RUPTURA E CATARSE
Já recentemente falei da escritora de origem angolana Wanda Ramos, mas a propósito da sua prosa, em concrecto, do seu segundo romance.
No entanto, na minha odisseia em busca de certas raridades que me interessam, por mais recônditas que possam ser, nem tudo é mau.
De facto, não há muito tempo, deparei-me com a plaquete “E Contudo Cantar Sempre”. E se a estreia da autora se deu em 1970, com “Nas Coxas do Tempo”, esta era uma edição de autor, pelo que a referida plaquete é, para todos os efeitos, a sua estreia nos circuitos comerciais.
O percurso de Wanda Ramos pela poesia é curto. Depois de em 70 ter feito a sua edição de autor, em Fevereiro de 1979 chega “E Contudo Cantar Sempre” nas edições O Oiro do Dia, aqui mesmo na minha cidade, e, um mês depois “Que Rio Vem Forçar a Entrada Desta Casa” surge na colectânea “A Jovem Poesia Portuguesa- volume 1”, na Limiar, também aqui no Porto. Passa pela prosa poética em “Intimidade da Fala”, folheto em três capítulos publicado na &etc em 1983 e termina com “Poe-Mas-Com-Sentidos” (Que repõe sob a forma de capítulo “Nas Coxas do Tempo”.) em 1986 na Ulmeiro. Cinco livros, portanto.
Concrectamente, “E Contudo Cantar Sempre” entende uma série de 11 poemas com um belíssimo desenho de Armando Alves, os quais me aventuro, aqui, a analisar.
Numa primeira leitura, há um conceito que parece patente na escrita de Wanda Ramos: o tempo. É de considerar que, nestes 31 anos que tinha até à publicação deste livro, Wanda atravessou o 25 de Abril e todas as mudanças sociais e culturais que isso implica. Ou seja, é uma época de mudanças e de conturbação que, claramente, atinge a psique das pessoas nela envolvidas. É este um dos tempos de “E Contudo Cantar Sempre”. O outro, é mesmo o tempo cronológico que “mede” a vida de cada um de nós que, para todos os efeitos, é a força que mormente move a poesia.
O primeiro poema chama-se “Autobiografia” (pág.3), e começa, num tom eventualmente irónico por dizer “é verdade que não vem a propósito”. De qualquer maneira prossegue “contar quantas águas em mim pude prender”, ou seja, após duas linhas, já este livro nos introduz a esta viagem no tempo interior da autora, da sua biografia. Mais, diz-nos “e tenho a pele por fim dissecada/ por poemas de pensar urdir solos(…)”, ou seja, depois de contadas as águas que se prenderam, resta a pele dissecada pelas palavras. Daqui, podemos retirar como que uma génese daquilo que é a poesia de Wanda Ramos: uma retrospectiva, o poema em consequência da passagem do tempo sobre os acontecimentos; são relatos que surgem quando a poeta está “ausente hoje de vento” (itálico meu).
Continuando a ler, encontramos “Memória Transitória” (pag.4), o segundo poema, dividido em cinco secções, cada uma começando com “Esqueceste-te”: é o abandono interior, a noção de que a partilha do amor foi olvidada, sofreu a erosão do tempo: “Esqueceste-te de que já uma vez te fizeste comigo”; “Esqueceste-te do quanto premente era sermos.”; “Esqueceste-te de que era ainda há pouco essa cumplicidade.”, “Esqueceste-te de que estou onde nunca terei estado” (itálicos meus).
Mais à frente, em “Contradição” (pag.8), Wanda Ramos diz “Cresce-me do ventre este travo/ do que perdi. Esta memória/ do que não tenho ainda e não sonhei.” Serve esta passagem, simultaneamente, para evidenciar uma vez mais a noção da passagem do tempo sobre o ser humano e as relações humanas, mas também para introduzir outro aspecto que me parece pungente na poesia de Wanda Ramos: a melancolia ou, digamos mesmo, uma certa depressividade.
Um pouco mais atrás, em “Memória Transitória”, é a própria quem diz “se hoje escrevo é na raiva de não ter gestos/ nem mãos.” e também “que é difícil respirar.” Em “Poema Sem Fôlego” (pags.9 e 10), admite mesmo que tem “a inércia do meu lado de combate”.
De facto, ao longo de “E Contudo Cantar Sempre”, há uma enorme tendência para um certo pesar em relação ao passado, que se reflecte no presente. Não esqueçamos, para isto, a teoria do fingimento poético de Fernando Pessoa. Depois de passadas as tormentas surgirá o poema, só quando a pele estiver dissecada, nas palavras de Wanda.
A estrutura do livro demonstra que, provavelmente, a própria autora terá tido percepção deste facto, uma vez que as memórias do passado vão, poema a poema, dando lugar às memórias mais recentes e também a referida “depressão” vai arrastando, até ao poema “Cantar Nunca. E Contudo Cantar Sempre” (pags.12 e 13), onde se nota uma tentativa de fuga a este estado de alma, que depois prossegue em “Entrega” e “Pensamento da Madrugada”, décimo e décimo primeiro poemas, respectivamente.
Se em “Autobiografia”, primeiro poema, Wanda Ramos nos diz brutalmente “defeco primeiro meu eu tão antigo/ e chego ao fim.”, em “Pensamento da Madrugada” (pag.15), o último, diz-nos “Não são ocas as horas nem tresloucadas” É portanto, uma (r)evolução interior que “E Contudo Cantar Sempre” representa.
O poema que em parte dá título ao livro é, aliás, muito claro nesse aspecto, dizendo-nos “Cantar Nunca. E contudo cantar sempre:/ despeitada não nos marcará a solidão”.
A um nível menos (psic)analítico, digo que “E Contudo Cantar Sempre” é um livro que, inserido no seu contexto, não representa nenhum tipo de revolução ou quebra com o que estava a ser feito simultâneamente na poesia, mas é, certamente, um livro a ser lido como testemunho de uma época, claro, mas também como um bom relato de um estado de alma em tudo confuso, preso entre a tristeza e o desejo de fuga, estado que, aliás, já encontrei na prosa de Wanda Ramos.
Alguns poemas ficam certamente a perder em comparação a outros, nomeadamente “Talvez Prefira”, “O Tempo Que Colhíamos” e “Ainda Que Te Espere”, por utilizarem alguns clichés de linguagem desnecessários. Quanto aos restantes, nada a apontar.
Certamente mais para quem está disposto a suar por encontrar livros cujo formato condena ao esquecimento nas mais remotas prateleiras de certos alfarrabistas ou livrarias mais antigas, mas certamente é bom, portanto, valerá a pena o esforço.