terça-feira, 31 de julho de 2012

Coisas minhas I



A FINE DAY TO EXIT*

A cidade parece
uma miniatura na esfera
de vidro e eu caminho nela,
encurralado. À espera.
Assim
me afundo, páro

no café onde não estás
e sei que este
é um bom dia para ir embora.

Estou noutro lugar,
entre segredos que dizem
o teu nome.

Estendo os braços,
já nem à tua procura,
apenas na tentativa de estar menos só
num tão bom dia para ir embora.

Debruçado na janela vejo
os carros, as luzes

e sobe o eco das conversas.
Quero descer,

inclino-me próximo da queda
No espelho há um rosto
a perder-se no teu,

e penso então que este é
um bom dia para ir embora.

Porque a cidade tem ainda
as suas zonas de sombra
onde é possível um abraço,

devo acreditar que haverá
um bom dia para ficar.
 


[João Borges: Lisboa, 1.3.2011]
*é o título de uma canção e de um álbum, de 2001, dos Anathema
fotografia de Slava Mogutin

segunda-feira, 30 de julho de 2012

The Fall of the Angels (fragmento)


Through infinite, eternal space 'twas night
And darkness: scarcely the blue lightning shone,
As, flashing idly thro' its harmless flight,
It lit discordant elements alone.
Oblivion spread its vast long limbs, with sullen pride,
Midst the loved, changeless shades, that everything could hide:
No speck of beauty, sparkling there on high,
As some meek flower, that breaks the snow to shine,
No sun sail'd, like a ship, across the sky,
A startling show of pomp and power divine.


Then sounds alone, like Etna's breathings, broke
Upon the wilder'd ear of Seraphin,
And seem'd as if the presence they bespoke
Of one who mock'd at God and scoff'd at him.
For element 'gainst element was loudly warring,
And latent flames, and waves, and rocks, were broken jarring;
Then were unknown fair music's magic power,
The still soft sounding of the speaking wave,
The rolling crash of clouds, that proudly lower
As if the Almighty used the voice they gave.

Yet all was barren; nothing but a stream
Of splendent suns and stars attracts the sight:
Mingling, they deckt each other with a gleam,
Each caught its beauty from its brother's light.

But, by the grateful sight of seraph's joy beguiled,
Jehovah, pleased, look'd on his vast work and smiled:
Then suddenly they see the planets move,
They see, upon the barren glittering earth,
The bending corn, the forests, nodding grove,
And worlds and oceans teeming one great birth.


John William Polidori
The Fall of the Angles: A Sacred Poem
1821
pintura de Giulio Cesare Procaccini


sábado, 28 de julho de 2012

Fora de época

Por alguma razão, desde miúdo, tive sempre uma certa dificuldade em ouvir aquilo que estava na moda. Tenho agora 22 anos, o que significa que atravessei a febre do hip-hop quando o Eminem e o 50 Cent estiveram na moda; atravessei as modas passageiras do Summer Jam com o Kevin Lyttle e o Denzel (Não sei bem se era assim que se escrevia, mas era qualquer coisa assim.); aquele ano em que uma banda chamada Ozone tinha uma canção que toda a gente cantava numa língua que não me lembro qual era; os megassucessos de kizombas e de raggaton e é preciso não esquecer os Adiafa que chegaram a primeiro lugar no top nacional com As Meninas da Ribeira do Sado (Sim, Portugal, eu lembro-me...) e também não esquecer o imperdoável caso DZRT (Sim, Portugal, eu também me lembro...) e outros casos originados ou impulsionados pelos Morangos com Açúcar, esse culto da superficialidade e da estupidez.
Mas, enfim, de todas as modas, mais infelizes ou menos, que me passaram ao lado ao longo de 22 anos, devo dizer que houve, para mim, duas mais ou menos excepções. Digo mais ou menos excepções porque não creio que sejam excepções exactamente. Houve dois casos em que, quando o cantor que tinha estado na moda já tinha sido votado ao esquecimento em detrimento de outro qualquer, eu fui ouvir e até encontrei algumas coisas de interesse. O primeiro caso prende-se com uma só canção.



Corria o ano de 1997 quando a primeira canção de Natalie Imbruglia, Torn, fez do álbum 'Left of the Middle' um grande sucesso. Toda a gente cantava aquilo. Na altura, eu tinha sete anos e todos os meus colegas de turma, num tempo em que ainda não havia inglês na escola primária, cantarolavam aquela melodia com sons inventados que, imagino eu, deviam assemelhar-se brevemente à letra propriamente dita da canção de Imbruglia. Depois passou. Acontece frequentemente e não devemos surpreender-nos com isso. Afinal de contas, os Morangos com Açucar continuam a passar na TV e as pessoas continuam a ver, o que nos denuncia que o nosso país de cristianos ronaldos e mourinhos aceita com felicidade tudo aquilo que cultive o supérfulo e o oco. Assim sendo, querer conhecer e seguir a obra de um músico ou de um cantor é raro. Natalie teve por cá um grande sucesso e depois foi-se, apesar de ter continuado a fazer música e de ter continuado interessante, dentro do estilo adult-pop que é mais ou menos o dela. Um dia, aos quinze ou dezasseis anos, estava eu num café do Porto com uns amigos, e a televisão, sintonizada na VH1 estava a passar esse primeiro videoclip de miss Imbruglia. E, de repente, pareceu-me interessante. Bem sei que para a maioria daqueles que, como os meus coleguinhas de turma, cantarolavam Torn na altura, essa canção e a sua intérprete não são mais do que vagas reminiscências que por nada se recuperam. Mas o facto é que, repentinamente, me surpreendeu a frescura da canção e também a sua letra, perfeitamente simples, e no entanto escrita à margem do que de mais vulgar se escreve sobre separações amorosas que, sejamos sinceros, são assunto de quase toda a música pop. Não é que tenha investigado a fundo o percurso de Natalie, mas guardei a canção e, tendo ouvido vagamente mais algumas, tenho que ser sincero e dizer que, depois de sucessos como o de Lady Gaga, tenho que ser frontal: Natalie Imbruglia está a léguas de distância de ser do pior que a música pop já nos deu e, bem pelo contrário, se compararmos uma e outra, percebemos que a música de Natalie tem uma profundidade que Gaga nem consegue sequer sonhar ter.


Outro caso semelhante é o de Lara Fabian. Apesar de ter uma carreira com a mesma idade que eu, Lara conquistou o Brasil e, daí, Portugal, em 2000 apenas, com um álbum homónimo que era o primeiro cantado em inglês. Love by Grace, um balada tão romântica que quase causa alergia, foi incluída na banda sonora de uma telenovela da Globo, mas o sucesso de Lara deve-se principalmente a uma outra canção do mesmo álbum. I Will Love Again é uma canção atípica para esta cantora nascida em Bruxelas. Dedicada principalmente às baladas, Fabian tem sido constantemente comparada a Celine Dion, sendo a diferença mais relevante entre ambas o facto de Lara ter efectivamente boas canções pop melancólicas com bons textos, e Céline esgotar as suas qualidades na voz, uma vez que a música propriamente dita chega a ser tão camp que toca as raias do insultuoso.
Portanto, eis-me com dez anos, rodeado ainda coleguinhas de turma que seguiam religiosamente a telenovela, fosse ela qual fosse, na SIC e que quase choravam (Ou choravam mesmo, não me recordo bem...) ao ouvir Love by Grace. Claro que esta canção é do pior que Lara já fez. No entanto, ouvi recentemente I Will Love Again e percebi uma coisa. A música pop dançável vai existir sempre. E, se tem que existir, eu penso que é melhor que seja cantada por pessoas que efectivamente sabem cantar e têm uma voz forte, como é o caso de mademoiselle Fabian. Podem dizer o que quiserem, mas ela não é uma Celine belga e esta canção é o exemplo de como uma canção pode ser dançada e ser ouvida também, e de como se pode fazer uma canção pop moderna e upbeat sem por isso abdicar de uma personalidade mais melancólica, presente através do texto da canção e sem precisar de mostrar pernas e mamas e rabos. Que canções dançáveis assim não se façam mais vezes é que é de lamentar... E pudesse Gaga idealizar sequer um dia poder fazer uma canção assim, que eu tirava-lhe o chapéu, ou qualquer adereço estúpido que ela tivesse na cabeça para chamar a atenção pela estética idiota e distrair as pessoas do facto de cantar como uma carpideira velha com problemas de fala e princípios de demência. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Estradas (1)


Esta é a estrada
que me atravessa o tórax
com os seus marcos leves.
Vagarosa vida em terraplanagem,
vivo medo. Tem o cascalho,
o pó, o macadame negro
que nos esmaece. Vai cortar-nos
o som com que gritámos.
Abater a colina clara,
que percorríamos, amantes solitários.
Vai esquecer-se dos passos
de parentes e pássaros.
É a estrada que esventra.
Estivemos no começo
e no fim do seu tempo.


Fiama Hasse Pais Brandão
Cenas Vivas
2000, ed. Relógio d'Água
snapshot de um filme de Nicolas Provost

terça-feira, 24 de julho de 2012

Dois dráculas, mais dois vampiros

Parece ser quase imperativo que, cada vez que um livro se eleva ao estatuto de clássico, tenha que ser adaptado ao cinema. Aliás, talvez os livros não fossem clássicos se não fossem adaptados ao cinema. O filme é, para muitos, uma maneira de conhecer o livro sem o ler. É meramente ilusório pensar assim, mas não deixa de acontecer. Meramente ilusório porque, para todos os efeitos, um filme será sempre uma interpretação do livro.
Como clássico que é, o 'Dracula' de Bram Stoker já teve numerosas adaptações ao cinema, ou, dito de outra forma, já sofreu de várias adaptações ao cinema.
De duas delas, parece-me importante falar.


Em 1921, F.W. Murnau quis adaptar o romance. Como não conseguiu autorização dos herdeiros de Stoker para utilizar a história, realizou o filme na mesma, seguindo a história, mas mudando o nome dos personagens e alguns dos lugares onde a história aconteceria. O termo vampiro foi alterado para um outro, que dá título ao filme. 'Nosferatu' chega aos cinemas em 1922, e se sobreviveu até aos dias de hoje, foi por um golpe de sorte. Os herdeiros de Stoker processaram Murnau, venceram em tribunal e este ordenou que todas as cópias do filme fossem destruídas. Uma sobreviveu e hoje, temos acesso a um dos filmes mais representativos do Expressionismo Alemão no cinema.
O argumento de Henrik Galeen segue quase inteiramente a premissa de 'Dracula'. O conseguimento maior do filme, mesmo assim, é a sua componente visual. Murnau consegue recriar a atmosfera do romance de Bram Stoker, que beneficia da tendência expressionista. A figura de Max Schreck, enquanto Conde Orlok/Dracula, bem como a sua capacidade de expressão facial são digníssimas representações daquilo que imaginaríamos ao ler o romance. A caracterização é sóbria e eficiente, e fica a cargo de Schreck ser um vampiro (Ou melhor, um nosferatu.) credível.
O facto é que, nos dias de hoje, haveria maneiras de criar um filme mais explícito e violento. No entanto, Murnau parece ter chegado mais longe com os meios da altura do que muitos realizadores actuais com muito mais meios. As unhas compridas e afiadas, os olhos esbugalhados e maquilhados, a silhueta esguia, o rosto branco como cal, tudo isso, faz com que um só esgar de Schrek tenha mais impacto do que qualquer sangramento explícito de hoje em dia.
Mais ainda, Galeen aposta na componente subliminar do romance de Stoker. O não dito, aquilo que é apenas pressentido, tem um papel importante no livro, e Galeen entendeu-o. Assim, Murnau atribui a Ellen/Mina uma série de presságios, e Greta Schröder é perfeitamente capaz de transmitir a ansiedade e o medo que os seus prenúncios lhe causam.
Os cenários estão bem elaborados e, distanciando-se dos ambientes reconhecíveis da Inglaterra Vitoriana, consegue manter toda uma maneira de viver que está presente no romance. Com a minúcia da caracterização dos espaços, Murnau consegue, inclusivamente, que as cenas não pareçam menos conseguidas por serem filmadas de dia, quando deveriam, à partida, ser filmadas de noite. Exemplo máximo disso é a cena a bordo do Dimeter, o navio que transportará os caixões do Conde para a sua nova casa, em o sugir de Schreck na proa do navio, filmado num plano contrapicado se tornaria uma das imagens mais emblemáticas do cinema expressionista.


Esta cena, juntamente com outras que, deste filme, se tornaram como estandartes, ilustra muitíssimo bem aquilo que realmente é o maior conseguimento deste filme. Ironicamente, 'Nosferatu' beneficia de não ter recebido os direitos de autor do romance. Porque, perdendo algumas designações de Stoker e o nome dos personagens, cria-se uma distância, nem que simbólica, entre o romance e o filme. Está assumido que são objectos independentes. O filme afirma-se pela sua dimensão visual profunda e minuciosamente elaborada e a história não é muito mais que um conjunto de linhas mestras que orientam o filme. 'Nosferatu' depende muito menos no romance que lhe dá origem do que da sensibilidade e das ideologias do seu realizador. É um filme que arrepia e comove não pela sua história, que é realmente o menos importante. O Conde Orloc pode ser Drácula como pode ser qualquer personificação do medo, valiosa por si só.


Bastante diferente é o caso de 'Bram Stoker's Dracula' de Francis Ford Coppola. Este filme surge em 1992, exactamente setenta anos depois da estreia de 'Nosferatu'. Ao contrário de Murnau, Coppola pôde usar os nomes dos personagens, e inclusivamente, no título, atribui o seu Drácula ao autor do romance.
Como se disse, um filme que adapta um livro é sempre uma interpretação desse livro. Mas usar no título do filme o nome do autor do livro é perigoso, porque comporta determinadas responsabilidades.  Este filme é referido muitas vezes como uma adaptação fiel do romance, mas isso é falso.
De facto, o filme pode maravilhar pelo seu visual. Os cenários são pensados sem rigor relativamente ao livro, mas com apuradíssimo sentido estético, que passa, inclusivamente pelo genius-loci, no sentido em que Coppola sabe em que espaços inserir os seus actores para criar toda uma ambiência que sirva o espírito do filme. Da mesma forma, o guarda-roupa dos actores está igualmente bem construído. Ele recria perfeitamente a Inglaterra Vitoriana e denuncia também a condição e até a personalidade dos personagens.
O elenco está também cheio de actores conceituados. Gary Oldman dá corpo ao Conde Drácula com bastante desenvoltura, tanto nas cenas em que o Conde é velho como naquelas em que é jovem. Keanu Reeves interpreta Jonathan Harker com a facilidade do costume e Wynona Ryder interpreta uma Mina Harker muito credível. A Anthony Hopkins cabe o papel de Abraham Van Helsing, conseguido com o esplendor a que este actor nos habituou sempre.
'Bram Stoker's Dracula' parece ter tudo para ser brilhante, no entanto, não impressiona. Isto porque, por mais que o filme nos passa maravilhar esteticamente, não podemos esquecer que o título atribuiu este Drácula a Bram Stoker e o que aqui encontramos está muito longe de ter seja o que for em comum com o romance. Aliás, este filme mais facilmente seria credível se se dissesse que é baseado nas personagens do escritor irlandês do que se nos dissessem que é baseado no romance. Porque, mesmo que o argumento de James V. Hart seja uma interpretação do romance, é certamente uma interpretação bastante inusitada. O argumentista teria toda a liberdade para derivar do romance, mas não quando o filme promete um outro tipo de fidelidade.
Este é o Drácula de Coppola, e não o de Bram Stoker. Caso evidente disso é a personagem de Lucy Westenra (Sadie Frost) que só em nome é a mesma do romance, uma vez que a do filme está convertida numa menina de boas famílias obcecada com sexo. O próprio Van Helsing parece ser exageradamente excêntrico e, nalgumas das suas aparições, parece mais um velho tarado do que um médico genial.


E, claro, não esqueçamos o romance de Mina Harker com o Conde Drácula, que é o que mais fere este filme. Isto porque, se no romance fica subentendida uma atracção entre o Conde e a mulher de Jonathan Harker, o filme cria mesmo um caso que, mais do que distorcer completamente o carácter de Mina e a natureza dos seus sentimentos pelo noivo e depois marido, nos prova que este filme não soube sequer ser resistente e não soube ter a excentricidade que inventou para os seus personagens. Porque o romance de Mina com Drácula não deixa de ser, por mais justificações que se possam encontrar, uma cedência: Hollywood parece incapaz de sobreviver sem uma história de amor. E, assim, aquilo que podia ter sido um filme de estética fortíssima e apurada acaba resultando naquilo que parece uma mega-produção de Hollywood, daquelas que alguns realizadores por vezes fazem para darem a ideia de serem independentes. Coppola não o foi neste filme. Não há boa produção estética que compense o facto de se transformar um dos grandes clássicos da literatura num prato-do-dia em Hollywood.
Fiquem as boas interpretações dos actores e realmente a qualidade visual do filme para que dele tenhamos algo de bom a relembrar.


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Richard Neutra

DA ARQUITECTURA À PSICOLOGIA E À SOCIOLOGIA

A escola é o local onde ouvimos falar de factos que são novos para nós, onde nos regeneramos, onde cultivamos a nossa mente, os nossos pontos de vista e as nossas convicções sociais... Podemos alegrar-nos junto de aberturas simpáticas para zonas verdes ao ar livre ou sofrer com cantos descontrolados e inquietantes, por trás de móveis atravancados... e milhares de outros componentes, matizados psicologicamente. Não foi feita até hoje nenhuma avaliação empírica da extensão e das características destes elementos principais de influências do meio ambiente, mas por vezes somos perseguidos, alegrados ou atormentados nos sonhos por impressões que regressam do tempo da infância, que surgiram a partir desses [elementos] de há muito tempo através de medos ou de alegrias precoces.

neste fragmento de um artigo publicado na Trend Magazine de Outubro de 1934 é o arquitecto Richard Neutra, enquanto trabalhava no projecto da Escola de Corona. Este texto, escrito possivelmente enquanto Neutra trabalhava nas primeiras ideias para o seu projecto, desenhadas a aguarela, é bastante significativo, no sentido em que denuncia aquilo que, pelo menos para este arquitecto, mais do que fazer parte do processo projectual estava antes do próprio processo projectual. São as suas preocupações, as suas noções de Arquitectura que estão em questão neste texto.
Nascido em 1892 em Viena de Áustria, Neutra era filho de um casal culto perfeitamente inserido nos meios intelectuais da época. Um dos amigos da família era Sigmund Freud. Esta amizade, em si, é menos significativa do que o contexto que nos oferece. Mesmo tendo feito a sua carreira essencialmente nos Estados Unidos, para onde emigrou em 1923, em muito, Neutra formou-se cultural e ideologicamente numa Europa em plena reformulação cultural, com a entrada em vigor dos valores plurais do Modernismo, do questionar da cultura instituída e também do nascimento da Psicanálise. Discípulo de Frank Lloyd Wright e de Adolf Loos, Neutra frequentou a Universidade Técnica de Viena. Todos estes elementos acabarão por ser preponderantes para o desenrolar de uma Obra tão apreciada quanto polémica.
Neutra foi seriamente favorecido por uma natureza preocupada ao ponto de ser obsessiva. A grande ambição do arquitecto era criar casas perfeitas. Esta questão talvez escape a um olhar menos atento, que se prenda com o aspecto dos edifícios, mas a perfeição que Neutra perseguia com afinco era a da utilização dos edifícios.
Num livro sobre o arquitecto, nota Barbara Lamprecht, não ao acaso: Neutra até chegou a desenhar as fábricas para produção de placas Diatalum; os esboços foram publicados em revistas de comércio especializado de arquitectura. Planeou também os horários e o programa de produção, as transportadoras de correias, os carregamentos... Neutra até se preocupou com qual o sindicato a que os trabalhadores da fábrica deveriam pertencer e questionava-se sobre o que iria dizer o sindicato tradicionalista dos carpinteiros! [LAMPRECHT, 2006:18] Se este episódio nos mostra, por um lado, o optimismo e a consciência social(ista) de Neutra, por outro também nos revela como o arquitecto pensava em todas as questões relativas ao edifício. Talvez isto precisamente distinga uma obra boa de uma obra assinalável: o arquitecto não vê o seu edifício como um elemento isolado, estanque, que vale por si só. Ao pensar em questões de trabalho ou em problemas sindicais, Neutra está a inserir aquele edifício num sistema e, assim, na vida que nesse edifício acontecerá.
Um dos mestres de Neutra, Loos, defendia que Apenas uma parte muito pequena da arquitectura pertence à arte: a pedra tumular e o monumento. Tudo o resto, que serve um fim, é para ser excluído da arte. Se lermos esta frase com um sentido muito estrito, ela tem alguma razão de ser, no sentido em que a Pintura ou a Escultura não têm a obrigação de condicionar a vida das pessoas, ao passo que com a Arquitectura não é assim.



Apesar de, eventualmente, Neutra se ter afastado ideologicamente dos seus dois grandes mestres, a verdade é que algumas características comuns continuaram a uni-los. Uma delas poderia ser precisamente essa ideia. Entre 1925 e 1930, Neutra fez vários projectos, muitos deles utópicos, pelo menos para o seu tempo, para a Rush City Reformada. Nestes projectos, o arquitecto demonstra grande preocupação com as estruturas familiares, com os espaços de trabalho, as redes e os tipos de transportes, a circulação interna e externa de pessoas na cidade e também a dignidade das condições de vida.  Projectos evidentemente não construídos, os planos para a Rush City têm o valor de ensaios de Neutra sobre arquitectura. E, desenvolvidos entre os 33 e os 38 anos do arquitecto, eles demonstram já uma preocupação com o sistema em que a Arquitectura se insere, e que vão além do Urbanismo. Por assim dizer, e esta ideia poderá, de certa forma, chegar daquela de Loos, Neutra compreende como a Arquitectura é um profundo exercício sociológico, porque onde o projecto pensa os modos de vida, o edifício construído irá afectá-los, incitando-os ou educando-os.



É em 1935 que são concluidas as obras da Escola de Corona, na Califórnia. Vimos acima, no texto escrito pelo próprio Neutra, como ele pensava o impacto da Arquitectura na vida. Nesse texto, além da dimensão sociológica que está presente já nos planos para a Rush City Reformed, Neutra vai mais além, e entra no domínio da própria psicologia. Como se disse, Neutra cresceu numa Europa onde o eclodir da Psicanálise se fez sentir com estrondo, dando até origem a um movimento modernista como o Surrealismo. A descoberta de Freud de que a infância era determinante na vida de uma pessoa, podendo inclusivamente traumatizar o indivíduo ao ponto deste não conseguir, enquanto adulto, ter uma vida normal, não passou ao lado de Neutra.  Como parece ser ideia do arquitecto desde cedo, a Arquitectura deverá orientar-se para uma incitação ou educação do modo de vida. Assim, ao projectar a escola de Corona, Neutra parece não ter atendido meramente às necessidades práticas imediatas do espaço, mas também ao poder de auto-sugestão daqueles que nele se movimentassem: o impacto que terá a percepção psicológica desse espaço marcará. Assim, Neutra quase psicanalisa a própria Arquitectura: ao falar, no seu texto, dos sonhos que trazem de volta cenários da infância, o arquitecto demonstra a sua preocupação em criar um espaço que, ao ser relembrado, arraste consigo memórias de conforto. Assim, Neutra cria salas altas, bem iluminadas e bem ventiladas, aconchegadas e com uma ligação forte com um jardim exterior (Conseguida com  paredes inteiramente feitas em vidro.) e, pensando nos problemas de visão que poderiam advir aos alunos que se sentassem nas filas de trás, concebeu a organização das carteiras em semicírculo em volta do professor. A planta do edifício é organizada em L, ficando as cinco salas seguidas num dos eixos, e as duas salas de jardim-de-infância num outro eixo perpendicular. Os jardins organizavam-se para o seio desse L, criando um espaço live e amplo, mas que mantém o intimismo que caracteriza o projecto.
A obra de Neutra é muitas vezes exemplo de uma busca pela forma, pela composição assimétrica mas controlada, e é interessante verificar como a formação do arquitecto na Universidade Técnica o orientou para um interesse incessante pela tecnologia e pelos métodos de construção, sem no entanto o afastar das preocupações formais, uma vez que Neutra estava longe de concordar com Sullivan sobre se a forma seguia a função, pois estava acima de tudo convencido de que a forma exerceria um poder considerável sobre os modos de vida e de percepção. Mas, mais do que isto, os dois exemplos citados, a Rush City e a Escola de Corona, são bons exemplos do profundo pensamento de Neutra, que não entendia a Arquitectura enquanto um elemento fechado sobre si mesmo. Talvez em Arquitectura não exista um em si e, assim, Neutra preocupou-se, obsessivamente, com o sistema em que os edifícios se inseririam e, mais do que a criatividade formal ou técnica, será essa obsessão pela forma de viver que torna a Obra de Neutra tão forte e, na maioria dos seus aspectos, moderníssima mesmo para os dias de hoje.


_____________________________________________________
LAMPRECHT, Barbara: Richard Neutra- Formas criadoras para uma vida melhor, 2006, ed. Taschen, Koln
LOOS, Adolf: Trotzdem. Gesammelte Schriften 1900-1930, 1982, Viena

domingo, 22 de julho de 2012

Dois vampiros


Torna-se difícil definir quando o mito do vampiro surgiu na cultura folclórica do leste. Augustin Calmet, monge francês beneditino narra num dos seus livros o caso, aparentemente verídico, de um vampiro chamado Arnoldo, em Medrëiga, num texto que é mais documental do que literário. O mito proliferou pela Europa e, como vemos na antologia 'Drácula e os Irmãos', organizada por Loy Rolim (2005, ed. Colares), Goethe utiliza o vampiro enquanto metáfora da maldição no seu poema A Noiva de Corinto (1816) e Prosper Merimée usa o vampiro na figura de um islâmico como personificação do mal, numa demonstração do moralismo preconceituoso do princípio do século XIX.


Em 1816, um ano depois de se formar em medicina, John William Polidori torna-se médico pessoal do seu amigo Lord Byron e embarcam juntos numa viagem pela Europa, começando pela Flandres. Já em Itália, os dois participam numa tertúlia em que, após a leitura de várias histórias de horror, Byron propõe aos escritores presentes que cada um escreva uma história de horror. Uma das escritoras presentes, Mary Shelley, começará aí mesmo o seu 'Frankenstein'. Byron começará um conto sobre um vampiro, mas rapidamente o abandona. Polidori reescreverá aquilo que Byron escreveu, e concluirá a novela.


Em Abril de 1819, a New Monthly Magazine publica 'The Vampyre' sem autorização de qualquer, e identifica como autor Lord Byron. Tanto Byron como Polidori esclarecem a autoria de 'The Vampyre', mas demoraria alguns anos até que a novela fosse realmente atribuida ao seu verdadeiro autor.
'The Vampyre' torna-se assim a primeira história de vampiros escrita em inglês.
Se Byron arquitectou a premissa da novela é na verdade irrelvante, pois é a Polidori que cabe o logro de a ter escrito, a ele se devem as palavras que constroem um texto que pode não ser canónico como outros viriam a ser, mas que certamente nos merece a admiração que se dá àqueles textos intensos cujas leituras se multiplicam num verdadeiro jogo de hide and seek.
Na antologia de Loy Rolim podemos fazer uma compração do conceito de vampiro que encontramos nos textos anteriores ao de John William Polidori. Calmet documenta os vampiros como espíritos malignos que ameaçam a humanidade e indica formas de os eliminar. Goethe é o primeiro a trazer o vampiro, na figura de uma mulher, para o contexto de uma história de amor e, em A Noiva de Corinto, a condição de vampiro é um símbolo da maldição da mulher, condenada pela mãe a ser privada da vida. Prosper Merimée transforma o vampiro numa ameaça à religião cristã, numa táctica que, aliás, pouco passa de um manifesto inquisitório.
Hoje os vampiros deixaram de ser folclore e passaram a ser referências populares. Perdemos a conta ao número de filmes, de romances e de outras manifestações mais artísticas ou menos que retratam vampiros, todos trazidos do cânone que representaria 'Dracula'. Mas quem abre caminho a Bram Stoker é John William Polidori.
É Polidori quem transforma o vampiro numa espécie de sex-symbol, atribiundo-lhe um erotismo proporcional à malignidade, fazendo dele aquele que seduz para matar, como se tornasse o vampiro uma espécie de categoria de personalidade, mais do que um ser sobrenatural.
'The Vampyre' conta a história de um rapaz órfão, Aubrey, que se cruza com um homem invulgar da sociedade londrina. Esse homem, Lord Ruthwen, gera obsessões à sua volta, tanto pela sua beleza como pela sua frieza. Sendo um sedutor incorrigível, Ruthwen nunca deixa de parecer esquivo e inacessível. Aubrey acaba por embarcar numa viagem pela Europa, acompanhado de Ruthwen, como era vulgar fazerem os rapazes de famílias estabelecidas na Inglaterra do princípio do século XIX.
Ao longo da viagem, Aubrey percebe como Ruthwen parece envolver-se em vários esquemas amorosos e monetários que, depois de beneficiarem a outra parte, a deixam completamente submersa numa miséria impossível de ultrapassar. Ruthwen desgraça aqueles a quem parecia fazer bem. Apesar das suas reservas, Aubrey tem sérias dificuldades em separar-se do seu amigo que o fascina, submentendo-se ao magnetismo que ele parece exercer. Em Roma, finalmente, acabam por separar-se e Aubrey segue sozinho para a Grécia, onde conhece Ianthe, uma jovem rapariga por quem Aubrey se apaixona, dedicando-lhe toda a sorte de pensamentos passionais mas castos. Certa noite, no entanto, Aubrey acaba por ir abrigar-se da chuva numa cabana de um bosque, onde é atacado. De manhã, percebe que havia sido atacado pelos vampiros de que todos lhe falavam na Grécia e que, na mesma cabana, estava morta Ianthe, com uma dentada no pescoço. Perdida a sua paixão, Aubrey adoece e convence-se de que havia sido Ruthwen a atacá-lo. O próprio Ruthwen aparece pouco depois e ajuda-o durante a convalescença e acabam por retomar juntos a viagem. No entanto, na sequência de um ataque, Ruthwen é assassinado, não sem fazer prometer a Aubrey que esperará um ano e um dia até contar a toda a gente, em Londres, que o amigo estava morto.
No seu regresso a Londres, Aubrey continua enfraquecido, tanto pela perda de Ruthwen como pelas suas desconfianças relativamente a ele. Quando vai com a irmã a uma festa, Aubrey encontra Ruthwen e adoece novamente, pois não lhe restam dúvidas de que Ruthwen é um vampiro. Parecendo cada vez mais demente, Aubrey acaba por ser confinado a sua casa e morre passado pouco tempo, de desgosto, ao descobrir que, enquanto estivera enclausurado, a sua irmã se tornara noiva de Ruthwen.
À superfície, 'The Vampyre' deve muito às histórias românticas daquele tempo e também às peripécias passionais e aventurosas de Byron, que ensombram a novela através da premissa. Não fosse o elemento do vampiro, e esta seria uma premissa perfeitamente vulgar para a época.
Mas, se dizia eu que o mérito desta novela cabe a Polidori é porque, na escrita do texto, ficam subentendidas uma série de ideias que talvez seja impossível deslindar. Mas 'The Vampyre' parece influenciada por uma carga autobiográfica que não foi assumida em pleno até hoje porque os britânicos têm uma relação complicada com tudo o que seja autobiográfico. O facto é que encontramos Aubrey totalmente submisso a Ruthwen, como Polidori estava em relação a Byron e vemos Aubrey, como Polidori também, mergulhar numa enlouquecedora depressão depois da ruptura. E, nisto, surge uma carga profundamente homoerótica em 'The Vampyre' onde o que sempre parece triunfar é a relação entre os dois homens em que o sexo, à partida, está ausente, mas não o erotismo nem a atração. Mesmo quando Aubrey se apaixona por Ianthe, essa paixão é destruída pelo próprio Ruthwen, que a partir daí retoma o seu lugar junto de Aubrey.
John William Polidori não viveu o suficiente para se tornar um verdadeiro escritor (Relembremos que se suicidou aos 25 anos com uma dose de cianeto.). No entanto, é impossível negar-lhe a sensibilidade poética e a capacidade para a escrita. Não é difícil acreditar que Polidori tenha pensado o vampiro enquanto metáfora para declarar aquilo que, naquele tempo, seria difícil declarar pelos nomes certos. Que Polidori tenha sofrido de uma paixão incontornável por Byron hoje não nos surpreenderá, mas no princípio do século XIX seria impossível tê-lo dito expressamente -e para o comprovar basta lembrar que Charlotte Lydia Polidori transcreveria mais tarde o diário do seu irmão John, expurgando-o de quaisquer passagens pecaminosas, tendo destruído o manuscrito original para que dessas passagens não ficasse nem rasto.


Passariam quase oitenta anos entre a primeira edição de 'The Vampyre' e a primeira do mais clássico dos romances de vampiros, o 'Dracula' de Bram Stoker, publicado em 1897. Uma leitura do livro é suficiente para que se perceba como este ficou, de facto, como uma espécie de romance canónico tanto dentro do género de horror, como na temática dos vampiros.
Stoker foi quem deu aos vampiros características mais específicas -como se de uma ciência se tratasse - e também uma história. Mas, mais importante do que isso, criou o mito de Drácula. Buscando as tétricas histórias sobre Vlad Dracula, os castelos da Transilvânia e, claro, todos os mitos e possivelmente alguns textos literários anteriores sobre vampiros.
Acima de tudo, de John William Polidori, Stoker herda a ideia de que os vampiros poderiam circular entre a sociedade e também a ideia do vampiro enquanto símbolo do extremo erotismo -ainda que em Polidori este nos pareça mais livre.
Stoker também domina, muito mais do que Polidori, a escrita de horror e, ainda hoje, muitas das suas passagens não deixam de ser arrepiantes. Stoker sabe como escrever de maneira não a que nós entremos no livro mas de maneira a que o livro se transporte para a nossa volta, não nos dando hipótese de escapar.
'Dracula' segue a história de um nobre da Transilvânia, o Conde Drácula, que planeia mudar-se para Londres. Iniciamos o romance com a viagem de Jonathan Harker, um agente imobiliário, até ao castelo de Drácula, atravessando ambientes supersticiosos que não prenunciam um final feliz para a viagem. Uma vez no castelo, Harker apercebe-se da estranheza do Conde a acaba por ser feito prisioneiro. Durante o seu cativeiro, o agente apercebe-se ainda dos preparativos do Conde para a viagem até Londres, levando consigo vários caixões com terra.
Em Inglaterra, Mina Murray, a noiva de Harker, encontra-se em casa da sua amiga Lucy Westenra. A certa altura, deixa de receber notícias do seu noivo e o seu estado de preocupação aumenta quando Lucy, depois de uma crise de sonambolismo em que saíra de casa durante a noite, adoece estranhamente. Como não se perceba o mal de Lucy, John Seawrd, antigo pretendente de Lucy e psiquiatra, chama de Amesterdão um seu antigo mestre, o dr. Abraham Van Helsing. Van Helsing começa a suspeitar que Lucy teria sido atacada por um vampiro.
Quando Mina recebe notícias de John, vai ter com ele, que se encontra doente perto da Transilvânia. Regressam já casados e a leitura do diário de Harker dá a Van Helsing a certeza de que estão ameaçados por um vampiro. Assim, o grupo, formado por Van Helsing, Seward, o casal Harker, Quincey Morris e Arthur Helmwood começará uma jornada por eliminar definitivamente o Conde Drácula.
No fundo, Stoker trabalha o mito no sentido de o inserir na realidade. Ao passo que o vampiro de Polidori era, como disse, uma espécie de categoria de personalidade, Stoker faz dele mesmo um ser nocivo, uma ameaça e coloca-o numa cidade populada, onde todos são potenciais presas, gerando também uma espécie de irmandade que tentará salvar a Humanidade do seu anátema. E é assim que Stoker elabora um verdadeiro romance de horror, em que o perigo existe a uma escala tão indefinida que se torna excessivamente larga. Para o transporte para a relidade, ajuda a forma como o romance está escrito. 'Dracula' é inteiramente constituido por páginas de vários diários, por cartas, notícias de jornal e telegramas: tudo elementos que, à partida, documentam uma realidade. Afastando-se da narrativa propriamente dita, e usando esses documentos, Stoker torna mais real a sua história, como se disfarçasse o facto daquelas páginas serem, na verdade, ficção.


E assim se criou verdadeiramente um mito. A restante obra de Stoker foi votada ao esquecimento, mas o 'Dracula' imortalizou-se e, mesmo tendo herdado muitos elementos da mitologia tanto quanto de outros textos literários, é verdadeiramente pioneiro. Pioneiro, infelizmente, de uma espécie de cultura vulgarizada e estupidificada, uma vez que, mesmo assim, o romance de Stoker é mais conhecido do que lido.

sábado, 21 de julho de 2012

Kylie canta Emiliana



É de 2003 o álbum 'Body Language', o nono da australiana Kylie Minogue. Nunca fui propriamente um fã de miss Minogue, mas sempre gostei desta canção. A razão, inconsciente, é afinal muito simples. Slow; é uma de duas canções deste álbum que Kylie Minogue escreveu com Emiliana Torrini. Emiliana escreve e produz esta canção dois anos antes de lançar o seu álbum 'Fisherman's Woman', que, dos três que a cantora considera, será o que gosto menos. No entanto, Slow parece anunciar um pouco aquilo que viria a ser 'Me and Armini' (2008) que, em contrapartida, é o meu álbum preferido. Ouçam-se canções de Emiliana como Jungle Drum ou Gun, e fica clara a linha condutora.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Porque se Escreve (fragmento)


Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável em que, exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.
Mas é uma solidão que necessita de ser defendida, que é o mesmo que necessitar de justificação. O escritor defende a sua solidão, mostranso o que nela e unicamente nela, encontra.


María Zambrano
trad. José Bento
A Metáfora do Coração e outros escritos
1993, ed. Assírio e Alvim

terça-feira, 17 de julho de 2012

Amélie Nothomb: Hygiène de l'Assassin

O TEATRO DA CRUELDADE

Não é preciso saber muito sobre a Bélgica para saber que, num mesmo país, encontramos duas culturas bastante distintas. Uma francófona, da Valónia, e outra de língua neerlandesa, da Flandres (Sendo Bruxelas região bilingue.). Poucos artistas contemporâneos belgas têm sido conhecidos entre nós. As promessas (Ainda por cima mal cumpridas.) da União Europeia afinal, visavam apenas a fluência da economia, ficando a cultura, por norma, estanque dentro de cada país. Salvo raras excepções, só os mortos de alguns países maiores são traduzidos e/ou publicados, ou então aqueles que são consagrados por prémios que nem sempre fazem laureados todos os que o mereceriam (Já que falamos de livros, a título de exemplo, Agustina Bessa-Luís poderia, tanto como Saramago, ter recebido o Nobel da literatura.).
Amélie Nothomb, escritora belga francófona, foi difundida largamente em França, muitos dos seus livros foram traduzidos para inglês e, por surpreendente que possa parecer, uns poucos também para português (Ainda que, sinceramente, nunca tenha encontrado livro algum dela em nenhum escaparate em Portugal.).


O seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin' foi muito aclamado e rapidamente conheceu várias edições em França. O sucesso internacional de um livro que foi o primeiro de muitos (Nothomb tem publicado mais ou menos um romance por ano.) poderá surpreender sendo a Bélgica um país pequeno mas o facto é que, uma vez tendo contacto com o texto em si, vemos que a sua intensidade justificaria até mais atenção do que a que lhe foi dada.
Num registo seco, directo e declaradamente irónico, Nothomb introduz-nos a Prétextat Tach, um escritor de oitenta e três anos a quem foi diagnosticada uma rara doença, um cancro nas cartilagens, e a quem restam dois meses de vida. Apesar de ter, ao longo da sua carreira, mantido o silêncio face à imprensa, na recta final da sua vida, um tanto pressionando por Ernest Gravelin, o seu assistente, Tach concorda em dar entrevistas a quatro jornalistas, fazendo, no entanto, as mais variadas e inesperadas exigências no que toca aos critérios de selecção dos quatro escolhidos.
Quase todo o texto de 'Hygiène de l'Assassin' é escrito em diálogo, sendo o romance constituído essencialmente pelas entrevistas que os vários jornalistas fazem a Tach e pelas conversas que os jornalistas têm, entre si, num café onde se reunem, em frente da casa do escritor (Localizada, ao que se entende, na zona dos Étangs d'Ixelles.).
As descrições de Prétextat Tach são bastante sumárias: obeso, feio, mal-encarado e antipático. A conversa com o primeiro jornalista vai revelar uma correspondência entre a fealdade física e o trato difícil do escritor. Antipático, arrogante, convencido e mal-criado, Prétextat comporta-se como um sociopata, acabando por escorraçar o primeiro jornalista. No café, este é repreendido pelos colegas, por ter tratado um génio como se fosse um escritor vulgar. No entanto, entrevista atrás de entrevista, Tach vai-se tornando cada vez mais agressivo, fazendo uso de todas as suas capacidades de retórica, enveredando por um discurso cada vez mais abjecto, contraditório e altamente misógino, preconceituoso e cruel. Apesar de ter sido laureado com o Prémio Nobel da literatura, Tach está convencido de que não é lido e muito menos entendido e defende ideias que chocariam o maior dos reaccionários. Ainda que praticamente só a primeira entrevista nos dê alguns detalhes sobre a obra de Tach, fica clara em todas as entrevistas a exacerbada capacidade retórica do escritor, que manipula diversos sofismas e aforismos para, com a sua personalidade retorcida, se evadir às perguntas dos jornalistas. A excepção é a segunda entrevista, em que o jornalista pergunta a Tach como é a sua alimentação: uma vez mais usando todas as suas capacidades discursivas, o escritor descreve aquilo que come, enchendo o discurso de detalhes grotescos e asquerosos, que acabam por fazer o jornalista abandonar a sala para vomitar.
Estas quatro entrevistas formam uma espécie de primeira parte do livro. A segunda parte, que corresponde mais ou menos a metade do livro, é constituida por uma quinta entrevista, marcada à revelia de Tach pelo seu assistente. A jornalista, Nina, logo no início, é confrontada com a extrema misoginia do escritor. No entanto, em vez de, à semelhança dos seus colegas, ter uma atitude reverente em relação ao laureado do Nobel, Nina assume uma pose intransigente, ameaçando imediatamente sair de Tach não lhe pedir desculpa pelos insultos que lhe dirige. De alguma forma desarmado, Tach acaba por ceder e, daí para a frente, desenvolve-se entre ambos uma espécie de jogo psicológico que, em muitos momentos, não deixa claro quem está a ser manipulado. Pela primeira vez, o escritor parece estar perante um adversário à altura. Nina conduz a entrevista com convicção, mas sem abdicar do jogo de cintura que fará o escritor perder-se nos seus próprios engimas sofismáticos.  Assim, a partir de algumas perguntas sobre o último romance de Tach, que fora publicado inacabado, Nina consegue confrontá-lo com as pesquisas que fizera sobre a infância do escritor e, tendo encontrado de entre os vinte e dois livros aquele que é autobiográfico, a jornalista consegue arrancar a Tach detalhes sobre a sua história pessoal, que explicará muitas das ideias perversas do escritor e que, mais ainda, dará acesso àquilo que de obscuro existe nessa história.
Assim Tach desvenda a Nina a sua infância idílica e o seu fim abrupto e violento, que daria origem a toda uma vida de ódio e crueldade disfarçadas, na escrita, de boa-vontade.
Céline é referido ao longo do texto como exemplo de um escritor que escrever grandes barbaridades com excepcional fulgor e o seu eco é, de certa forma, muito claro. Mas, no que toca ao passado de Tach, o eco de Shakespeare, com a Ofélia afogada, surpreende por nos dar, nas mesmas ideias de morte e de barbaridade, a visão oposta, bela, edénica e poética. Cabe a Nothomb o mérito de ser capaz de conjugar, num mesmo texto, duas visões tão antagónicas.
À medida que a conversa se aproxima do fim, torna-se claro que é Nina quem domina Prétextat, conseguindo assim fazer rastejar, literalmente, o homem que, na primeira parte do livro, nos parecera o mais cruel dos homens.


'Hygiène de l'Assassin' é, como disse, escrito quase inteiramente em diálogo. Por isso, não lhe é de todo alheia uma certa ambiência teatral ou cinematográfica, sendo que as poucas descrições que encontramos nos parecem quase indicações cénicas. Amélie Nothomb escreve, então, sem quaisquer subterfúgios, seca e directamente. No entanto, aquilo que na escrita deste romance mais surpreenderá, será a total desenvoltura da autora (Que tinha vinte e cinco anos à data da primeira edição do livro.) no que toca ao jogo que se gera não só entre as palavras, mas também entre as ideias em discussão ao longo das cinco entrevistas. Acontece que, muitas vezes, ainda que possamos escolher uma posição face às conversas, somos obrigados a reconhecer que há um fundo de verdade tanto do lado de Tach como do lado dos seus entrevistadores, em particular de Nina, que é quem mais capacidade tem de efectivamente discutir ideias. Mas claro que é a entrevista de Nina que mais importância tem. A argumentação entre os dois está brilhantemente escrita e a batalha verbal que travam não raras vezes nos parece estar destinada a não ter vencedor justo, uma vez que, por mais que possamos ver Tach como um sociopata, é impossível não reconhecer ao seu discurso argumentos irrepreensíveis. Mais ainda, Amélie Nothomb traça o jogo entre estes dois personagens munida de certas noções de psicologia (Que nunca resvalam para a análise barata de sentimentos.), pois é através dela que Nina consegue confundir o seu entrevistado, obrigando-o a falar, a revelar-se.
No fundo, a grande busca de 'Hygiène de l'Assassin' poderia ser pela identidade verdadeira. O conceito está por demais usado e abusado. Mas, de facto, Nothomb não parece inserir-se directamente neste tipo de escrita. Prétextat Tach surge-nos como um monstro e, a certa altura, quer-nos parecer que o verdadeiro pretexto de Nina será o de encontrar o momento em que Tach se teria tornado um monstro, defendendo um pouco que não seria possível que ele assim tivesse nascido. No entanto, o final do romance vem mostrar-nos uma ideia diferente, pois parece apontar para que, na verdade, não existam monstros ou, pelo menos, que não existam monstros quando inseridos num sistema humano, pois, quando assim é, todos são monstros, de uma forma ou de outra, sendo, portanto, tudo uma questão de perspectiva. E se o acto final de Nina nos parece ser justificado por uma espécie de gesto de justiça, a verdade é que, ao longo do livro, fomos encontrando vários argumentos que nos provam o contrário e que, inclusivamente, deixam subentendido que a própria justiça é uma questão de ponto-de-vista e que, como tal, nunca verdadeiramente pode ser feita.
Texto de uma intensidade impressionante, principalmente para uma autora tão jovem como Nothomb, 'Hygiène de l'Assassin' é um romance como raramente se lê. A densidade das suas ideias e a lucidez dos argumentos que o constituem, em que uns aforismos dão origem a outros e as contradições são dependentes da perspectiva, fazem deste livro um longo ensaio sobre a monstruosidade ou a falta dela, e, colocando em cena a crueldade no seu estado mais nu, Nothomb acaba por sintetizar os grandes assuntos da humanidade: a vida, a morte, o amor, o esquecimento, a maldade, a redenção, a perda, sendo que a soma de tudo isto pode ser tanto a bondande quanto a monstruosidade. E mesmo que um livro tão despido e tão desarmante possa ofender-nos, eu diria que vale a pena.






segunda-feira, 16 de julho de 2012

Were You There?

Estão marcados, finalmente, dois concertos dos Anathema em Portugal, para 2012.
O primeiro, no Hard Rock do Porto, a 19 de Outubro, o segundo a 20 de Outubro no Paradise Garage de Lisboa. Em apresentação ficam os dois álbuns mais recentes, 'Falling Deeper' (2011, de que falei aqui.) e 'Weather Systems' (2012, de que falei aqui.).
Abaixo fica, completo, o concerto na Polónia, de apresentação do álbum 'A Natural Disaster' (2003) editado em DVD em 2004, com o título 'Were You There?'

domingo, 15 de julho de 2012

Canção para o dia de hoje



Sade: Love is Found (Do álbum 'The Ultimate Collection', 2011)

[As paredes são brancas e suam de terror]


As paredes são brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo é como eu fechado e interior
Não sei por onde o vento possa entrar

Toda esta verdura é um segredo
Um murmúrio em voz baixa para os mortos
A lamentação húmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites

Sophia de Mello Breyner Andersen
Poemas de um Livro Destruído
in 'Fevereiro- Textos de Poesia'
1972, ed. dos coordenadores
desenho de Ana Hatherly

sábado, 14 de julho de 2012

Caligrafias (1)

Com a invenção da imprensa, os livros deixam de circular manuscritos. Podem os caracteres ser mais legíveis, mas a caligrafia era mais pessoal. Aqui ficam algumas amostras caligráficas de alguns escritores.

Fiama Hasse Pais Brandão

Regina Guimarães

José Luís Peixoto

 Maria Teresa Horta

Natália Correia

Lídia Jorge

António Rebordão Navarro

Olga Gonçalves


Agustina Bessa-Luís

Herberto Helder

Luísa Dacosta

 Wanda Ramos

 Vasco Graça Moura

 Maria Ondina Braga


José Gomes Ferreira

Caligrafias (2)

Egito Gonçalves

Eugénio de Andrade
António Ramos Rosa
Isabel de Sá
Rui Lage
Rosa Alice Branco
Eduarda Chiote
Helga Moreira
Yvette K. Centeno


Dido

Estas eram algumas das canções que eu ouvia na minha adolescência. Entretanto, não só eu me distanciei um pouco, como Dido deixou de surpreender, pelo menos no que ao terceiro álbum diz respeito.
Dos primeiros dois, ficam algumas canções memoráveis, como as que ficam aqui a baixo e que hoje, não sei por que nostálgicas razões, me apeteceu ouvir.


This Land is Mine (Life for Rent)


Slide (No Angel)


My Lover's Gone (No Angel)


Sand in my Shoes (Life for Rent)


Thank you (No Angel)


Here with Me (No Angel)


Life for Rent (Life for Rent)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sermon sur la Mort [fragmento]


Me sera-t-il permis aujourd'hui d' ouvrir un tombeau devant la cour, et des yeux si délicats ne seront-ils point offensés par un objet si funèbre ? Je ne pense pas, messieurs, que des chrétiens doivent refuser d' assister à ce spectacle avec Jésus-Christ. C' est à lui que l' on dit dans notre évangile : seigneur, venez, et voyez où l' on a déposé le corps du Lazare ; c' est lui qui ordonne qu' on lève la pierre, et qui semble nous dire à son tour : venez, et voyez vous-mêmes. Jésus ne refuse pas de voir ce corps mort, comme un objet de pitié et un sujet de miracle ; mais c' est nous, mortels misérables, qui refusons de voir ce triste spectacle, comme la conviction de nos erreurs. Allons, et voyons avec Jésus-Christ ; et désabusons-nous éternellement de tous les biens que la mort enlève.
C' est une étrange faiblesse de l' esprit humain que jamais la mort ne lui soit présente, quoiqu' elle se mette en vue de tous côtés, et en mille formes diverses. On n' entend dans les funérailles que des paroles d' étonnement de ce que ce mortel est mort. Chacun rappelle en son souvenir depuis quel temps il lui a parlé, et de quoi le défunt l' a entretenu ; et tout d' un coup il est mort. Voilà, dit-on, ce que c' est que l' homme ! Et celui qui le dit, c' est un homme ; et cet homme ne s' applique rien, oublieux de sa destinée ! Ou s' il passe dans son esprit quelque désir volage de s' y préparer, il dissipe bientôt ces noires idées ; et je puis dire, messieurs, que les mortels n' ont pas moins de soin d' ensevelir les pensées de la mort que d' enterrer les morts mêmes. Mais peut-être que ces pensées feront plus d' effet dans nos coeurs, si nous les méditons avec Jésus-Christ sur le tombeau du Lazare ; mais demandons-lui qu' il nous les imprime par la grâce de son saint-esprit, et tâchons de la mériter par l' entremise de la sainte Vierge.

Jacques Bénigne Bossuet
Sermons et Oraisons Funèbres
1997, ed. Points, col. Sagesses
pormenor de pintura de Rogier van der Weyden