fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer? pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
José Luís Peixoto
no primeiro número da revista "Apeadeiro", quasi, 2001
fotografia: Frederik Froument
2 comentários:
Gosto mais deste poema do Peixoto. Revela implicações mais profundas. O poema de "A Criança em Ruínas" é mais taxativo. Vulgar, óbvio.
Este publicado na revista Apeadeiro,tem implicações sociais muito interessantes e o primeiro só fala do coração apaixonado e até revela uma certa misogenia.
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