconhecer como idiotices, mas que, para todos os efeitos, sempre causam determinado impacto num meio que tem pavor a não se renovar (Nem que seja pelo non-sense.); a poesia violenta de Al Berto que haveria de se tornar numa das mais originais da nossa literatura; e ainda alguns outros nomes, entre os quais o de Eduarda Chiote, que, passados estes anos, se percebe estarem mais relacionados, ainda que de forma ténue, com a poesia de 80 do que propriamente com a de 70, ainda que nela tenham surgido.
No meio disto, um livro em que há referências que demasiadamente se fazem sentir é para marcar uma pessoa.
Wanda Ramos terá chegado a esta conclusão. O facto de entretanto ter inciado o seu percurso como romancista, com “Percursos (Do Luachimo ao Luena)” (1981, Presença) e de neste se ter demonstrado realmente mais original do que na poesia (“Percursos” é, a meu ver, o melhor romance sobre um outro lado, o da mulher, da Guerra Colonial, depois de “A Costa dos Murmúrios” de Lídia Jorge.) também terá contribuído para que Wanda Ramos tenha decidido em definitivo dedicar-se a um projecto em que podia realmente ser boa, e que, aliás, a conduziu à História da Literatura Portuguesa.
“Poe-Mas-Com-Sentidos” é, portanto, a colecção última de poesia da autora. E uma boa colecção, mesmo assim.

A inclusão do primeiro texto da autora, que dista vários anos dos restantes (Segundo a nota final, este livro cobre um espaço de tempo entre 1968 e 1986.), funciona bem por tornar realmente clara a mudança de tonalidade nesta poesia: se inicialmente ela se nos apresenta simbólica e, por vezes, quase surrealizante, com imagens sucessivas onde o erotismo se torna uma espécie de mundo pairando sobre o mundo; na segunda secção, que dá título ao livro, é como se este mundo simbólico se tivesse infiltrado no real, sendo que as referências simbólicas encontram uma conexão com o real através do indivíduo, do sujeito poético. A cidade, a rua, a casa, são descritas e entrecortadas por “entradas em cena” de elementos que simbolizam invariavelmente o desejo. Por outras palavras: a percepção da realidade é filtrada pelo corpo, e apenas daí se pode tornar objecto de desejo ou contentor de um objecto de desejo.
Noutros poemas, a mesma situação acontece sem que o seu resultado seja o desejo, e, nesse caso, é por norma a tristeza e a solidão, também elas experienciadas fisicamente.
Este capítulo, “Poe-Mas-Com-Sentidos”, é também uma espécie de biografia da autora, contendo, além dos poemas mais emotivos ou descritivos de situações que o são, referências à “África (Também) Minha”, e todas as questões de aculturação e distância que uma mudança tão radical implica; e também a própria escrita, enquanto elemento constituinte do quotidiano, a necessidade das palavras para fixar “tantos destes itinerários perdidos nos anos/ achados a cada hora de entrar em casa” (pag.35).
Por fim, o último capítulo, “Brumas”, engloba seis poemas em prosa. A maior diferença em relação aos poemas em verso será provavelmente a densidade narrativa: esta torna-se mais definida a partir do segundo livro da autora, mas, nos poemas em prosa, surge definitivamente mais forte, como se se tratasse de uma “página de diário entreaberto” (título de uma sequência de “Intimidade da Fala”).
Uma questão importa ainda referir: a linguagem. Em Wanda Ramos dificilmente se encontram palavras para procurar no dicionário. Encontram-se, no entanto, palavras que por vezes parecem já ter caído em desuso, algumas abordagens mais distantes de uma erudição que a maioria dos autores procura. Para isto, tanto as suas raízes africanas, como uma leitura dos seus romances que a isto mesmo aludem, ajudam a entender que a linguagem, a “fala” de Wanda Ramos é mesmo profundamente “íntima”, precisamente por isto: é uma fala, um vocabulário, profundamente ligado às suas origens, numa relação quase umbilical, e que à escritora dificilmente passaria despercebida, uma vez que tinha o curso de Letras. Esta assumpção da origem da fala pessoal é, portanto, um dos elementos de maior interesse na poesia de Wanda Ramos, e poderá ter sido, para os delicados ouvidos do meio literário português, uma das razões para a considerar “vulgar”.
Se é certo que a autora atinge uma grande maturidade nestes poemas, e a presença do primeiro texto é, como se disse, um elemento que reforça esta ideia, a verdade é que se entende que houve alguns aspectos que claramente poderiam ter sido mais desenvolvidos. Provavelmente, a poesia de Wanda Ramos teria atingido um outro grau de qualidade ou de completude se tivesse sido continuada.
Enfim… pelo menos seguiram-se romances como “Litoral (Ara Solis)”…

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